Embora muitos homens a encarem como algo heroico, glorioso ou até mesmo uma manifestação viril, a guerra sempre foi um dos maiores atos de estupidez humana. Não somente por conta dos horrores que se entrelaçam em sua essência, mas principalmente em razão das vítimas inocentes que fabrica. Vítimas que nada tem a ver com ela, que não a desejaram, não a escolheram, são condenadas pelas decisões de homens que na maior parte das vezes dela distante ficam, em seus gabinetes, fardados em trajes ridículos, inebriados da mais pura e imbecil ilusão de que estão escrevendo seus nomes na história. Quem diz que a guerra não tem rosto se engana. Ela tem, pois fica marcada para sempre nas vidas das mulheres e das crianças que perdem seus maridos, amantes, companheiros, pais, tios, avós ou simplesmente são vítimas de bombardeios criminosos e ataques covardes, que as deixam traumatizadas ou com graves sequelas físicas. O trem italiano da felicidade é justamente um filme que conta de uma maneira belíssima e lírica um pouco da história dessa face da guerra.
Talvez um dos filmes mais bonitos do ano de 2024, O trem italiano da felicidade se passa na Itália de 1946, que tenta se reerguer dos escombros da segunda guerra mundial, enquanto a disparidade entre o sul e o norte do país se aprofunda. Dirigido pela italiana Cristina Comencini e com um elenco formidável, o filme é uma adaptação do livro Crianças da Guerra de Viola Ardone, publicado em 2021.
Logo nas primeiras cenas do filme conhecemos Amerigo Speranza, interpretado por Stefano Accorsi, na maturidade, e o surpreendente menino Christian Cervone, durante a sua infância. O maduro Amerigo de 1994 é um consagrado violinista que está prestes a se apresentar em um concerto. No camarim, em um breve instante antes do início de sua apresentação, recebe um telefonema de sua mãe. Sua mãe lhe informa algo que o deixa sem reação. Sua assistente, ao adentrar-se no local, ao vê-lo em silêncio e com o olhar distante, pergunta se tudo está bem; ao que ele a responde: minha mãe morreu. Um pouco em um estado de choque e visivelmente emocionado, ele decide não cancelar o concerto. Ao subir no palco se depara com o menino pobre da cidade de Nápoles. Junto a ele voltamos a Itália de 1946.
Até hoje a Itália tem a sua divisão entre o norte muito rico e desenvolvido e o sul mais pobre e atrasado. Logo no pós-guerra a situação era tão profunda, que medidas foram tomadas para tentar salvar as crianças sulistas da fome e da miséria. Amerigo, filho de Antonietta, vivida pela ótima atriz Serena Rossi, cujo marido havia morrido na guerra, era uma dessas crianças que lutava diariamente para ter o que comer. Sua mãe cuidava dele sozinha, sem emprego e sem amparo. A maioria das crianças napolitanas encontrava-se nessa situação.
Pessoas ligadas ao partido comunista italiano resolveram tomar uma medida drástica para salvar essas crianças da fome. Elas criaram uma espécie de programa social em que famílias do norte adotariam as crianças do sul temporariamente para que pudessem comer, frequentar a escola e ter alguma esperança. Colocadas em um trem, deixariam suas mães, na grande maior parte viúvas, para depois voltarem.
Antonietta vive com Amerigo em praticamente um pequeno quarto. Ela tenta sobreviver vendendo tabaco e café, que consegue por meio de um criminoso conhecido por cabeça de ferro. Apesar das aparências, Amerigo é um menino sensível e inteligente, que tenta ajudar a mãe e viver a sua infância ao mesmo tempo na dura realidade a eles imposta. Quando tem notícia da proposta dos membros do partido comunista, Antonietta decide enviar Amerigo. A dor da separação de ambos é marcada pela incompreensão de Amerigo, que não consegue entender por qual motivo a mãe está o afastando e a dificuldade de Antonietta em demonstrar todo amor que sente pelo filho.
Curiosamente, a ignorância e as notícias falsas correm rapidamente entre as mães desesperadas em dar um futuro para seus filhos e as pequenas crianças, que acham que estão sendo mandadas para a Sibéria ou simplesmente para serem devoradas pelos comunistas. Em meio a isso tudo, Amerigo pega o trem e chega na cidade de Módena. Dentre as crianças é o único a não ter os pais adotivos esperando na plataforma de trem para buscá-lo. Diante disso, os organizadores da ação coletiva pedem para a solitária Derna, uma militante do partido comunista que vive em luto por conta da perda de seu companheiro na guerra, que cuide do menino. Derna reluta porque simplesmente não sabe o que fazer. Nunca esteve preparada para exercer o papel de mãe. Mas, acaba aceitando cuidar de Amerigo durante os meses de sua estadia no norte.
A partir desse momento Amerigo vai conhecendo um pouco mais de Derna e ela um pouco mais do menino, que também, aos poucos, vai sendo inserido na comunidade ao redor dela e tendo contato com os meninos daquela parte do país. O desenvolvimento da relação de ambos é sutil, belo e marcado pela ternura que desabrocha quando a vida parece não ter mais qualquer tipo de esperança a oferecer. Em meio ao afeto que cresce entre Derna e o menino, a dor da separação pelo seu retorno a Nápoles se mistura com a alegria do encontro com Antonietta. Mas, o menino que um dia entrou naquele trem, já não era mais o mesmo.
O trem italiano da felicidade é, assim, um filme que vale muito a pena. A beleza que se esconde em suas cenas só não supera o delicado e inteligente diálogo que poetiza as dificuldades enfrentadas pelas vítimas silenciosas do conflito brutal. Em tempos tão terríveis como os que vivemos, com conflitos espalhados pelo mundo, O trem italiano da felicidade é um lembrete sereno, mas certeiro de que as crianças são as maiores vítimas de qualquer conflito, seja na Itália da segunda guerra, ou em Gaza em pleno século XXI.