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Genocídio, crimes contra a humanidade e crimes de guerra, do que afinal estamos falando? Uma breve reflexão sobre esses conceitos.

Genocídio, crimes contra a humanidade e crimes de guerra, do que afinal estamos falando? Uma breve reflexão sobre esses conceitos.

O conflito que perdura no Oriente Médio envolvendo o governo de Israel e o grupo terrorista Hamas tem perdurado e assim produzido uma série de vítimas, sofrimento e destruição. Gaza está praticamente destruída. As vítimas palestinas passam de 30 mil, entre mulheres, idosos e crianças. Foram mais de mil israelenses mortos pelos ataques do Hamas. Em meio a todo esse horror, surgiu o debate sobre que tipos de crimes poderiam estar acontecendo no conflito, cometidos tanto pelas forças armadas de Israel, quanto pelo Hamas. Muitas dúvidas e confrontos acalorados marcaram presença no espaço público, envolvendo ideologias e misturando-se, inclusive, as opiniões sobre o conflito com as questões de âmbito doméstico. A recente fala do presidente Lula comparando as ações das forças armadas israelenses com o que os nazistas fizeram na Segunda Guerra Mundial deixou o debate mais agressivo ainda, principalmente nas redes sociais, onde pseudo-especialistas opinam com pretensa autoridade a cada minuto sobre todo e qualquer assunto sem maiores informações e reflexões.

Diante disso, é importante dar um passo para trás, buscar se informar para que se possa compreender. Quando estamos falando de genocídio, crimes de guerra e crimes contra a humanidade, afinal, do que estamos falando? Onde eles se encontram normatizados e tipificados? Do que tratam eles?

Esses crimes são tratados pelo que se denomina Direito Internacional Penal, que é o direito que busca responsabilizar individualmente pessoas que tenham cometido crimes de natureza internacional, que ofendem não um nacional de um Estado ou o cidadão de outro qualquer, mas sim a humanidade. A vítima desses crimes, na realidade, é a própria humanidade, violada no corpo daqueles que padecem dos atos tipificados no Estatuto de Roma.

O Estatuto de Roma é o tratado que cria o Tribunal Penal Internacional, fruto de uma longa construção que se deu após os horrores da Primeira e da Segunda Guerra Mundiais, cujo amadurecimento em 1998, ano de sua criação, teve como antecedentes as experiências dos Tribunais de Nuremberg, Tóquio, o Tribunal para Ruanda e o para a Ex-Iugoslávia. Ou seja, não foi algo que surgiu do dia para noite, mas que foi sendo paulatinamente construído para que se pudesse haver uma resposta dada aos crimes extremamente graves cometidos principalmente por figuras detentoras de poder político, em situações de conflito.

O Direito Internacional Penal existe, portanto, para punir pessoas e não o Estado em si, tal como ocorre tradicionalmente no Direito Internacional Público. Embora também esteja estabelecido em Haia, o Tribunal Penal Internacional não deve ser confundido com a Corte Internacional de Justiça. Esta serve para solucionar litígios entre os Estados e seu estatuto foi concluído em 1945, junto à Carta das Nações Unidas.

O Tribunal Penal Internacional é um órgão permanente, construído em 1998 por meio de um tratado, na cidade de Roma (daí ser conhecido como Estatuto de Roma), tendo entrado em vigor em 01 de julho de 2002. Parafraseando o internacionalista Antonio Cassese (1999), trata-se de uma instituição definida pelos Estados soberanos, que permite que seus nacionais possam ser submetidos a uma jurisdição internacional criminal. Vale apontar que o Tribunal tem um caráter complementar. Isto é, não se sobrepõe à jurisdição dos Estados, mas atua quando estas não podem ou não são capazes de processar os acusados dos crimes que estão definidos como de sua competência.

Assim, os crimes que estão sob a jurisdição do Tribunal Penal Internacional são: crimes de guerra, crimes contra a humanidade, crimes de agressão e o crime de genocídio, considerados, em si, os crimes mais graves que existem na seara internacional e tipificados no Estatuto. Nesse sentido, vale apontar que existem outros crimes de natureza internacional, como por exemplo a pirataria, o terrorismo e o tráfico internacional de drogas. Todavia, esses são tratados por outras normativas internacionais e não estão sob a competência do Tribunal de Haia.

Crimes de guerra são aqueles que violam as normas e os costumes de guerra, também conhecidos no conjunto que compõe o chamado Direito Internacional Humanitário, mais precisamente as Convenções de Genebra de 1949. Tradicionalmente os conflitos sempre foram considerados como aqueles entre Estados, mas esses crimes podem ocorrer em conflitos internos (art. 8 do Estatuto de Roma). Exemplos de crimes de guerra são: crimes contra civis e não combatentes em geral; tortura ou outros tratamentos desumanos, incluindo as experiências biológicas; ataques a edifícios não militares; ataques que infligem dor ou sofrimento excessivo aos civis; ataques contra propriedades privadas como a destruição ou a apropriação de bens em larga escala, quando não justificadas por quaisquer necessidades militares e executadas de forma ilegal e arbitrária; dirigir intencionalmente ataques ao pessoal, instalações, material, unidades ou veículos que participem numa missão de manutenção da paz ou de assistência humanitária, de acordo com a Carta das Nações Unidas, sempre que estes tenham direito à proteção conferida aos civis ou aos bens civis pelo direito internacional aplicável aos conflitos armados; uso de métodos e meios proibidos pelo direito; uso de crianças como soldados; transferência forçada de populações em territórios ocupados; lançar intencionalmente um ataque, sabendo que o mesmo causará perdas acidentais de vidas humanas ou ferimentos na população civil, danos em bens de caráter civil ou prejuízos extensos, duradouros e graves no meio ambiente que se revelem claramente excessivos em relação à vantagem militar global concreta e direta que se previa; cometer atos de violação, escravidão sexual, prostituição forçada, gravidez à força, esterilização à força e qualquer outra forma de violência sexual que constitua também um desrespeito grave às Convenções de Genebra; utilizar a presença de civis ou de outras pessoas protegidas para evitar que determinados pontos, zonas ou forças militares sejam alvo de operações militares; provocar deliberadamente a inanição da população civil como método de guerra, privando-a dos bens indispensáveis à sua sobrevivência, impedindo, inclusive, o envio de socorros, tal como previsto nas Convenções de Genebra; dentre outros.

Importante ressaltar que para a configuração dos crimes de guerra, é necessário que o conflito, seja interno ou não, tenha caráter armado. De qualquer maneira, são crimes cuja natureza viola a humanidade, atrozes por natureza e definição. Seus agentes podem ser militares ou civis que estejam envolvidos desde a tomada de decisão dos atos até a execução efetiva de cada um deles. Ou seja, não se trata de apenas punir o soldado que está na frente de batalha, mas também generais e políticos, que do alto de suas posições tomam as principais decisões dos movimentos de guerra e se envolvem com esses crimes.

Já os crimes contra a humanidade são aqueles cometidos no quadro de um ataque, generalizado ou sistemático, contra qualquer população civil, não combatente, havendo conhecimento desse ataque. São eles: homicídio; extermínio; escravidão; deportação ou transferência forçada de uma população; prisão ou outra forma de privação grave da liberdade física; tortura; agressão sexual, escravatura sexual, prostituição forçada, gravidez forçada, esterilização forçada ou qualquer outra forma de violência no campo sexual de gravidade comparável; perseguição de um grupo ou coletividade que possa ser identificado, por motivos políticos, raciais, nacionais, étnicos, culturais, religiosos ou de gênero, ou em função de outros critérios universalmente reconhecidos como inaceitáveis no direito internacional; desaparecimento forçado de pessoas; crime de apartheid; outros atos desumanos de caráter semelhante, que causem intencionalmente grande sofrimento, ou afetem gravemente a integridade física ou a saúde física ou mental.

É importante esclarecer que por extermínio, o Estatuto de Roma dispõe compreender a sujeição intencional a condições de vida, tais como a privação do acesso a alimentos ou medicamentos, com vista a causar a destruição de uma parte da população. Ou seja, existem uma série de condutas omissivas que podem configurar o extermínio. Não é apenas a ação armada e direta que configura esse grave crime contra a humanidade. No mesmo diapasão, esclarece o Estatuto que o crime de apartheid compreende qualquer ato desumano, análogos aos definidos por ele, praticado no contexto de um regime institucionalizado de opressão e domínio sistemático de um grupo racial sobre um ou outros grupos nacionais e com a intenção de manter esse regime.

Os crimes contra a humanidade são, portanto, aqueles que ferem, como já apontado, a dignidade da pessoa humana na sua mais profunda concepção. São aqueles atos que estão na divisa entre a civilização e a selvageria. Podemos pensar que são aqueles crimes que separam o homem moderno do seu estado de violência e desumanização pura. São crimes voltados principalmente para os atos cometidos contra aqueles que não são combatentes e não tem nada que ver com o conflito em si, mas estão no meio dele e são vítimas da situação.

Já o crime de genocídio é definido pelo Estatuto de maneira complexa. Ele é a junção de atos com intenções e objetivos. Ou seja, não é seu elemento a quantidade de vítimas, mas sim a materialização objetiva das ações com intenções definidas. Nesse sentido, é crime de genocídio o homicídio de membros do grupo; ofensas graves à integridade física ou mental de membros do grupo; a sujeição intencional do grupo a condições de vida com vista a provocar a sua destruição física, total ou parcial; a imposição de medidas destinadas a impedir nascimentos no seio do grupo; e a transferência, à força, de crianças do grupo para outro grupo. Todos esses atos cometidos têm a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso.

Desta forma, o genocídio não se configura de maneira simples, pois ele é uma composição de elementos objetivos que acontecem com uma intencionalidade, podendo cada um desses atos ser cometidos de maneira comissiva ou omissiva. Por exemplo, é possível cometer ofensas graves à integridade física ou mental de membros de um grupo por meio do bloqueio proposital de assistência humanitária. É possível por meio de um “não deixar ajudar”, isolar membros do grupo para que morram de doenças e fome. A principal ideia que envolve o genocídio é, todavia, a ideia de um grupo. Isto é, um grupo que passa a ser perseguido e eliminado. Contudo, as formas com que isso tudo se materializa são múltiplas, tais como definidas pelo Estatuto.

De qualquer maneira, vale lembrar que a Assembleia Geral da ONU, por meio da sua resolução 96(1), caracterizou o genocídio como uma negação ao direito de existência de um grupo humano, assim como o homicídio é a negação do direito de existência de um indivíduo.

Vale ainda anotar que, muito embora o genocídio seja associado ao extermínio direto, ele não precisa da morte imediata dos membros do grupo para que se configure. Afinal, tal como disposto no próprio Estatuto de Roma, existem ações ou omissões que podem vir a resultar numa morte futura e próxima, que são resultado de sérios danos psíquicos ou físicos causados para os membros do grupo atacado. Desta maneira, o genocídio não precisa ser imediato para que seja reconhecido como tal; ele é, em muitos dos conflitos, um processo.

Em relação aos crimes de agressão, estes ainda não foram bem definidos no Direito Internacional. Não há uma definição clara no Estatuto de Roma acerca do que constitui e define a tipificação desses crimes. Continua, portanto, controvertida a definição, que pode vir a ser resolvida numa futura revisão do Estatuto de Roma. De qualquer forma, há uma lacuna acerca desses crimes.

Por fim, antes que se tomem conclusões acerca do que se passa num conflito, é necessário conhecer e compreender. Sem isso, não poderemos fazer as adequadas classificações e tampouco buscar as necessárias e devidas responsabilizações daqueles que cometem atos tão atrozes, que ferem a dignidade, a consciência e a própria decência do ser humano que se julga civilizado. O Tribunal Penal Internacional não surgiu para que potências pudessem usá-lo de maneira conveniente ou para que nações pudessem se afirmar superiores a outras consideradas selvagens, ele surgiu da nossa traumática experiência de violência, horror, sofrimento, destruição e morte. A punição daqueles que cometem esses crimes não é uma punição de natureza política, ou disfarçada de um cinismo fundamentado na divisão de agrupamentos humanos civilizados ou selvagens, que separam os homens entre si, mas sim uma punição fundamentada naquilo que ainda nos faz humanos, na expectativa que temos de tentar aprender a respeitar qualquer pessoa, independentemente de sua origem, seu sexo, sua opinião, sua religião, ou qualquer característica que não seja a nossa. É a punição fundamentada na esperança de que um dia ainda possamos nos tratar com alguma humanidade.

 

 

 

Observação: Esse conteúdo não representa, necessariamente, a opinião da Fundação Podemos.

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