Toda reunião de cúpula no âmbito internacional envolve uma somatória complexa de interesses, que na maioria das vezes não convergem ou possuem pontos de discordância capazes de tornar qualquer negociação uma complexa tarefa para o exercício da diplomacia. Desta forma, é natural que qualquer declaração fruto de uma rodada de negociações envolvendo diferentes países seja, na realidade, o resultado do consenso possível e não da unanimidade. Além disso, em tempos de graves conflitos e reagrupamentos da realidade da política internacional, qualquer negociação assume um caráter mais difícil ainda. Não é por outro motivo que diversas delas demandam tempo para que acordos efetivos sejam produzidos ou mesmo declarações sejam proferidas.
Muitos interesses, poucos consensos
Não foi outra a realidade da reunião do G20 realizada na cidade do Rio de Janeiro sob a liderança do estado brasileiro. A declaração que resultou do encontro foi fruto do que podemos denominar de diplomacia do possível e de máximo alcance. Ou seja, naquilo que poderia avançar, teve efeito, e naquilo que dificilmente avançaria, foi insuficiente.
Em relação ao aquecimento global e às mudanças climáticas pouco realmente foi efetivo. É verdade que a declaração do presidente brasileiro correspondeu retoricamente ao que se esperava, mas foi logo desacreditada com a liberação do uso de armas norte-americanas pelo presidente Joe Biden no conflito envolvendo a Ucrânia e a Rússia. Afinal, se o presidente Lula apontou que muito dinheiro estava sendo gasto nos conflitos e que tudo isso poderia ser mais bem utilizado no combate contra a fome e as questões climáticas, a liberação do uso de armas funcionou como uma espécie direta de descrédito.
De qualquer maneira, a declaração final envolveu os temas que a diplomacia brasileira mais trabalhou para que estivessem no texto; isto é: o combate à fome, a transição energética e a reforma das instituições globais. Diante disso, não se pode negar que o Itamaraty tenha feito um bom trabalho, conseguindo costurar entre os representantes um texto difícil em um momento complicado das relações internacionais.
Aliança Global pelo Combate à Fome como prioridade brasileira
O ponto mais efetivo da declaração foi, sem sombra de dúvidas, o combate à fome. Em uma empreitada surpreendente, o governo brasileiro conseguiu capitanear uma aliança global contra a fome no mundo. Aliás, aqui vale muito ressaltar o posicionamento isolado da Argentina, que, de maneira constrangedora, teve que ceder e aderir à aliança para não ter sozinha o custo da derrota de sua diplomacia. A tensão entre Milei e Lula foi evidente, mas, desta vez, a diplomacia brasileira deu uma boa lição de que quando o alinhamento ideológico toma a frente do pragmatismo, a política externa sofre revezes desnecessários. Vale sempre o adágio: a boa diplomacia envolve a capacidade de transformar necessidades internas em possibilidades externas.
Assim, a Aliança Global Contra a Fome e a Pobreza contou com a adesão de 82 países, tendo sido o ponto mais forte da Declaração final da cúpula. Contudo, a chance dela não passar de mera retórica diplomática é grande. Dessa forma, a vitória de hoje pode ser o constrangimento de amanhã se não houver qualquer resultado efetivo, mensurável e notável, dessa aliança. Isso será motivo de cobrança logo no ano que vem, na reunião que será realizada na África do Sul.
Mudanças climáticas: Um tema que merecia mais atenção
No tema das mudanças climáticas e do aquecimento global a vitória da diplomacia brasileira não foi assim tão considerável. Muito pelo contrário, a Declaração final deixou claro o quanto apesar de todas as catástrofes espalhadas pelo globo o tema ainda não ganhou a unanimidade da comunidade internacional. A resistência ainda é muito grande entre os países mais poluidores em financiarem os mais pobres concomitantemente à promessa de redução de suas emissões de gases. A meta de aquecimento do planeta em 1,5°C parece que será ultrapassada em menos tempo do que esperávamos. Especialistas no assunto continuam chocados com a falta de sensibilidade para aquilo que pode ser o ponto de não retorno em relação às mudanças do clima e suas consequências para a vida humana na Terra.
Nesse sentido, foi simbolicamente constrangedora a visita de Joe Biden à Amazônia. Embora tenha sido histórico o fato de ele ter sido o primeiro presidente dos EUA em exercício a visitar a região da floresta mais importante do planeta, a doação dada pelo país foi insignificante diante dos gastos militares envolvendo o conflito no Oriente Médio. Logo foi apontado por diversos veículos de informação que a somatória destinada para a proteção da floresta é o equivalente ao gasto de um dia com armamentos destinados para Israel.
Aliás, o mero fato de Joe Biden ter somente visitado a Amazônia no final de seu governo, já diante da proximidade da futura administração de Donald Trump, declaradamente negacionista e não adepta ao tema, demonstra o quanto os EUA não estão assim tão engajados e o quanto ainda falta um consenso sobre o assunto. Se Biden realmente considerasse crucial essa visita, teria a feito muito antes.
Diante do horror da guerra, o silêncio diplomático
Em relação aos dois conflitos mais graves da atualidade, pouco foi realmente dito na Declaração final. Em relação à Ucrânia, nada foi mencionado em relação à necessidade de manter a sua integridade territorial. Além disso, em nenhuma linha a Rússia foi citada como agressora. Isso foi, aliás, motivo de críticas por parte dos países da União Europeia em relação ao governo brasileiro, que apresenta uma relação ambígua com o conflito em razão da sua proximidade com a Rússia e os interesses econômicos que envolvem os dois países, ambos membros dos Brics. Nesse sentido, é completamente plausível apontar que houve, nesse ponto, uma vitória da diplomacia russa no Rio de Janeiro.
Em relação ao conflito no Oriente Médio, Israel também foi poupado de críticas. No documento afirmou-se a necessidade de uma saída por meio da formação de dois estados, assim como também a necessidade de se viabilizar a assistência humanitária para a região. Nesse tema, as duras palavras do presidente brasileiro em relação a Israel não se fizeram presentes. Se outrora o presidente Lula acusou Israel de cometer crimes contra humanidade e genocídio, na Declaração o silêncio diplomático prevaleceu.
O sonho brasileiro pelo assento permanente no Conselho de Segurança da ONU
No que toca à necessidade de reforma das instituições globais muito pouco foi realmente dito. A demanda brasileira por uma vaga permanente no Conselho de Segurança da ONU com poder de veto parece um sonho muito distante de ser atingido. Não há qualquer movimentação concreta que indique que os atuais cinco membros permanentes irão pulverizar seu poder e compartilhá-lo com o Brasil e outros países. De qualquer maneira positivo foi o ponto de que é necessário abordar esse tema para que as representações institucionais sejam mais justas e equilibradas.
Perspectivas
Por fim, embora tenha sido uma inegável vitória diplomática a realização de uma Declaração em conjunto, mesmo com todas essas contradições e detalhes, é importante que as negociações permaneçam e que as sociedades civis exerçam pressão para que avanços possam ser realmente sentidos. Se para os críticos mais contundentes uma Declaração como a que foi obtida apenas mostra um mundo cínico e pouco interessado em avançar nos temas que retoricamente discute, para aqueles que buscam encontrar elementos capazes de sedimentar o caminho para um futuro melhor, ela foi um ponto de partida importante para que o trabalho continue na África do Sul, que sediará a cúpula no ano que vem.
A diplomacia nunca foi tarefa fácil, tampouco o consenso em temas tão complexos e polêmicos quanto os que foram tratados. Se o possível de hoje ainda não é o bastante, é necessário transformar o impossível que vivemos atualmente no possível de amanhã. Essa é a tarefa da boa diplomacia e dos grupos de pressão.