O longa dirigido por Pablo Larraín é, talvez, à primeira vista um pouco estranho e nada convidativo para o telespectador. O Conde conta a história de um vampiro com mais de duzentos anos que desistiu de viver eternamente. Contudo, não se trata de um vampiro qualquer, mas sim de Augusto Pinochet, o brutal ditador que governou o Chile de 1973 a 1990. Um pouco insólito e até escatológico. Mas, quem deixar o preconceito de lado por conta de uma sinopse estranha como essa e decidir ver o filme, com certeza terá uma excelente surpresa.
Pablo Larraín e Guillermo Calderón assinam o roteiro dessa história curiosa, cheia de simbolismos e analogias, sarcástica, irônica e com uma boa pitada de horror. É difícil definir qual a natureza desse filme; isto é, se é uma sátira, tal como os próprios roteiristas definiram, ou se é um conto de terror. De qualquer maneira, O Conde é uma experiência que vale muito a pena. Vale ressaltar a escolha feita por Pablo Larraín em filmar toda a história em preto e branco, com tonalidades mais claras. Com isso evocou muitos elementos do cinema mudo, além de ter construído uma atmosfera interessante e até certo ponto angustiante.
Augusto Pinochet, vivido pelo veterano ator chileno Jaime Vadell, é, na verdade, um vampiro de origem francesa (assim como era o ditador em sua linhagem familiar) que serviu ao exército de Luís XVI durante a Revolução Francesa. Provavelmente nascido naquela época, descobriu sua natureza neste período histórico. Quando a revolução eclodiu, como bom covarde que era, deserdou e se escondeu entre os revolucionários para fugir de qualquer perseguição. Embora disfarçado, assistiu à decapitação de Maria Antonieta, que muito admirava.
Desgostoso com o rumo que as coisas tomaram na França, Claude Pinoche decidiu forjar a própria morte, adotar outro nome e participar de todos os movimentos antirrevolucionários que pudesse. Estaria sempre do lado dos ditadores e dos reis. Contudo, cansado de tanto lutar contra aqueles que insistiam em mudar a ordem das coisas, resolveu migrar para um país insignificante, perdido em um continente qualquer para deixar de ser comandado e, finalmente, comandar. Assim, Claude Pinoche escolheu o Chile.
Ao chegar no país resolveu entrar nas forças armadas e fazer carreira com o nome de Augusto Pinochet Ugarte. No Chile conheceu Lucia Hiriart, interpretada pela atriz chilena, Gloria Münchmeyer, uma mulher inescrupulosa e ambiciosa, com a qual teve seus cinco filhos. Tudo isso acontece nos primeiros vinte minutos do filme, que a partir daí mostra a aposentadoria e o funeral do velho ditador, que forja sua morte novamente para sair da história do país por conta da enorme antipatia que o povo chileno passou a ter por ele com a redemocratização. Em suas próprias palavras, Pinochet explica que a sua amargura e tristeza se dão não por lhe chamarem de assassino, porque com isso ele não se importa e até se orgulha, mas sim por ser chamado de ladrão e corrupto.
Já morto e recluso em sua fazenda, o vampiro general recebe seus filhos para repartir a herança e enfim morrer definitivamente. Em sua fazenda, além da esposa, vive o seu ajudante Fyodor (Alfredo Castro), um russo brutal que lutou contra a Revolução Russa e foi transformado em vampiro por Pinochet. Apesar de não ter caráter algum e não passar de um assassino psicopata, Fyodor reverencia o general de uma maneira comovente e patética.
Pinochet não demonstra muito apreço pelos filhos, mas quer que dividam a herança para que possam viver em paz. Nenhum deles, é, aliás, vampiro, pois o pai decidiu não os transformar. Para que possam entender todo o tamanho da fortuna e o que cabe a cada um, contratam uma jovem contadora chamada Carmen, interpretada pela excelente e jovem atriz chilena Paula Luchsinger. Mas, Carmen não é somente uma mera contadora; ela é uma freira enviada pela Igreja para que possa descobrir a fortuna que o general vampiro construiu por meio de esquemas e falcatruas e chantageá-lo. Reside aqui, sem dúvida, uma crítica à Igreja Católica, por ter, de certo modo, mantido uma relação ambígua com o ditador. Afinal, Carmen não quer mandar o demônio vampiresco para o inferno, mas sim roubá-lo. Entretanto, ao chegar na fazenda onde o decrépito vampiro que se alimenta de corações humanos está, ela desperta o desejo do velho sanguessuga, que passa a querer viver novamente.
Assim, enquanto o general vampiro começa a se interessar pela jovem Carmen, ela vai entrevistando cada um dos filhos em relação à herança. Todos vão, com muita naturalidade, contando a origem ilícita do dinheiro que Pinochet acumulou nos anos em que governou como ditador. É muito interessante a analogia entre um ser sobrenatural que para sobreviver vive sugando o sangue dos outros e um ser abominável que, a pretexto de impedir o comunismo no Chile, sugou um país e matou inocentes. Um vampiro precisa sugar para sobreviver, mas não necessariamente tortura em porões ou comete assassinatos desnecessários por pura sociopatia. Nesse sentido, o filme nos convida a refletir qual aspecto é mais abominável: aquele que se refere à fantasia do ser sobrenatural ou àquilo que realmente aconteceu durante a ditadura de Pinochet. No final das contas, qual dos monstros é o mais assustador?
Por fim, Pablo Larraín deu à sua alegoria um narrador, que logo no início pensamos ser uma certa pessoa, principalmente por conta de seus comentários, mas, ao final, descobrimos que estávamos errados. A identidade do narrador é, aliás, um toque de genialidade. Enfim, O Conde, por mais que possa parecer numa breve resenha um filme sem sentido é extremamente interessante, inteligente e perspicaz, principalmente em relação ao fato de como é possível por meio de um personagem clássico dos filmes de terror, contar uma história muito mais assustadora e real.