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Acervo Temático: Direito Internacional Humanitário e o conflito entre Israel e o Hamas.

Acervo Temático: Direito Internacional Humanitário e o conflito entre Israel e o Hamas.

Até nas guerras existem regras que devem ser respeitadas: o Direito Internacional Humanitário e o conflito entre Israel e o Hamas.

O mundo assiste mais um conflito eclodir no já violento início de século XXI. Apesar de estarmos ainda no começo da segunda década da primeira metade deste século, a violência parece ser já uma constante. Se há pouco tempo o planeta ficou perplexo com uma nova guerra na Europa, ainda não resolvida e longe de um fim, agora encontra-se estarrecido com a brutalidade de mais uma página do longo e complexo conflito no Oriente Médio. Isso tudo sem contar os altos índices de violência na América Latina e outros conflitos esquecidos pelo mundo, como no Sudão e no Iêmen, por exemplo.

De qualquer maneira, o brutal ataque do Hamas à Israel provocou o maior número de vítimas para o povo judeu desde o Holocausto. Se por um lado o ato cometido pelo Hamas foi abominável, por outro lado, a feroz reação de Israel tem já feito incontáveis vítimas civis na Faixa de Gaza. Entre um lado e o outro, as perdas humanitárias são imensas e irreversíveis. Dentre as vítimas do grupo terrorista Hamas, que governa a Faixa de Gaza, alinhando-se com o Fatah na Cisjordânia, estão jovens israelenses, mulheres e rapazes, que nada tem a ver com as razões que até hoje fazem perdurar a tensão e o conflito entre o Estado de Israel e o ainda em construção Estado da Palestina. Dentre as vítimas da reação de Israel estão crianças, jovens e mulheres palestinas que também nada tem a ver com as mesmas razões. Como uma vez já se disse: “só é capaz de elogiar a guerra quem nunca viu ou esteve numa”.

Guerras foram travadas desde tempos imemoriais em cada canto do planeta. Todavia, a própria concepção de guerra, assim como as regras aplicadas a ela, foram se alterando ao longo dos tempos. Isto é, se a guerra é um flagelo constante da humanidade e talvez uma das nossas piores facetas, tentativas de ao menos controlá-la ou simplesmente regulamentá-la foram feitas no sentido de minimizar seus danos e até honrar os combatentes. Ou seja, até em períodos antigos havia regras para a guerra, limites estabelecidos em respeito aos deuses ou simplesmente a algo que unisse todos os homens, independentemente de sua origem, religião, cor da pele, como, por exemplo, códigos de honra e consideração mútua. Não podemos esquecer as tréguas que existiam para que os corpos pudessem ser enterrados de acordo com os rituais de cada um dos povos em conflito, as regras escolhidas em campos de batalha distantes dos civis, as pausas em respeito a deuses ou a um Deus. Enfim, mesmo na estupidez da guerra, há regras.

Nesse diapasão, a eclosão da guerra das guerras, ou melhor, da Segunda Grande Guerra Mundial, levou o mundo ao ápice da loucura. Não somente por conta dos horrores encontrados no Gueto de Varsóvia, em Auschwitz, Treblinka, Birkenau, Dachau e nos demais campos de extermínio, como também em Hiroshima e Nagasaki. Isto é, a Segunda Guerra deu ao mundo não só os horrores do abismo da alma humana, externalizados no Holocausto e na escuridão dos totalitarismos, mas a possibilidade do extermínio completo da humanidade, uma vez que inaugurou a era nuclear. A guerra, antes mais localizada, passou a ter proporções planetárias com a potencialidade de destruição por meio do armamento atômico. Diante disso e do morticínio nunca experimentado em tamanhas e velozes proporções, fortaleceu-se a ideia da construção de um Direito Internacional Humanitário; em outras palavras, de regras internacionais a serem respeitadas durante a guerra.

A Carta da ONU, em seu art. 2 (4), traz o que se conhece como jus ad bellum, ou melhor, aquilo que internacionalmente regra o uso da força entre os Estados. Dispõe esse artigo que os Estados deverão abster-se nas suas relações internacionais de recorrer à ameaça ou ao uso da força, quer seja contra a integridade territorial ou a independência política de um Estado, quer seja de qualquer outro modo incompatível com os objetivos das Nações Unidas. O art. 51 da Carta, por sua vez, dispõe que nada que nela estiver disposto prejudicará o direito inerente de legítima defesa individual ou coletiva, no caso de ocorrer um ataque armado contra um membro das Nações Unidas, até que o Conselho de Segurança tenha tomado as medidas necessárias para a manutenção da paz e da segurança internacionais. Nesse sentido, apenas duas possibilidades de guerra são legítimas no mundo pós Segunda Guerra: com a devida autorização do Conselho de Segurança da ONU ou em legítima defesa.

O art. 51 levanta uma questão sobre se um Estado pode contra-atacar em legítima defesa se atacado por uma entidade não estatal, tal como um grupo terrorista. Apesar do art. 51 não ser expresso nesse sentido, o entendimento é de que, apesar de um grupo terrorista não ser um Estado, eles sempre operam a partir do território de um Estado. Nesse sentido, havendo provas de que o grupo atuou do território pertencente a um determinado Estado, o Estado que foi atacado pode contra-atacar. Todavia, é necessário que haja proporcionalidade e que civis sejam protegidos. Afinal, o contra-ataque não se dá contra as forças armadas oficiais de um Estado que atacou, mas sim em razão do ataque de uma entidade não estatal, que opera do território de um Estado. É justamente aqui que entra o jus in bello; ou melhor, o Direito Internacional Humanitário.

O Direito Internacional Humanitário (DIH) não lida com o questionamento sobre a guerra ser legal ou ilegal, mas se as condutas durante ela estão de acordo com os princípios gerais do Direito Internacional. De acordo com a definição do Comitê Internacional da Cruz Vermelha, o DIH é composto de regras estabelecidas por tratados ou costumes internacionais, com o objetivo de lidar com problemas humanitários que surgem por conta de conflitos armados e que limitam as partes em relação ao uso de métodos e meios de guerra para que civis possam ser protegidos, assim como propriedades civis, edifícios históricos e de valor para a humanidade. Todos os civis devem ser protegidos, inclusive aqueles que são trabalhadores de caráter humanitário, vinculados a organizações intergovernamentais ou não governamentais.

As regras do DIH estão basicamente codificadas nas quatro Convenções de Genebra de 1949, que derivaram dos movimentos históricos normativos de limitação dos danos e prejuízos humanitários da guerra, e nos três Protocolos Adicionais que depois vieram. Importante pontuar que os conflitos armados mudam com a tecnologia e que muitas vezes as Convenções podem não dar conta do problema do qual se está diante. Nesse sentido, vale dizer que o DIH não se encerra nas Convenções de Genebra de 1949, mas se expande pela interpretação sistemática da Carta das Nações Unidas, por meio dos Tratados de Direitos Humanos e dos costumes internacionais.

Uma das fundamentais preocupações do DIH é diferenciar combatentes de civis. Quando estamos diante de milícias, levantes de civis e grupos terroristas, o que a princípio parece ser uma distinção fácil, acaba não sendo. De qualquer modo, hospitais, escolas, crianças, devem ser protegidos em qualquer hipótese e não podem ser alvo de ataques. Nesse sentido, qualquer ataque de um exército regular de um Estado, de um grupo terrorista ou de quaisquer entidades não formalmente caracterizadas dentro da concepção estatal a essas pessoas e lugares serão classificáveis como crimes de guerra.

Além disso, civis devem receber a permissão para sair das áreas de conflito e deslocarem-se para áreas mais seguras. Durante o deslocamento, devem ser protegidos e não podem ser objeto de qualquer tipo de ataque. Seguindo a mesma lógica de proteção aos civis, provisões e serviços essenciais para a manutenção da vida das pessoas devem ser permitidos e não podem ser bloqueados como medida de guerra. A ajuda humanitária precisa ser enviada e deve ser recebida, sem bloqueios ou intervenções. Atuações contrárias são também classificáveis como crimes de guerra.

Para minimizar os danos e os prejuízos da guerra também são regulados os usos das armas em conflito. Nesse sentido, a legítima defesa não pode se tornar desproporcional e causar uma destruição devastadora de quem atacou ou simplesmente implicar em qualquer tipo de guerra de conquista. Isto é, a legítima defesa não pode resultar numa futura anexação de territórios ou no uso de armas químicas ou nucleares. A legítima defesa deve buscar neutralizar o ataque, não mais que isso. Nesse sentido, é proibido o uso de armas, projéteis, materiais ou métodos de guerra de qualquer natureza que causem desnecessários ferimentos e sofrimento.

Muitos poderão dizer que é inviável exigir de um grupo terrorista o cumprimento de regras, como é o caso do Hamas. Todavia, isto não quer dizer que para Israel isso signifique uma espécie de desligamento das suas obrigações internacionais, principalmente naquilo que toca ao DIH. Israel não pode deixar de cumprir as Convenções de Genebra e ignorar a população civil que sofre em Gaza. Da mesma maneira, o Hamas deve ser pressionado pela comunidade internacional para que cesse os ataques e, se pretende deixar de ser considerado um grupo terrorista, se adeque às regras internacionais. O abuso dos dois lados implica e implicará em crimes de guerra e possivelmente crimes contra a humanidade. A comunidade internacional precisa e deve pressionar para que isso não ocorra.

Por fim, o Direito Internacional Humanitário é um esforço da humanidade em preservar a sua própria humanidade. Ele é uma espécie de último recurso para preservar a vida em tempos de caos e destruição. É irrealista e ingênuo atribuir a ele que a guerra não aconteça. Ele não foi construído para impedi-la, mas sim para amenizar e diminuir o sofrimento de quem não faz a guerra, porém nela se encontra por conta do destino. Apesar de todo sofrimento que estamos assistindo no atual conflito entre Israel e o Hamas, é o DIH que nos relembra que somos humanos, que o sofrimento de crianças, idosos, mulheres e homens inocentes não pode continuar por questões geopolíticas ou interesses econômicos. É ele quem nos faz lembrar que mesmo na catástrofe é preciso manter alguma sanidade. Mesmo na guerra existem regras e elas precisam ser observadas. A vida ainda precisa ser mais valiosa do que qualquer outro interesse.

Observação: Esse conteúdo não representa, necessariamente, a opinião da Fundação Podemos.

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