Em entrevista ao programa Roda Viva, da Tv Cultura, que foi ao ar em junho de 2015, o experiente político do PSDB, José Serra, foi perguntado sobre as eleições americanas e sobre uma possível vitória de Donald Trump, ao que respondeu em tom jocoso: “Não vai acontecer”. Ele não pode ganhar, não vai ganhar”.
Naquele momento o Brasil vivia uma crise política que culminaria, tempos depois, em um traumático processo de impeachment da presidente Dilma Roussef. Naquele momento, Jair Bolsonaro era pouco mais que um animador de programa de auditório, pouco conhecido por sua carreira política, embora esta já fosse longínqua na Câmara dos Deputados, e embora já estivesse em curso um trabalho político de arregimentação de setores conservadores e de setores das Forças Armadas.
Todos sabemos o desenrolar dos fatos. Hoje, nos EUA Trump disputa de forma competitiva outra eleição presidencial e controla o Partido Republicano. No Brasil Bolsonaro perdeu por margem apertada a reeleição, segue como inelegível (O que no Brasil alguém resolve com uma caneta), porém conserva capital político suficiente para produzir um rearranjo na correlação de forças entre os partidos, fazendo do PL a maior bancada na Câmara, além de possuir alguma influência sobre as eleições municipais que se aproximam.
Essas duas eleições nos dois principais países das Américas (do Norte e do Sul), inesperadas pelos analistas, produziram toneladas de análises de cientistas políticos, que falam em novas direitas, extrema-direita, direita populista, entre outros conceitos. E de certa maneira esses dois fenômenos políticos são comparados com a ascensão das direitas na Europa, que vê o crescimento de partidos nacionalistas como o AfD na Alemanha e o Rassemblement National (RN) na França, partidos que até pouco tempo atrás eram marginais no sistema político.
Diante disso, não há dúvida: A política global hoje está mais à direita do que estava há uma década. Porém, antes de fazermos generalizações, é preciso destacar que há bastante diferença entre o conteúdo ideológico desses fenômenos em cada contexto. As direitas radicais europeias, por exemplo, carregam um forte discurso nacionalista e nativista, o que foi amplificado pela crise dos refugiados em 2015. Na França, em particular, a questão gira em torno do mundo islâmico.
Nos EUA sempre houve uma ala mais conservadora do partido republicano que é abertamente racista. No Brasil, embora nossa formação seja permeada pela escravidão e racismo, esse elemento não aparece como clivagem central na chamada nova direita. Elenco esses pontos apenas para demonstrar que existem diferenças significativas entre as direitas mais radicalizadas de cada região do globo.
Dito isso, valeria mencionar o que seriam os pontos em comum desses fenômenos, já que, apesar de bastante diferentes entre si, nos permitem falar em uma espécie de onda global, não poupando nem a quase dinastia dos peronistas na Argentina.
Um primeiro aspecto em comum diz respeito à retórica transgressora de líderes que conseguem captar alguma insatisfação difusa contra “tudo isso que está aí”, o que pode se referir aos políticos e partidos tradicionais, ao aumento da imigração, às políticas progressistas nos costumes, cada um entendendo como quiser. Esse modo mais transgressor de se portar na cena política, como quem pretende denunciar um “sistema” que seria composto de privilegiados, é um dos aspectos em comum dessas direitas, e algo que a literatura acadêmica denomina de “populismo”: Um líder que fala diretamente ao seu público, ao qual ele chama de “povo”, dispensando corpos intermediários, como, por exemplo, a imprensa tradicional.
Um segundo aspecto que vale à pena mencionar é que, talvez à exceção dos EUA, que segue com seu sistema bipartidário, os outros países têm experimentado uma reorganização dos seus sistemas partidários. Seja mediante a criação de novos partidos, que têm ganhado força eleitoral e minado as bases eleitorais dos partidos tradicionais (Como tem ocorrido em boa parte da Europa), seja reorganizando a correlação de forças entre os partidos, sem necessariamente criar partidos novos, como tem sido o caso brasileiro. Para simplificar, o ponto aqui é o seguinte: Os partidos existentes têm tido que recalcular suas estratégias, suas alianças e seus discursos, em busca de sobrevivência eleitoral.
Não me parece que a agenda mais radicalizada e conservadora dos costumes mostre sinais de arrefecimento. Nessa onda de direitização, muitos partidos de chamada “direita tradicional” têm comportado quadros e discursos mais radicais, que soariam extremos uma década atrás. Isto é, o sucesso eleitoral da direita radical tem puxado os partidos de centro-direita para a direita.
Isso tudo ocorre ao mesmo tempo em que o campo da direita radical está aberto a novas lideranças que podem surgir de partidos sem expressão eleitoral e política, como estamos vendo na disputa à prefeitura de São Paulo. A questão estratégica da política brasileira hoje é entender como os partidos de centro-direita e direita moderada vão reagir e interagir com esses fenômenos: se vão criar um “cordão sanitário”[1] ou se vão abrir suas legendas para figuras políticas que insistem em se colocar de forma agressiva “contra tudo e contra todos e a criticar um suposto “sistema” do qual, ao fim e ao cabo, farão parte caso sejam eleitos.
Se por um lado, a população brasileira carrega valores conservadores e possui uma grande insatisfação com o sistema político em geral, por outro, a performance belicosa e agressiva dessas figuras políticas também tendem a gerar uma fortíssima rejeição de parcela expressiva do eleitorado, o que produz polarização afetiva[2], além de uma grande dose de confusão e incertezas políticas e jurídicas num quadro partidário cuja luta pela sobrevivência só tende a ficar mais acirrada. Eis um dilema bem pragmático.
[1] A expressão é muito usada na Europa e se refere à estratégia dos partidos tradicionais de isolar partidos e lideranças mais radicais, impedindo a formação de qualquer apoio ou aliança com eles.
[2] Como já discutimos aqui: https://fundacaopodemos.org.br/blog/acervo-tematico-polarizacao-afetiva-e-eleicoes-no-brasil/