Desde os primórdios da humanidade o ser humano se movimenta de um local para o outro em busca de melhores condições de sobrevivência. Em tempos primitivos, ser nômade era a condição comum entre as populações que habitavam a terra. Contudo, conforme o passar do tempo e o desenvolvimento de técnicas de produção de alimentos, o ser humano passou a se fixar em determinados lugares, normalmente próximos a rios e mares, em terras férteis. Posteriormente, com a evolução da associação política entre os homens e a formação dos reinos, impérios, colônias e, mais recentemente, Estados-nação, o fluxo e o deslocamento de pessoas entre fronteiras e limites continuou a ser uma característica. Ou seja, de uma maneira extremamente sintética em termos históricos, o ser humano sempre se deslocou de um lugar para outro, mesmo com a transição do nomadismo para o sedentarismo e com todas as evoluções das suas associações político-jurídicas. Nesse sentido, o deslocamento de pessoas não é nenhuma novidade na história humana, ela é uma permanência.
Entretanto, apesar do fluxo de pessoas ser algo comum entre as gerações que habitam e habitaram a Terra, as razões que levam os seres humanos a atravessarem fronteiras, cruzar oceanos, arriscarem-se por espaços geograficamente hostis não são sempre as mesmas. Muitos dos deslocamentos históricos se deram por conta de empreitadas políticas, principalmente na busca por expansão de território, domínio e acessos a riquezas minerais. Contudo, muitos desses movimentos foram e são os responsáveis por produzirem outros fluxos de pessoas. Ou seja, alguns movimentos geraram outros, como por exemplo as guerras e os empreendimentos coloniais. Desta forma, é importante compreender que diante da multiplicidade dos fluxos, uma boa parcela das pessoas que migram de um local para o outro, o fazem não por decisões autenticamente espontâneas, mas sim de maneira forçada.
Todavia, no mundo atual, não são somente os conflitos e as guerras declaradas que geram fluxos de pessoas, mas também as desigualdades, principalmente a econômica, a fome, as catástrofes naturais e as perseguições, de acordo com dados oficiais do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR). Assim, é fundamental perceber que a grande parte do número de pessoas que migram de um território para outro se dá não por uma livre e espontânea vontade.
Nesse sentido, para essas pessoas a única certeza é a de que não podem ficar no lugar onde elas e seus antepassados nasceram, pois ficar passa a representar um perigo para a própria existência. Deste modo, o destino, quase sempre incerto, é normalmente o território mais próximo a elas. Quando possível, migram para lugares onde conseguem compreender o idioma ou onde já existem familiares residentes. Destarte, é extremamente importante entender, repita-se, que as movimentações não se dão por livre e espontânea vontade e nem por mero desejo, mas sim porque é imprescindível para que essas pessoas possam ter um futuro ou até mesmo continuar vivas.
Nesse sentido, muitos são os mitos sobre os movimentos migratórios no mundo. Existem visões equivocadas, algumas até construídas de maneira proposital, que circundam o fenômeno. O primeiro grande mito é aquele que aponta na direção de que a migração é um ato oriundo do desejo de quem se desloca. Ou seja, a pessoa sai do lugar onde possui a naturalidade de todos seus comportamentos e vai para um lugar estranho, porque deseja lá estar. A realidade é de que a grande maioria dos que migram, não o fazem porque querem.
O segundo grande mito envolve a ideia de que os fluxos migratórios sempre se dão para os países mais ricos e desenvolvidos; isto é, para os países da Europa Ocidental e para os EUA. Na realidade, a grande maioria dos deslocamentos se dá do local onde as pessoas saem para o território mais próximo, ou seja, para os países vizinhos, que na grande maioria das vezes também enfrentam graves problemas internos.
Nesse diapasão, outro mito é aquele que constrói a relação de que só há migração de um país pobre para outro rico e mais desenvolvido. É falso pensar que somente os países ricos vivem “grandes fluxos migratórios”, pois o que realmente acontece é a recepção por países pobres, com precária infraestrutura, de pessoas que fogem da fome, doenças, epidemias, catástrofes naturais ou guerras.
Um quarto mito sobre os fluxos migratórios envolve a ideia de que a maioria dos deslocamentos se dá por aeroportos e meios de transporte terrestres. Na grande maioria dos casos as pessoas se deslocam a pé, com pouco ou nenhum recurso, principalmente por conta da urgência e necessidade de fuga. Quando conseguem ou têm a oportunidade de se deslocarem para um lugar mais distante, o principal meio é o marítimo. Todavia, como quase sempre se encontram numa situação de urgência e vulnerabilidade, deslocam-se com as poucas roupas e itens que possuem. Raramente possuem documentos suficientes para garantir a “legalidade” exigida no controle de imigração dos países em que chegam. O mais comum é fugirem com a roupa que estão no próprio corpo.
Já um quinto mito está no fato de que a maior parte das pessoas que compõem os fluxos migratórios são homens em fase adulta à procura de empregos. A realidade é outra. A maior parte das pessoas que se deslocam são mulheres e crianças, sempre as maiores vítimas dos conflitos armados espalhados pelo planeta.
Portanto, entender o fenômeno migratório é importantíssimo para compreender e avaliar políticas de contenção de fluxo de pessoas, que aparecem dia após dia nos governos dos países com maior desenvolvimento no planeta. Essas políticas costumam ser fincadas nos mitos que envolvem o fenômeno da migração, muitas vezes permeadas de mentiras e equívocos populistas, que conformam uma espécie de criminalização da pessoa que migra e trata o deslocado forçadamente como uma figura nociva aos valores e à economia doméstica. É a ideia da construção do inimigo objetivo, cuja vulnerabilidade é sempre uma boa opção para plataformas extremistas angariarem votos nas eleições locais.
As políticas recentes do Reino Unido para conter a imigração
O Reino Unido, recém-saído da União Europeia após o Brexit, vem tentando endurecer sua política migratória. Recentemente tomou medidas muito polêmicas. O governo do primeiro-ministro Rishi Sunak, que governa o país desde setembro de 2022, resolveu adotar uma balsa, atracada no porto da ilha de Portland (na costa sul da Inglaterra), como espaço para abrigar pessoas que pediram refúgio ao chegar no país. Uma espécie de “centro de acolhimento” com um caráter duvidoso em razão do seu confinamento. Afinal, trata-se de uma embarcação, que, mesmo dentro ainda do mar territorial britânico, mantém-se apartada do espaço terrestre e “afastada” da própria sociedade como um todo.
A Anistia Internacional classificou essa medida como um “plano de crueldade ministerial”, por configurar uma verdadeira espécie de “prisão flutuante”. Vale ressaltar que a balsa é de propriedade de uma empresa privada, denominada Bibby Marine Ltda, com capacidade para 506 pessoas.
A medida é extremamente infeliz, pois não somente trata o solicitante de refúgio como um ser nocivo, que deve permanecer à margem da sociedade na qual chega e pede ajuda, como também o confina sem garantir necessariamente os direitos básicos previstos nos tratados internacionais de Direitos Humanos, dos quais, inclusive, o Reino Unido é signatário e faz parte. Aliás, essa medida é apontada como potencial violadora das regras do Sistema Europeu de Proteção dos Direitos Humanos. Não se pode esquecer que o Reino Unido, mesmo fora da União Europeia, continua sob a jurisdição da Corte Europeia de Direitos Humanos, que é um tribunal pertencente ao Conselho da Europa e não à União Europeia.
Anteriormente a essa polêmica medida, no Reino Unido já havia sido apresentado um projeto extremamente contestado, que determinava a transferência de pessoas que fizeram pedido de asilo para Ruanda, a 7 mil quilômetros de distância de Londres. A medida foi duramente criticada por remontar ao passado colonial do império britânico, assim como por também tratar o solicitante de refúgio como “algo” nocivo e indesejado. O Poder Judiciário britânico julgou, contudo, a medida ilegal.
Antes mesmo desta medida violadora de direitos fundamentais, o governo britânico havia apresentado um projeto de lei prevendo a possibilidade de expulsar todos os imigrantes que chegassem ao território britânico de maneira irregular. A proposta é completamente absurda, pois toma o todo do fenômeno pela parte; no caso, a menor parte, que é a composta por pessoas que migram pelo desejo de migrar e que chegam por aeroportos e vias terrestres com seus pertences e dinheiro. É, diante da realidade, uma distorção das características dos fluxos migratórios. Não é difícil perceber que se trata de um projeto que visa livrar o Reino Unido dos imigrantes que considera indesejáveis: pobres solicitantes de refúgio, homens, mulheres e crianças oriundos de regiões onde sofrem perseguições ou padecem em razão de massivas violações de direitos humanos. Vale dizer, na última década estima-se que em torno de 26 mil pessoas (entre mulheres e crianças) morreram tentando atravessar o Mar Mediterrâneo de maneira irregular em embarcações precárias.
O argumento principal dos propositores dessas medidas é de que rechaçando quem vem por rotas irregulares, estariam punindo aqueles que se aproveitam da situação de vulnerabilidade das pessoas que se submetem a eles, traficantes e atravessadores. Contudo, especialistas em normas internacionais e nos fenômenos migratórios apontam que de nada adianta isso se não forem oferecidas rotas e meios seguros para que o inevitável fluxo de pessoas possa chegar nos territórios para os quais buscam abrigo. Além disso, a ONU manifestou-se afirmando que essa medida é na prática uma negação ao direito de asilo e, logo, uma violação à Convenção de 1951 sobre o Estatuto do Refugiado. Afinal, se a pessoa está numa situação de extrema vulnerabilidade, fugindo como pode, qual alternativa resta a ela? Não fugir por conta de uma rota considerada irregular?
Especialistas ainda afirmam que não há sentido nessas medidas, pois o que pode e é totalmente legítimo de ser feito, é cada Estado aprimorar seu mecanismo de recepção, admissão e reconhecimento da solicitação de refúgio. As demais medidas são falsamente travestidas de preocupação com a situação das pessoas que se deslocam. São voltadas para um discurso populista interno, fincado numa visão que estimula a xenofobia e desrespeita as normas de direito internacional dos direitos humanos.
Essas medidas têm repercutido de maneira intensa no cenário político britânico e na União Europeia, pois se receberam críticas por um lado, foram apoiadas fortemente por outro, como por exemplo, pela extrema-direita italiana, representada no poder pela premiê Giorgia Meloni. A Europa parece estar numa tendência de tratar refugiados e imigrantes como uma ameaça à cultura, aos valores e ao mundo europeu.
As políticas recentes, no mesmo sentido, nos EUA
Nos EUA há uma tendência parecida em relação ao contexto europeu. Muito pautada pelo mito de que no meio das pessoas que se deslocam chegam criminosos, terroristas e traficantes, as políticas de contenção do fluxo migratório e dos solicitantes de refúgio procuram estabelecer requisitos de regularidade para rechaçar todos os não documentados que chegam à fronteira dos EUA e do México, que tem trabalhado em parceria com o governo americano.
Vale dizer, pessoas que chegarem ao México e aos EUA sem documentos ou não cumprirem com os requisitos pré-estabelecidos pelos departamentos de migração dos dois países poderão ser imediatamente expulsas. Tudo isso se dá no mais grave contexto de deslocamento de pessoas no continente americano, principalmente em razão da profunda crise humanitária vivida pelos venezuelanos.
Cada pessoa que chegar nas fronteiras deve marcar uma entrevista por meio de um aplicativo de celular ou solicitar asilo nos países pelos quais passam, podendo usar, por exemplo, uma permissão de reunificação familiar para cidadãos da Guatemala, El Salvador, Honduras e Colômbia. Há também um programa que autoriza a entrada de 30.000 pessoas por mês da Venezuela, Nicarágua, Cuba e Haiti por motivos humanitários, caso possuam um patrocinador já residente nos EUA.
Na prática essas medidas dificultam e restringem o direito de asilo, reconhecido na normativa internacional de direitos humanos vigente. Aliás, a política do atual governo norte-americana vem sofrendo contestações internas no Poder Judiciário do país. Organizações de direitos civis representaram contra elas, que foram suspensas por determinação judicial.
Considerações finais
O deslocamento de pessoas é uma realidade e uma característica da humanidade. As grandes guerras, os conflitos civis, os desastres naturais, a fome e a miséria sempre foram motivos para fazer com que pessoas fugissem de suas casas em busca de sobrevivência.
O fenômeno, embora antigo, é envolto de mitos e equívocos graves. Apesar dos fluxos migratórios serem fartamente pesquisados e os dados acerca do fenômeno comprovados e apresentados pelos organismos internacionais, como a ONU e suas agências e fundos, políticas são formuladas pelos países à margem deles, muitas vezes propositalmente por razões populistas, com o escopo de alavancar políticas sensacionalistas em busca de votos, fundamentadas na ideia de que o estrangeiro é sempre nocivo; mas algumas vezes por puro desconhecimento ou mesmo ignorância.
A ideia de que o estrangeiro é nocivo e não alguém que pode vir a contribuir com a sociedade a que solicita ajuda e pede para nela viver é, infelizmente, a mais vigente entre os Estados do mundo. Em certos momentos e contextos essa ideia perde força, mas em outros ganha. De qualquer maneira, é preciso compreender que estamos diante de vidas, de pessoas, cujos sonhos foram destruídos e as possibilidades de uma vida digna delas retiradas por conta de motivos alheios às suas vontades. A grande maioria das pessoas no mundo não deixa a sua casa porque quer, mas sim porque foram obrigados.
Além disso, objetivamente, é necessário que os países respeitem o arcabouço jurídico institucional construído no pós-segunda Guerra Mundial. As Convenções de Direito Internacional dos Direitos Humanos e de Direito Internacional Humanitário precisam ser observadas e cumpridas. Apesar dos Estados terem o poder e o direito de controlar as suas fronteiras, devem estar atentos para o direito, internacionalmente reconhecido, de migrar. É preciso que haja um equilíbrio e um esforço mútuo para que políticas fundamentadas na nocividade do estrangeiro não ganhem força e nem se espalhem pelo mundo, cada vez mais interligado, porém, também, cada vez mais refratário a direitos duramente compreendidos como necessários ao longo da história da humanidade, para que, por fim, aquilo que encabeça a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 possa um dia vir realmente a ser respeitado: a dignidade da pessoa humana.