Recentemente os moradores da cidade de São Paulo, uma das maiores metrópoles do planeta, tiveram dificuldade de simplesmente respirar. A cidade que acostumou seus habitantes a terem problemas para se locomover por causa das grandes distâncias, do insuficiente sistema de transporte público e do trânsito caótico, agora os brindou com a pior qualidade do ar registrada entre as principais cidades do mundo. O ar carregado de fuligem, o clima extremamente seco e a poeira deram ao céu de São Paulo um cenário apocalíptico. Do outro lado do Oceano Atlântico, mais precisamente na cidade do Porto, o céu praticamente virou cinza por conta das queimadas que assolam Portugal. O mundo parece viver uma crise climática sem precedentes.
De acordo com cientistas o que estamos vivendo pode ser o tipping point que estava previsto para pelo menos duas ou três décadas. Ou seja, podemos estar diante daquele momento em que a deterioração do planeta chegou a um ponto de não retorno. Nesse sentido, os objetivos estabelecidos nos acordos internacionais envolviam a ideia de não permitir que a temperatura do planeta passasse de 1,5°C, para que a partir de 2050 começássemos a remover, ao menos, 5 bilhões de toneladas de CO2 por ano da atmosfera. Deste modo, poderíamos chegar em 2100 com o aumento de apenas 1° do planeta. Contudo, agora em 2024 já estamos atingindo o marco de 1,5°C de aquecimento em relação à média registrada no século XIX, no período anterior à Revolução Industrial.
Ou seja, ao invés de contabilizarmos uma redução das emissões de gases, elas têm aumentado. Foram registrados recordes seguidos entre os anos de 2022 e 2023. Deste modo, contrariamente ao que foi estabelecido como meta, se continuarmos nesse ritmo, é possível que cheguemos a um aumento de 2,5°C já em 2050. Assim, evidentemente as ondas de calor tendem a continuar em vários países do mundo, principalmente no Brasil. Vale dizer, aliás, que elas são altamente letais para crianças com menos de cinco anos de idade e idosos. O Brasil não somente não tem feito sua lição de casa no campo da proteção de seus biomas, como não tem planejamento ou políticas públicas robustas voltadas para essas populações, que provavelmente serão chamadas de vulneráveis do aquecimento global. É sempre preciso lembrar que não estamos diante de um engodo ou de uma retórica vazia, mas sim de uma situação visível, cuja negação já passou do mau caratismo de alguns grupos políticos para a loucura suicida da nossa espécie.
No Brasil há quem aponte que o Pantanal poderá, caso continuemos a seguir esse ritmo de destruição e descaso, desaparecer por volta de 2070. A Amazônia, por sua vez, tende a perder pelo menos 50% de sua floresta até o mesmo ano. Registra-se que a Caatinga avançou por volta de 200 mil quilômetros quadrados Cerrado adentro. Caso cheguemos realmente ao aquecimento de 2,5°, o Pantanal estará seco e a sua fauna provavelmente extinta.
A situação que vivemos é assustadora. Trata-se do pior momento do planeta em termos de preservação e proteção. Todo o avanço que fizemos, ou pelo menos tentamos fazer, tem sido descartado por conta de guerras, desinformação e oportunismo de certos políticos, patrocinados por grupos de interesse, que pretendem expandir suas terras, criações, aumentar safras e maximizar lucros. Não podemos esquecer que a expansão da Inteligência Artificial também tem um impacto enorme no meio ambiente, uma vez que seus processadores de dados, supercomputadores e outros instrumentos consomem muita energia, principalmente água para resfriar as máquinas.
O negacionismo climático não pode mais ser tolerado. A agenda do meio ambiente precisa se tornar mais do que política de estado das nações, mas sim uma agenda global que transcenda os embates políticos locais, envolvendo tanto a direita como a esquerda, tenham elas suas características e peculiaridades conforme o contexto em que estiverem inseridas. Aquela velha e pejorativa alcunha de eco chatos ou eco radicais precisa dar lugar ao fato de que o mundo está esquentando e para notar isso não precisamos ser especialistas ou cientistas, basta sentirmos as variações do clima e do ar.
Além disso tudo, não é preciso ser muito inteligente para compreender que uma crise climática estará entrelaçada a uma crise hídrica, que provocará, invariavelmente, efeitos catastróficos para a agricultura, levando em um futuro não muito distante a uma crise alimentar mundial. Desta forma, a transição para uma matriz energética verde e limpa não pode ser mais motivo de dissenso entre políticos.
Outro ponto completamente esquecido nessa discussão é que o aquecimento global provavelmente levará o mundo a conhecer novas pandemias. Cientistas alertam que existem inúmeros vírus congelados que, com o derretimento da Antártida, por exemplo, terão contato com o ser humano. Ou seja, tudo está interligado; o que não deveria ser surpresa alguma, uma vez que o mundo é um só e as fronteiras que nele existem são todas artificiais, exceto as naturais. Isto é, a poluição produzida num ponto do globo consegue alcançar pessoas que habitam outro ponto distante. É a velha concepção de que a poluição produzida em Londres é capaz de chegar a Moscou.
Além disso, o calor extremo fará com que o corpo humano tenha mais dificuldade em se estabilizar e se aclimatar. É notório que o aumento extraordinário da temperatura de maneira abrupta pode sobrecarregar o sistema cardiovascular e urinário, assim como agravar doenças respiratórias relacionadas ao calor. Dentro desse contexto, haverá um provável aumento no índice de mortalidade da população acima de 60 anos, que sofre mais com essas doenças.
A cidade de São Paulo, como já mencionamos, conquistou o posto de metrópole com a pior qualidade do ar do mundo. Ela apresentou 81 microgramas de PM 2,5 por metro cúbico no dia 10 de setembro de 2024, de acordo com a IQAir, uma empresa de tecnologia radicada na Suíça, que monitora a qualidade do ar em tempo real nas grandes cidades do mundo. Esse indicador representa algo 15,2 vezes acima do limite recomendado pela OMS. Uma outra organização chamada Copernicus apontou que no dia 09 de setembro de 2024 o ar da cidade de São Paulo estava 143% mais poluído do que a média dos últimos sete anos no mesmo mês. De acordo com essas empresas de medição, as cidades de Porto Velho e Rio Branco também apresentaram índices preocupantes. Ambas tiveram grave concentração de material particulado fino no ar. Ou seja, não é algo restrito a megacidades.
Outro ponto importante em relação ao aquecimento é o aumento da demanda por aparelhos de refrigeração como ar-condicionado, ventiladores e umidificadores. Tudo isso representa um acréscimo no uso de energia. Isso impactará na emissão de gases, uma vez que picos de uso de energia farão com que maiores emissões sejam feitas, concretizando-se, assim, um verdadeiro ciclo vicioso: quanto mais quente, maior demanda por aparelhos de refrigeração, maior uso de energia, maior emissão de gases, que ajudarão a aumentar a temperatura do planeta.
É evidente que o uso de aparelhos de refrigeração representa uma saída no curto prazo para lidar com o excesso anormal de calor. Todavia, é fácil perceber a insustentabilidade dessa situação. Especialistas defendem que políticas públicas voltadas para a construção, preservação e proteção de espaços verdes são necessárias para auxiliar no resfriamento das cidades e do planeta em si. Contudo, contrariamente a isso, a maioria das cidades do planeta continua a crescer desorganizadamente, impermeabilizando não somente o solo, mas também criando ilhas de calor excessivo em zonas transformadas em verdadeiros formigueiros humanos. Prédios espelhados e sem ventilação alguma são completamente inviáveis sem um sistema robusto de refrigeração. A mesma lógica se aplica a shopping centers e outros tipos de centros comerciais. Todavia, eles não param de ser construídos.
Seguindo essa tendência de aumento da temperatura, até as rotas de turismo tendem a mudar. Hoje muito já se fala no coolcations (cool + vacations), que representa um maior fluxo de turistas para países mais frios, ao invés dos destinos tradicionais mais quentes. Ou seja, há uma possível tendência de pessoas preferirem viajar para lugares mais frios para fugirem do calor excessivo. Se no passado o comum era idosos e jovens viajarem para praias como as do Mediterrâneo na Europa, hoje uma procura para destinos na Suécia, Noruega e outros países frios pode aumentar. Isso também impactaria de maneira preocupante o meio ambiente, pois um aumento de visitantes nessas áreas auxiliaria severamente no processo de aquecimento. Todavia, isso ainda é uma hipótese, uma vez que os dados atuais disponíveis sobre fluxos de turismo não comprovam que isso esteja acontecendo. De qualquer maneira, é algo factível de se imaginar em um futuro muito próximo.
Por fim, tudo isso é muito preocupante. Não estamos diante de algo que possa ser ainda posto à prova ou objeto de disputa política, no sentido sobre se existe aquecimento global ou não. O tempo dessas discussões já passou. Estamos diante de um alarmante quadro, que é visível e sensível a todos. Não é necessário ser cientista para perceber o evidente, basta ter bom senso; ou melhor, basta sair na rua. Quantos de nós têm dito que não existe mais inverno na cidade de São Paulo? Quantos de nós estranharam o calor excessivo nos meses que há poucos anos havia muito frio? Não é evidente que durante a pandemia, quando o mundo estava mais recolhido e tudo mais parado, os meses foram mais frios? Será que vamos ter que esperar a confirmação de que chegamos realmente no tipping point? O calor, a seca, as queimadas e o desastre no Rio Grande do Sul já não foram suficientes para percebermos que algo está errado?
Talvez o ser humano ainda não tenha entendido que é preciso superar o antropocentrismo narcisista-ególatra que ele construiu. É necessário que entendamos de uma só vez que a Terra não está diante de nós como uma fonte de recursos infinitos e sempre pronta para nosso uso. Um dia, talvez, iremos compreender que somos apenas uma espécie transitória nesse planeta, que os recursos são finitos e que uma espiral de progresso e uso irresponsável deles não terá um final feliz. Quem sabe um dia o ser humano poderá usar sua inteligência para num exercício de autocrítica compreender que nossa trajetória depende da preservação do planeta e que ele vai se ajustar da forma que for, independentemente se esse ajuste se tornará hostil e insuportável para nós. Infelizmente o ser humano é a única espécie que consegue colocar fogo na sua própria morada sem que tenha saído dela. Aliás, será mesmo que o melhor é investir recursos e tecnologia para irmos até Marte? Precisaríamos de muitas naves para embarcar as quase oito bilhões de vidas que habitam este planeta.