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Um mundo esquecido: o conflito no Sudão  

Um mundo esquecido: o conflito no Sudão  

Parafraseando Hannah Arendt, vivemos tempos sombrios. Apesar de toda a euforia tecnológica e de todos os avanços que tivemos na medicina, principalmente naquilo que toca a luta constante do ser humano em evitar o quanto puder seu encontro com a finitude, vivemos tempos violentos e de alta mortandade. Contrariamente a uma perspectiva positiva sobre um sentido hegeliano do curso da aventura humana na terra, nosso progresso como humanidade não parece ser nada promissor e tampouco duradouro. Os inúmeros conflitos espalhados pelo mundo somados à crise climática e ao aquecimento global não configuram uma visão otimista sobre o que estamos fazendo no planeta.

Se o século XX foi um dos mais violentos da história, repleto de genocídios e guerras travadas praticamente em todos os seus dias, o século XXI não se apresenta, em hipótese alguma, como mais pacífico. Muito pelo contrário, promete, pelo menos em suas primeiras três décadas, competir à altura com seu antecessor. Aliás, se no século XX as quatro primeiras décadas foram avassaladoras por conta da primeira grande guerra, da ascensão do nazifascismo e da segunda grande guerra, todas as demais foram violentas.  Em um contexto bipolar cunhado como “frio” por um certo cinismo hipócrita, as décadas que concretizaram a segunda metade do século XX foram repletas de conflitos “muito quentes”, travados em territórios distantes das duas potências que, assim como Portugal e Espanha, dividiam o mundo sem nenhum testamento recebido das mãos de Adão. Ditaduras truculentas espalhadas pelas américas, guerras de independência e descolonização, genocídios em Ruanda, na Ex-Iugoslávia e no Camboja, massacres de povos indígenas na centro-américa, atentados terroristas, apartheid e leis raciais configuraram um século que no imaginário ocidental mais ingênuo foi marcado pelo avanço dos direitos humanos, das liberdades públicas e do bem-estar da humanidade, como uma espécie de marcha triunfal inafastável após a vitória sobre Hitler.

O século XXI, a seu turno, parece estar decidido a dar um choque de realidade para o mundo ocidental, para retirá-lo desse conforto ingênuo, ao desnudar-se cruamente violento, brutal e catastrófico. A invasão da Ucrânia causa preocupação por conta dos delírios czaristas de uma Rússia de apetite imperial, mas agora nuclear. O avanço da extrema direita encanta os projetos lucrativos das Big Techs, onipotentes e oniscientes, sem freios e não regulamentadas. Além disso, a direita radical retoma um repertório repleto de promessas de ajustes violentos contra inimigos objetivos e imaginários, desonestamente construídos no obscurantismo e no racismo de espírito colonizador, que abala os alicerces das democracias constitucionais. O morticínio sombrio no Oriente Médio diante de uma guerra que Israel parece não parar enquanto não arrastar o Irã para dentro domina o noticiário e as discussões na Assembleia Geral e no Conselho de Segurança da ONU.

Inúmeras tensões e conflitos seguem em curso. Contudo, alguns permanecem anônimos, escondidos, repletos de horrores e de crimes que atentam contra a dignidade humana. Um desses é a guerra entre dois grupos militares que assola o Sudão. Por qual motivo conflitos como esses ficam tão à margem das preocupações internacionais? Por qual razão temos uma seletividade entre aquilo que choca, que é inadmissível em um lugar do planeta e aquilo que praticamente não importa, mesmo que estejamos falando de vidas, de mulheres e crianças inocentes. O conflito no Sudão é talvez um dos horrores mais ignorados do século XXI.

A guerra entre as facções militares teve início em 15 de abril de 2023, envolvendo as Forças Armadas Sudanesas (FAS) e as Forças de Apoio Rápido (FAR). Diferentemente do que muitos escrevem, não se trata de uma guerra propriamente civil, mas sim de uma disputa de poder entre militares, sem o apoio real de civis sudaneses. Ou seja, é realmente uma luta pelo poder entre dois homens, que envolve e consome todo o país. Um deles é o general Abdel Fatah al-Burhan, o governante de fato do Sudão. O outro Mohamed Hamdan Dagalo, conhecido como Hemedti, paramilitar que controla uma milícia.

Burhan tornou-se conhecido em 2019, logo após o exército sudanês ter derrubado o ditador Omar al-Bashir, após meses de convulsões e protestos. Burhan era aliado de Bashir, tendo auxiliado o ex-ditador nas campanhas atrozes e criminosas durante o conflito de Darfur, entre os anos de 2003 e 2008. Com a queda do seu antigo chefe, Burhan presidiu o Conselho Militar de Transição que deveria supervisionar a mudança de regime da ditadura para a democracia no Sudão. Contudo, ao invés de fazer o que dele se esperava, resolveu dar um golpe e se perpetuar no poder. Em outubro de 2021 Burhan derrubou o primeiro-ministro civil Abdalla Hamdok e colocou um fim nas aspirações do Sudão em fazer uma transição democrática.

Hemedti, diferentemente de Burhan, é oriundo de uma família de pastores de camelo, que subiu na hierarquia militar, tornando-se líder da milícia Yanyawid, antecessora daquilo que viria a ser as FAR, acusada de cometer crimes contra a humanidade em Darfur durante o conflito que custou 300 mil vidas e provocou o deslocamento forçado de 2,7 milhões de pessoas. A milícia Yanyawid foi, inclusive, parceira de Bashir contra os rebeldes de Darfur, que insurgiram contra o governo de Cartum. Ou seja, Bashir e Hemedti foram aliados em um dos conflitos mais assustadores do recém-chegado século.

No ano de 2013 Hemedti se tornou o líder do grupo paramilitar recém-criado FAR, que com frequência auxiliou Bashir na repressão aos protestos que levaram à sua queda. Entretanto, ainda no governo de Bashir, cresceu a preocupação de que as FAR poderiam se tornar mais poderosas do que as forças oficiais do país. Mesmo diante disso, no ano de 2017 foi aprovada uma lei que deu reconhecimento às FAR como força de segurança independente. Com Burhan no poder, Hemedti foi nomeado vice-líder do Conselho Militar de Transição. Suas empreitadas militares o fizeram ganhar aliados na Rússia e no Golfo, principalmente em razão do fato do grupo paramilitar ter sido enviado para combater no Iêmen ao lado da coalização comandada pela Arábia Saudita.

Com o aumento de seu poder, Hemedti foi nomeado chefe do Conselho Soberano do governo de Cartum, o que fez dele o segundo homem mais poderoso do Sudão, logo depois de Burhan. Assim, o que acontece no Sudão hoje é a disputa pelo poder entre os dois homens mais poderosos do país. As Forças Armadas do Sudão, comandadas por Burhan, enfrenta as Forças de Apoio Rápido, lideradas por Hemedti. É verdade que ambos possuem redes de apoio, uma vez que interesses econômicos podem estar por detrás do conflito.

O Sudão é um país que possui consideráveis reservas de ouro, que interessam, dentre outros, principalmente à Rússia. Bashir, inclusive, foi um entusiasta de Vladimir Putin. Em 2017 ambos se encontraram e o ditador sudanês afirmou que o Sudão poderia ser a porta de entrada da África para a Rússia. Há quem diga que os russos exploram em parceria com as FAR minas sudanesas por meio de empresas de mineração de fachada. Nesse sentido, seriam próximos de Hemedti. Além da Rússia, o Egito tem interesses no Sudão e já manifestou apoio a um governo de Burhan. Egito e Sudão já realizaram exercícios militares em conjunto durante a administração de Burhan e o país do norte da África normalmente envia assistência humanitária para o Sudão. Junto ao Egito, a Arábia Saudita também já demonstrou apoio a Burhan.

Hemedti, além da Rússia, possui relações amistosas com a Eritreia, Etiópia e o Iêmen, onde suas milícias atuaram sob seu comando. Conta também com o apoio dos Emirados Árabes Unidos.

A guerra entre as FAS e as FAR já fez inúmeras vítimas e provocou o deslocamento forçado de milhões de pessoas. Diversos crimes contra a humanidade estão em curso nesse momento. Uma maternidade foi bombardeada e seu teto desabou sobre todos os bebês que nela estavam. Campos de refugiados têm sido alvo de ataques, execuções em massa deixam as ruas cheias de cadáveres. Além disso, há frequentes relatos de abusos sexuais e estupros sistemáticos. Estima-se que desde o início do conflito mais de 16 mil pessoas já morreram e praticamente 10 milhões foram forçadas a deixarem suas moradias. A OIM (Organização Internacional para a Migração das Nações Unidas) apontou que 70% dos deslocados procuram sobreviver em lugares onde podem passar fome. Ou seja, podem estar fugindo da morte para encontrar a morte.

Todo esse grave quadro não tem apresentado sinais de melhora. A violência persiste e os dois grupos, liderados pelos dois autores de crimes contra a humanidade, não parecem ceder na brutalidade. O cenário se agrava pelo fato de que esse conflito parece ser um fantasma completamente esquecido pelo resto do mundo. Tanto que há pouca, realmente muito pouca, ajuda humanitária destinada ao Sudão. A ONU tem relatado que a que recebeu, até o presente momento, representa apenas 16% dos 2,7 bilhões necessários para auxiliar todas essas vítimas.

Mas, por quais motivos há tanto desinteresse em relação ao Sudão, se compararmos com a energia e atenção dada ao que está acontecendo em Gaza e na Ucrânia? É importante se afirmar que em nenhum momento o mundo precisa diminuir a atenção dada a esses dois outros brutais conflitos. Não se trata disso; não estamos, em hipótese alguma, desejando hierarquizar e minimizar o sofrimento daqueles que padecem no leste europeu e no Oriente Médio, mas sim entender por que alguns conflitos importam para o mundo e outros não. Afinal, a própria ONU tem insistido que pouca ajuda tem sido enviada ao povo sudanês, que vive um verdadeiro inferno.

As respostas para essa falta de interesse e para a invisibilidade do conflito podem estar centradas numa própria visão racista e eurocêntrica de mundo. Afinal, diferentemente do conflito em Gaza e na Ucrânia, nenhum país europeu está diretamente, frontalmente, preocupado com o que acontece no Sudão. Não há todo um jogo político entrelaçado envolvendo Israel e EUA de um lado, Rússia e China de outro e os ponteiros que se movimentam no Oriente Médio e no leste europeu. Além dessa hipótese, é possível levantar a ideia de que por se tratar de um conflito interno por poder e não de uma nação atacando a outra, a atenção do mundo se torne consideravelmente menor.

Não podemos descartar a concreta, real e inegável visão negativa que o mundo Ocidental tem em relação à África, ao se sensibilizar menos com as tragédias que o continente vive, por existir uma espécie de banalização da barbárie em tudo que toca a realidade africana. É a velha ideia incrustrada pela era dos impérios coloniais de que a violência e a brutalidade são condições naturais da realidade africana. Quando a violência é naturalizada, ela se torna menos chocante. Afinal, a brutalidade contra quem não está acostumado com ela, choca muito mais do que aquela cujos livros de história ensinaram serem a rotina dos povos africanos. Ao ler uma nota no jornal sobre o conflito, o leitor é capaz de dizer: “fazer o quê? É a África”.

Além disso tudo, a desumanização das vítimas, que são condenadas pelo mundo ao esquecimento eterno no minuto seguinte em que suas vidas lhe são tiradas, faz com que os mortos no Sudão se tornem uma massa amorfa, sem rosto, sem qualquer relação de parentesco com pessoas que vivem no mundo rico. É a desindividualização, a falta de relatos, histórias e rosto das famílias que perderam entes contando ao mundo a dor que sentem. Desta maneira, as vítimas no Sudão passam a formar um conjunto sem rosto, composto por anônimas crianças, mulheres e homens sudaneses executados, que passam de maneira asséptica para o planeta.

Enfim, o esquecimento do Sudão impede não só que o mundo ajude a pressionar os dois grupos a chegarem a um cessar fogo, como também dificulta o acesso à ajuda humanitária e o esforço civil global para que as atrocidades cessem. Parece que a vergonha da herança colonial racista ainda persiste. É muito possível que o leitor que chegou até essa linha diga em voz alta para si mesmo, confirmando, sem perceber, a assepsia de sua reação e a normalização do horror: “Racismo? Que bobagem! É a África! Novamente vamos falar de racismo e colonização como se o Ocidente fosse culpado por todos os conflitos que lá ocorrem agora?”. É verdade, podemos não ser culpados pelo conflito em si, pela ambição de dois grupos em terem o poder, mas somos culpados pela nossa seletividade e por escolhermos as vítimas que merecem a nossa empatia e as que não merecem. O mundo precisa lembrar do Sudão e dos sudaneses inocentes nesse século nada promissor, violento, brutal e, como sempre, injusto.

 

Observação: Esse conteúdo não representa, necessariamente, a opinião da Fundação Podemos.

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