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Um diálogo com Gilles Lipovetsky sobre a Sociedade da Decepção

Um diálogo com Gilles Lipovetsky sobre a Sociedade da Decepção

Gilles Lipovetsky nasceu em 1944 em Grenoble, na França. Importante filósofo contemporâneo, é Doutor Honoris Causa pela Universidade de Sherbrooke (Canadá) e pela Nouvelle Université Bulgare (Sofia). Recebeu a prestigiosa condecoração de Cavaleiro da Legião de Honra francesa. É membro do Conselho Nacional dos Programas Educacionais e do Conselho de Análise Social da França, organismo de apoio ao Primeiro-Ministro. Tem publicado inúmeros livros, vários deles já disponíveis no Brasil. Dentre eles, “O império do efêmero”, “A terceira mulher”, “Metamorfoses da cultura liberal”, “O luxo eterno”, “Os tempos hipermodernos”, “A era do vazio”, “A sociedade pós-moralista” e “A sociedade da decepção”.

A Sociedade da Decepção

Gilles Lipovetsky, em sua longa reflexão sobre o tempo em que vivemos, nos relembra Schopenhauer ao apontar que “a vida é um pêndulo que oscila entre o tédio e o sofrimento”. Ou seja, estaria o filósofo alemão com alguma razão diante da sociedade que construímos no mundo ocidental, marcada pela produção, pelo trabalho, pela necessidade de constante crescimento, exigência de sucesso e pelo consumo? Se sim, qual seria ainda o espaço para a busca de alguma “felicidade”? Estaríamos, diante das exigências em se produzir mais e mais, qualificar-se mais e mais, crescer profissionalmente a cada ano, ter sucesso sempre, fadados, então, à frustração e a à decepção, uma vez que, racionalmente, teríamos construído um modelo impossível de ser alcançado por qualquer indivíduo, já que somos falíveis e suscetíveis a inúmeras crises?

Ou seja, como não se sentir desiludido, chocado, penalizado diante das diversas modalidades de democracia liberal, supostamente inspiradas na observância aos direitos humanos, mas que permitem tanto sofrimento impunemente? Como não sentir ansiedade numa sociedade que talvez já não possa mais ser chamada de pós-moderna, mas sim de hipermoderna, principalmente em razão das mudanças tecnológicas, que alcançaram uma velocidade brutal se comparadas ao tempo da nossa vida e ao ritmo das mudanças do passado?

Tudo isso nos joga num caos interno, numa busca incessante por encontrar um sentido e um lugar para fugir do medo do vazio. Contudo, é exatamente esse medo que nos leva à busca do excesso de presença. Não estamos mais na pós-modernidade, mas sim na hipermodernidade: aceleração total; velocidade máxima; sociedade do excesso. Nunca se buscou tanto a magreza e nunca se teve tantos obesos; nunca houve tanta liberdade para a expressão dos desejos e nunca houve tanta depressão; nunca se buscou tanto o prazer e nunca se sofreu tanto por não se conseguir uma vida lúdica.

Vivemos numa sociedade dominada pelo imaginário da comunicação. Estamos na era da mídia e na midiatização da vida. As novas tecnologias invadem tudo e geram uma obsessão de interatividade. É preciso estar sempre conectado. Privado e Público se confundem. As margens que delimitavam a vida e o espaço se tornam confusas e alargadas.

Essa hipermodernidade construiu uma série de ilusões: a utopia do corpo perfeito; da saúde total; da alimentação sempre natural; do necessário politicamente correto; da vida simples e sofisticada; da realização pessoal; da interatividade absoluta; da cirurgia plástica corretiva; da moda como fator de satisfação democrática e da comunicação entre os diferentes.

Estaria, então, o homem hipermoderno preso ao consumo e fadado a frustrar-se?

O homem hipermoderno, nascido do excesso de modernidade, hiperconsumidor e hiperativo, vai além dos objetos que adora e sem os quais não conseguiria viver. Só não pode ir além do seu imaginário. A decepção, portanto, mora ao seu lado.

A civilização do bem-estar de massa levou ao desaparecimento da miséria absoluta, mas acrescentou ao estigma da miséria interior a sensação de subexistência para aqueles que não participam da festa consumista prometida a todos. Nesse sentido, a decepção e o incômodo são praticamente irresistíveis de serem sentidos por cada um de nós. A tendência é de não estar nunca feliz ou satisfeito com o que se é, onde se está, o que se fez ou o que se deseja fazer.

Concomitantemente a essa sensação, objetivamente as desigualdades de ordem econômica ampliaram-se e as dispariedades sociais nos modos de vida saltam aos olhos. Além disso, nossa época é marcada por uma grande desestruturação das culturas de classe. Em síntese, já não existem atributos exclusivos de classe, modos de vida específicos para cada grupo social. Vivemos num contexto em que as diferenciações sociais se reproduzem ao máximo e, simultaneamente, as aspirações da moda, o ideal de bem-estar, os lazeres múltiplos difundiram-se em todos os patamares da sociedade. A ideia de classe social passa a ser uma penumbra idealizada, uma ideia em abstrato, difícil de ser concretizada em termos rigorosos de definição.

Desta maneira, Lipovetsky observa que quanto mais se avolumam os dissabores, os percalços e as frustrações da vida privada, mais a febre consumista irrompe a título de lenitivo, de satisfação compensatória, como um expediente para “reerguer o moral”. Em razão disso, pressagia-se um longo porvir para a febre consumista. É verdade, contudo, que o capitalismo de consumo não criou todas as peças da cultura do novo. A era democrática favoreceu largamente essa tendência, fazendo aparecer um tipo humano “despejado de tradições”, ávido de novidades e de bem-estar. Os prazeres humanos foram desfrutados no âmbito de estruturas sociais e contextos culturais que pouco se alteraram por milênios. A economia moderna de consumo não expressa miraculosamente a verdade do desejo humano. Ao contrário, ela contribui principalmente para estimular o homem, para desvinculá-lo dos preceitos sociais que se reproduziram de geração em geração, e fazê-lo imergir num estado de agitação permanente. Ou seja, um homem que se perde nas referências que se tornaram fugidias. A inquietude é, então, um destino.

Ao passo que vivemos em uma sociedade da superabundância de ofertas e da desestabilização das culturas de classe, são postas as condições propícias para uma individualização extrema das preferências de cada um.

Diante disso, mudar a sociedade já não é mais a questão. A palavra de ordem passa a ser aumentar a qualidade de vida presente, tanto para si como para os mais próximos; ganhar dinheiro; consumir, tirar férias, viajar, se distrair, praticar um esporte, decorar a casa. O antigo sonho dos “grandes salões” extinguiu-se totalmente, e a coisa pública só desperta nas pessoas interesses superficiais e passageiros, efemeramente consumíveis. Todavia, nem por isso as demandas de ordem política cessaram; na verdade, se multiplicaram. Os mesmos que orgulhosamente se desinteressam pela política continuam a nutrir expectativas com relação às melhorias e aos benefícios: previdência, educação, auxílio governamental, proteção do meio-ambiente, correção das desigualdades.

Atenta a isso, a extrema-direita conquistou bastante espaço em nosso panorama político. Esse é um dos grandes méritos da era consumista e hiperindividualista. Devemos estar preparados para um terrível retorno da repressão. É por isso que Lipovetsky anuncia a vinda inexorável de um “fascismo voluntário”. Segundo o autor, a sociedade de fruição, ou do hiperconsumismo, por causa da confusão extrema em que ela nos mergulha, dá origem a uma angústia insuportável. Os indivíduos não mais sabem distinguir o que é bom e o que é ruim, tendo perdido todo e qualquer referencial estruturante (inclusive de classe). Por esse motivo, enxerga a tendência das pessoas exigirem livre e espontaneamente o restabelecimento da ordem. Quer dizer, não mais um terror vindo de fora, mas um fascismo “vindo de dentro”, algo proveniente da exacerbação dos individualismos e da necessidade de se desvencilhar da angústia proveniente da perda das referências.

Querendo sanar sua ansiedade, como reage o Homo democraticus, transformado em Homo psychologicus? Apela para todos os medicamentos farmacológicos e psicológicos disponíveis (psicotrópicos, psicoterapias, acompanhamento pessoal generalizado). Em outras palavras, ele procura soluções particulares para seus problemas particulares. É essa via hiperindividualista – psicológica e ‘química’no lugar de política – que progride a olhos vistos. Sem dúvida será esta a forma mais comum de encontrar uma resposta para esse novo mal-estar na civilização. Por enquanto, nenhum fenômeno observável justifica a hipótese de uma ‘recaída’ em direção ao totalitarismo num futuro próximo. A segunda revolução individualista enfraquece as defesas psicológicas dos indivíduos, mas parece, ainda, favorecer as instituições democráticas.

Assim, Lipovetsky define que a sociedade da decepção é aquela na qual os indivíduos sentem dificuldade em admitir o próprio desapontamento ou insatisfação. Ou melhor, não conseguem elaborar ou entender a origem da própria decepção.

No entanto, o pensador francês adverte que nada disso pode servir de pretexto para pôr a globalização capitalista no banco dos réus, enquanto fenômeno que levou a uma evidente diminuição dos índices de pobreza e concorreu para a alfabetização de milhões de indivíduos. Efetivamente, não existe uma só modalidade de economia de mercado. Para ele, nossa missão é edificar uma globalização menos anárquica e mais preocupada com a justiça social. Quanto às formas para atingir esse objetivo, o movimento contrário à globalização não tem nada a declarar: apenas levanta problemas, sem propor nenhuma saída viável (é o que faz a extrema-direita com sua proposta destrutiva). Os negacionismos são apenas demolidores, assemelhando-se a uma criança que grita, atira seus brinquedos por toda a sala, mas não consegue pensar nenhuma saída para aplacar a sua frustração. Assim, não será pelo radicalismo encantador do antiliberalismo econômico (um neofascismo?) que conseguiremos traçar as grandes linhas de uma outra globalização, mas sim pela própria racionalização do capitalismo. As saídas antissistêmicas e construtoras de inimigos objetivos podem ser sedutoras, mas são inúteis e principalmente destrutivas.

Observação: Esse conteúdo não representa, necessariamente, a opinião da Fundação Podemos.

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