A Alemanha vive uma tensão política por conta da extrema-direita, que se movimenta nas eleições do país. Pelo terceiro final de semana seguido, protestos foram feitos nas ruas contra a Afd (Alternativa para a Alemanha), partido de extrema-direita ligado a figuras neonazistas. Em Düsseldorf, por exemplo, capital do Estado da Renânia do Norte-Vestfália, mais de 100 mil pessoas estiveram nas ruas para protestar contra o partido extremista. No Norte do país, em Hamburgo, mais de 60 mil pessoas compareceram também. A onda de manifestações teve seu estopim após uma reunião, realizada na cidade de Potsdam, com a participação de neonazistas e membros da Afd, que elaborou um plano de deportação em massa de milhões de imigrantes e cidadãos “não assimilados”.
Foram vistos protestos também nas cidades de Schleswig, Nortorf, Neumünster, no norte da Alemanha, em Boppard, Gerolstein e Ahrweiler no Oeste, Schongau, Bad, Tölz e Ebersberg no Sul. Já no Leste da Alemanha, as cidades de Rangsdorf, Hoyerswerda, Finsterwalde, Demmin, Neustrelitz também registraram movimentações contra a Afd. Há uma estimativa de que até os dias atuais, mais de 900 mil pessoas em toda a Alemanha participaram de protestos contra o extremismo de direita.
A Afd, Alternative für Deutschland, é um partido político de extrema-direita fundado em 2013 na Alemanha. Marcadamente racista, nacionalista, islamofóbica, com tendências claramente antissemitas, ela tem, desde a sua fundação, flertado progressivamente com figuras assumidamente neonazistas. Para seus integrantes, a União Europeia atrapalha o desenvolvimento e a trajetória da Alemanha. Confessadamente anti-euro, acusam a integração europeia como a grande responsável por uma espécie de degeneração da sociedade alemã. Não aceitam uma visão de sociedade plural e preferem que a Alemanha saia da zona do Euro ou, ao menos, participe de uma integração econômica mais limitada. Originariamente, a Afd foi idealizada por um grupo de economistas e juristas descontentes com a União Europeia e principalmente com a expansão da zona do Euro, envolvendo, inclusive, o socorro alemão a países como a Grécia, que atravessavam graves crises fiscais e monetárias. Denominados eurocéticos, esse grupo uniu-se e fundou a Afd, que, como já apontado, foi caminhando para um maior extremismo ao ampliar suas pautas para muito além da questão econômica. Um exemplo dessa guinada para o extremismo está na aproximação da Afd ao PEGIDA, grupo radical, de extrema-direita, que defende uma espécie de pureza do ocidente, contaminada pelos imigrantes muçulmanos. Isto é, como seu próprio nome indica, “europeus patriotas contra a islamização do ocidente”, pretendem proteger a integridade judaico-cristã da sociedade alemã.
Durante o governo de Angela Merkel a Afd ganhou musculatura e cresceu em número de apoiadores. Especialistas explicam que isso se deu principalmente em razão da crise migratória que a União Europeia sofreu diante dos fluxos oriundos principalmente dos conflitos no mundo árabe, na Síria e no Afeganistão. A política de Merkel, fincada na concepção do multiculturalismo e da recepção de refugiados foi duramente criticada por integrantes da Afd e estimulou grupos extremistas a protestarem. Além disso, a ascensão de Donald Trump nos EUA e a multiplicação de discursos de ódio e fake news nas redes sociais alimentaram mais ainda o partido em sua tendência a tornar-se mais radical.
É curioso notar que, desde a sua fundação, a Afd captou mais apoiadores no Leste da Alemanha, que antes da unificação era um país comunista, conhecido como Alemanha Oriental ou República Democrática Alemã. Logo após a unificação, os alemães orientais sofreram com a disparidade em relação aos alemães ocidentais, principalmente em termos econômicos. A Alemanha Oriental era muito mais atrasada e já sofria uma enorme crise próximo ao desmoronamento da União Soviética. Nesse sentido, não é de se espantar que os alemães do Leste sejam hoje mais simpáticos à ideologia extremista, que permeia os discursos da Afd. Afinal, ela oferece para eles inimigos objetivos e claros, como os responsáveis pelo sentimento que possuem de não serem contemplados como deviam na sociedade alemã. Não por outra razão, recentemente uma pesquisa na Universidade de Jena demonstrou que 20% dos alemães orientais sentem-se abandonados pelo Estado alemão. Realizada entre junho e outubro de 2023, a pesquisa ouviu mais de quatro mil pessoas e apontou que há um sentimento de abandono muito maior entre os alemães orientais em relação aos ocidentais, como se estivessem sendo deixados para trás e por isso mais insatisfeitos com a democracia.
De acordo com recente relatório feito pelo governo federal alemão em comemoração aos 33 anos de reunificação, apesar de melhora, as diferenças econômicas entre os alemães ocidentais e os alemães orientais permanece. O salário médio na Alemanha ocidental, por exemplo, gira em torno de 12 mil euros a mais que o recebido na Alemanha oriental. A poupança média líquida, por sua vez, nos Estados do Oeste supera praticamente em três vezes mais a do Leste. Além disso, há um maior envelhecimento na população oriental se comparado a ocidental.
Esses fatores ajudam a explicar o maior apoio que a Afd tem recebido no lado oriental da Alemanha. Contudo, não podem ser tomados como os únicos, uma vez que a ascensão da extrema-direita tem sido uma tendência no mundo democrático ocidental, tendo em vista a experiência norte-americana, brasileira e de outros países como a França, a Holanda, a Áustria e a Polônia, apenas para citar alguns.
A Afd nunca esteve tão próxima de vencer uma eleição na Alemanha. Neste ano haverá três eleições estaduais nas quais o partido tem reais chances de eleger seu primeiro governador. As eleições se darão em Estados do Leste alemão.
Diante disso tudo, têm crescido manifestações contra a Afd em toda a Alemanha, inclusive na parte oriental, como já ventilado acima. Todavia, não somente movimentações populares tem se colocado contra o partido de extrema-direita, mas também políticos moderados, tanto da direita, quanto da esquerda alemã, têm discutido a possível proibição do funcionamento da Afd diante do seu recrudescimento extremista e seu flerte explícito com personagens neonazistas. Há um argumento de que a proibição é possível e constitucional por conta da possível acusação de que a Afd patrocina a destruição das instituições democráticas da Alemanha.
De qualquer maneira, é fundamental acompanhar o desdobramento do cenário político alemão. Afinal, uma ascensão da extrema-direita ao poder no país mais importante em termos econômicos e estratégicos da União Europeia pode significar num enfraquecimento brutal da união política e monetária, que afetaria toda a geopolítica global. Além disso, é a Alemanha que carrega consigo a mácula inevitável de ter sido o berço do nazismo, é ela quem tem a grande responsabilidade de ser a primeira a denunciar a tragédia que o nazismo trouxe ao mundo. Afinal, foi na Alemanha nazista que o horror do Holocausto se deu e foi a mesma Alemanha que pagou o preço da loucura hitlerista, tendo passado praticamente um século dividida e com sua capital separada por um vergonhoso muro, servindo de satélite para duas potências globais. A Alemanha sabe muito bem o custo de uma aventura extremista. Os escombros do totalitarismo nazista ainda ecoam como um alerta para os desavisados. O que Hitler fez ao subir ao poder não foi recuperar a autoestima alemã ofendida pelos desdobramentos da primeira grande guerra, mas sim destruir a Alemanha e dividir os alemães por praticamente todo um século.