O reconhecimento de estados sempre foi um tema difícil no âmbito das relações internacionais. Afinal, os processos de formação dos estados no mundo não seguiram a mesma linha factual e histórica em cada um dos continentes do planeta. Eles se deram de maneiras diversas, complexas, envolvendo diferentes fatores, tais como guerras civis, colonização, dominação, o estilhaçamento de impérios multiétnicos dentre outros.
A Europa, de natureza evidentemente tribal, constituindo um verdadeiro caldeirão étnico, teve longo processo de formação desde a constituição do reino de Portugal em 1179. Vale lembrar que o Império Carolíngio teve sua constituição reconhecida pelo papado no ano de 800, fazendo de Carlos Magno o primeiro grande imperador da Europa feudal. Com a reforma protestante as guerras religiosas derramaram muito sangue no solo europeu, fazendo com que em 1648 fossem firmados os Tratados de Münster e Osnabruck, que constituíram, então, a ideia de que a religião do príncipe seria a religião oficial do povo a ele submetido e que os demais príncipes deveriam, pois bem, respeitar essa escolha, ajudando a forjar o conceito de soberania, fundamental na concepção moderna de estado. A ordem westfaliana durou até a revolução francesa e o processo expansionista de Napoleão, que retirou do trono uma série de governantes. Após o concerto europeu e a nova ordem fundada no Congresso de Viena de 1815, a Europa assistiria a novo ponto de inflexão com a eclosão das duas grandes guerras mundiais, sua destruição e a posterior reconstrução sob a influência da bipolaridade estabelecida pelos EUA e pela URSS.
A América, em seu contexto, assistiu à formação dos seus estados a partir da independência das ex-colônias, que após desvencilharem-se de suas metrópoles, o que não foi feito sem longas e complexas negociações, deram cabo às guerras genocidas contra os povos originários. Os processos na Ásia também envolveram a derrocada de impérios coloniais, guerras civis e longos encadeamentos históricos sangrentos e complexos.
Independentemente da complexidade da dimensão histórica dos processos de formação, o estado moderno tem como um dos seus elementos a concepção de povo, a quem o estado confere a possibilidade de conceder a sua nacionalidade, da qual surgem direitos e obrigações para as pessoas que passam a ter esse vínculo jurídico-político com ele. Foi a ausência de um estado que protegesse os judeus espalhados pela Europa, que facilitou a desnacionalização feita pela Alemanha dessas pessoas, que habitavam o continente multiétnico. A cassação da nacionalidade alemã dos judeus residentes na Alemanha e, posteriormente, dos judeus cujos estados já estavam subjugados pelos nazistas produziu uma série de apátridas, que não possuíam a proteção diplomática e jurídica de nenhum estado. Esses expurgos de nacionalidade foram fundamentais para o extermínio e para a própria consumação da Shoá. Daí ter nascido a concepção arendtiana do direito a ter direitos, sendo que apesar do segundo ter uma concepção universal, o primeiro tem um contingenciamento na figura do estado. Sem o estado, hoje, é impossível se assegurar o direito a ter direitos. Ou seja, não conseguimos chegar ainda (se é que chegaremos tão cedo) à uma concepção segura e concreta de cidadão universal.
Embora tenhamos trabalhado essa ideia desde Kant e o Abade de Saint Pierre, a concretização da concepção de que todos os seres humanos são cidadãos universais e por isso merecem respeito e direito a ter sua dignidade resguardada ainda é uma realidade distante. Nesse sentido, a presença do estado como intermediador do direito a ter direitos consiste num paradoxo ainda necessário; paradoxo, pois é a ideia encarnada da universalidade contingente dos direitos humanos, necessário, poque sem o estado dificilmente os direitos humanos poderão ser afirmados e assegurados às pessoas.
Nesse diapasão, a formação do Estado de Israel se deu no difícil e complicado processo de restauração da ordem mundial sob a égide da Carta da ONU, após o horror da Shoá e os escombros deixados pelos totalitarismos do nazifascismo. Era necessário criar um estado para dar aos judeus a proteção que não tiveram. Contudo, embora completamente justificável, criar um estado num período da história onde nenhuma terra efetivamente era “desconhecida” ou de ninguém (res nullius) não seria, em hipótese alguma, uma tarefa fácil ou sem consequências. A Palestina não era um local desabitado.
Desta maneira, logo com a criação do Estado de Israel no território da Palestina o conflito, que já se dava desde 1947, aprofundou-se em 1948. A guerra e a nakba, conhecida como o grande êxodo palestino, foi um prelúdio das futuras décadas de conflito, sofrimento e sangue. Aliás, diante do conflito os Estados Unidos logo propuseram na ONU uma tutela para a Palestina. A URSS e seus satélites permaneceram favoráveis à divisão e à imediata proclamação do Estado de Israel. Contudo, a tutela foi imediatamente rejeitada tanto pela Agência Judaica, quanto pelo Alto Comissariado Árabe. Enquanto os judeus alegaram o direito moral de aderirem à decisão original da ONU, os árabes alegaram também possuírem um direito moral de aderirem ao princípio da Liga das Nações da autodeterminação dos povos, de acordo com a qual a Palestina seria governada por sua maioria árabe presente e seriam outorgados aos judeus direitos de minoria. Não havia consenso entre árabes e judeus, muito menos no âmbito da comunidade internacional.
Hannah Arendt, que, lembremos, era judia e sofreu na pele o horror nazista, pois perdeu amigos como Walter Benjamin e outras pessoas queridas e foi confinada em Gurs na França, mas conseguiu fugir para os EUA, criticou a militarização do Estado de Israel. Para ela, a forma militarizada que se estava dando ao novo estado levaria a uma posição completamente desprovida de poder nas relações com os países vizinhos[1]. Arendt comparou o Estado nascente de Israel com Esparta, pois os judeus viveriam cercados por uma população árabe totalmente hostil, dentro de fronteiras constantemente ameaçadas, tendo que viver da contínua autodefesa física, que acabaria por preponderar a todos os demais interesses e atividades. Ou seja, Israel seria um estado em eterna guerra, voltado para ela e em função dela[2]. Mesmo diante disso, a população de Israel seria sempre pequena diante dos seus vizinhos hostis.
Arendt defendeu que a independência da Palestina só poderia ser alcançada sobre uma sólida base de cooperação judaico-árabe. Aliás, afirmava que enquanto ambas as lideranças, judaica e árabe, alegassem não ser possível uma ponte entre ambas, o território da Palestina não poderia ser deixado à sabedoria política de seus próprios habitantes. Além disso, para ela as únicas medidas políticas realistas que poderiam levar a uma emancipação política da Palestina seriam o autogoverno local e a criação de conselhos municipais e rurais mistos de judeus e árabes, em uma pequena escala e tão numerosos quanto possíveis[3].
Desta maneira, Arendt advogava já naquela época o que muitos estudiosos e analistas apontam como a única solução para dar fim aos conflitos que há tanto tempo ceifam vidas no infindável embate entre israelenses e palestinos: a criação de um estado binacional. Todavia, isso parece ser uma saída muito distante da realidade, sendo muito mais factível a criação de ao menos dois estados.
De qualquer maneira, o conflito que explodiu no dia 07 de outubro de 2023, por conta dos ataques do Hamas continua. As vítimas são inúmeras e Gaza está praticamente destruída. Israel, governado por Benjamin Netanyahu, parece não aceitar a existência de um Estado da Palestina, enquanto o Hamas parece também não aceitar o direito de Israel existir. Ou seja, aquilo que Hannah Arendt já previa permanece insolúvel.
Contudo, a reação de Israel, altamente militarizado e recebendo armamentos de países aliados, tem sido profundamente desproporcional aos ataques feitos pelo Hamas. É verdade que nem todos os reféns feitos pelo grupo terrorista foram devolvidos a Israel, mas a população civil palestina tem sofrido e pagado o preço com suas vidas, principalmente crianças e mulheres[4]. Vale sempre ressaltar que isso não apaga os atos criminosos e horrendos cometidos pelo grupo terrorista Hamas.
Apesar disso e buscando pressionar ambos para o fim do conflito, a comunidade internacional tem se manifestado[5]. Recentemente o procurador-chefe do Tribunal Penal Internacional pediu que fossem emitidos mandados de prisão tanto para Benjamin Netanyahu e seu ministro da defesa, quanto para as lideranças do Hamas[6]. Praticamente em sequência, Espanha, Irlanda e Noruega reconheceram oficialmente o Estado da Palestina.
Os três países reconheceram coordenadamente o Estado da Palestina para incentivarem outras nações a seguirem o exemplo e, assim, demonstrar insatisfação com o rumo que o conflito tem tomado, deixando claro para Israel que uma guerra de aniquilação não será aceita e que a solução deve ser a criação de dois estados. Da mesma forma, reafirmaram que condenaram os ataques feitos pelo grupo terrorista Hamas.
Vale dizer também que reconheceram o Estado da Palestina com base nas fronteiras estabelecidas antes da guerra de 1967, tendo Jerusalém como capital de Israel e de um Estado da Palestina. Todos reafirmaram o direito de existência de Israel e paralelamente pediram a imediata liberação dos reféns mantidos pelo Hamas, assim como também o acesso irrestrito à ajuda humanitária.
Com Espanha, Irlanda e Noruega, 145 países dos 193 membros da ONU reconhecem a Palestina como Estado, inclusive o Brasil. Assim, o processo de formação do Estado da Palestina, diferentemente daqueles outros que foram oriundos na história de guerras civis, dissolução de impérios, emancipações coloniais, só virá a ser concretizado se a comunidade internacional, nos moldes do sistema fundado na Carta da ONU, respeitando toda a normativa internacional já existente, pressione e determine que isso aconteça. Não há outro caminho. Nesse sentido, o primeiro-ministro espanhol afirmou que o reconhecimento das fronteiras não seria feito além do já estabelecido nas resoluções da ONU, mantendo-se, inclusive, a posição na União Europeia sobre o assunto[7].
É verdade que a maior parte dos países da Europa Ocidental e os Estados Unidos não reconhecem ainda o Estado da Palestina, diferentemente da grande parte dos que o fazem que estão no continente africano, asiático e na América do Sul. Todavia, já manifestaram que estão dispostos a reconhecer um dia. Esses países apontam sempre como problema a ser resolvido previamente ao reconhecimento o status de Jerusalém e as fronteiras em si.
De qualquer maneira, Espanha, Irlanda e Noruega deram um passo importante para reafirmar não somente o direito internacional, como a concepção de que é por ele que poderemos enfrentar conflitos e trilhar verdadeiramente um caminho que signifique a estabilidade e a busca pela paz. Pressionar os países envolvidos por meio dos instrumentos que o direito internacional dispõe e que os próprios estados coordenadamente e em cooperação construíram, é a única solução viável. Isso não quer dizer que será fácil ou simplesmente se construirá da noite para o dia, mas, o movimento é necessário e foi demonstrado por esses três países. Afinal, se Israel tem o direito de existir, a Palestina também tem.
[1] Arendt se refere ao conceito de poder que construiu na sua reflexão que originou o seu livro Sobre a violência. Ela conceitua a violência como instrumental e o poder como um concerto coletivo de ações que se encontram no espaço público. O poder corresponde a esse agir coletivo, que permite ao ser humano realizar coisas que não estão ao alcance de indivíduos isolados. A violência, por sua vez, é instrumental, marcada pelo uso de artifícios capazes de conferir maior vigor a uma pessoa ou a um objeto/instituição. A violência, deste modo, é possível de ser individual, enquanto o poder, não.
[2] “O crescimento da cultura judaica deixaria de ser a preocupação de todo o povo; os experimentos sociais teriam de ser descartados como luxos impraticáveis; o pensamento político giraria em torno da estratégia militar; o desenvolvimento econômico seria determinado exclusivamente pelas necessidades da guerra. E tudo isso seria o destino de uma nação que – independentemente de quantos imigrantes ainda pudesse absorver e até que ponto estendesse suas fronteiras (toda a Palestina e a Transjordânia é a reivindicação insana dos revisionistas) – ainda continuaria a ser um povo muito pequeno com números muito inferiores em comparação aos seus vizinhos hostis. Sob tais circunstâncias (…), os judeus palestinos degenerariam em uma daquelas pequenas tribos guerreiras sobre cujas possibilidades e importância a história nos informou amplamente desde a época de Esparta. (in Escritos Judaicos. Barueri, SP: Amarilys, 2016, p. 664-665)
[3] In Escritos Judaicos. Barueri, SP: Amarilys, 2016, p. 670.
[4] Para maiores informações ver https://fundacaopodemos.org.br/blog/genocidio-crimes-contra-a-humanidade-e-crimes-de-guerra-do-que-afinal-estamos-falando-uma-breve-reflexao-sobre-esses-conceitos/; último acesso em 29 de maio de 2024.
[5] Para maiores informações ver https://fundacaopodemos.org.br/blog/acervo-tematico-a-resolucao-do-conselho-de-seguranca-da-onu-demandando-cessar-fogo-e-o-conflito-em-gaza/; último acesso em 29 de maio de 2024.
[6] Para maiores informações ver https://fundacaopodemos.org.br/blog/acervo-tematico-os-pedidos-de-mandado-de-prisao-contra-netanyahu-e-os-lideres-do-hamas-no-tribunal-penal-internacional/; último acesso em 29 de maio de 2024.
[7] Dentro da União Europeia há grande polêmica sobre o reconhecimento do Estado da Palestina. A maioria dos países que reconhece são os da Europa Central e Oriental. São países que, por conta do período comunista, apresentavam proximidade ideológica ao antigo líder Yasser Arafat da OLP.