O mês de outubro trouxe os nomes que foram laureados com o Prêmio Nobel, o mais importante em termos de prestígio e reconhecimento, nas suas seis tradicionais categorias. Receber o prêmio normalmente coroa uma grande contribuição de cientistas ou pessoas notáveis para algo compreendido como importante para o desenvolvimento da humanidade. Na literatura, medicina, física, química, economia e no ativismo pela paz, os vencedores passam a ocupar um espaço privilegiado nas fileiras do conhecimento, dentre as instituições acadêmicas do planeta ou até mesmo no espaço político. Quem o recebe, tem para si como maior feito de toda a trajetória pessoal.
Obviamente os vencedores refletem o contexto do momento em que vivem ou que produziram suas pesquisas e deram suas contribuições. Analisar o histórico do prêmio desde que ele foi criado é um exercício interessante para compreender o fato de que a humanidade não tem para si, a cada geração, a mesma ideia do que é efetivamente um avanço ou algo considerado positivo. Os valores mudam, as percepções também. De qualquer maneira, não é por outro motivo que muitos dos vencedores ou indicados chegaram a ser figuras contraditórias e até mesmo dignas de repulsa, tal como Hitler, que uma vez foi indicado, Henry Kissinger, que venceu o prêmio Nobel da Paz e até mesmo Barack Obama, laureado na mesma categoria, que obviamente não é admirado por boa parte do mundo não ocidental.
É, inclusive, discutível, numa visão pós-moderna de mundo, o fato de que o prêmio, concedido tanto pela Academia Real das Ciências da Suécia, nas categorias de física, química e das ciências econômicas, como pela Assembleia do Nobel do Instituto Karolinska, na categoria de fisiologia ou medicina e pela Academia Sueca e pelo Comitê Norueguês do Nobel, que concedem no campo da literatura e do ativismo pela paz, respectivamente, tenha realmente uma legitimidade que represente a humanidade. Todavia, mesmo salientando-se a considerável crítica, o prêmio se impõe devido a sua tradição e a sua divulgação. Desde 1901 foram premiadas cerca de mil pessoas e organizações.
Independentemente da potencial crítica ao seu ocidentalismo, o prêmio pode servir, assim, não somente como objeto de reflexão para a compreensão do espírito de um tempo, mas também como algo que auxilia a compreender alguma preocupação sobre o que estamos fazendo como humanidade. Dentro do contexto do espírito de um tempo, é digno de observação o atual prêmio concedido no campo da física, que agraciou uma pesquisa construída sobre o aprimoramento da inteligência artificial envolvendo machine learning (aprendizado automático de máquinas). Ou seja, algo impensável há algumas décadas, que se tornou uma realidade e que impacta não somente o mundo da pesquisa, mas todo o tecido social nos agrupamentos humanos onde há o uso de internet e aparelhos de celulares.
Entretanto, de todos os prêmios, o mais político e idiossincrático é o que envolve o ativismo pela paz. Se Henry Kissinger e Barack Obama já o venceram, a ONU, Médicos Sem Fronteiras e Malala Yousafzai também. Aliás, vale relembrar que o prêmio pode ser considerado para organizações, além de indivíduos. De qualquer maneira, ele é o que mais oferece margem para críticas e dúvidas em um mundo cada vez mais violento; e, por isso, podemos dizer que é o que mais sofre com o descrédito. Não é por outro motivo que, de todos anunciados, é aquele que menos atenção recebe. Pelo menos quando não envolve nenhuma pessoa famosa, como um presidente ou um ministro de estado. Todavia, neste ano de 2024, o prêmio merece e precisa ser compreendido.
A Confederação Japonesa de Organizações de Vítimas de Bombas A e H, Nihon Hidankyo, foi laureada com o Nobel da Paz. Fundada em 1956, a organização é composta por sobreviventes japoneses das bombas atômicas, conhecidos como Hibakushi (em japonês, hibakusha quer dizer “pessoa afetada pela bomba atômica”). Além daqueles que padeceram no holocausto nuclear nunca julgado na história, ordenado de maneira criminosa, covarde e abominável pelo nunca julgado ex-presidente dos EUA, Harry Truman, que deveria ser reconhecido na história como um perpetrador de crimes contra a humanidade, milhares de sobreviventes sofreram com os efeitos sociais e biológicos da radiação.
As duas bombas nucleares, que, repita-se, nunca foram objeto de julgamento no contexto dos crimes que foram cometidos no contexto da Segunda Guerra Mundial, pulverizaram mais de 150 mil pessoas em segundos. Talvez um horror que nunca foi muito divulgado ou bem trabalhado na memória da humanidade, em razão de escolha dos vitoriosos de um momento tão sombrio da história humana. A primeira bomba que explodiu em Hiroshima, no dia 06 de agosto de 1945, produziu uma onda de calor de mais de 4.000°C, em um raio de 4,5km². Estima-se que entre 50 mil e 100 mil pessoas morreram naquele instante. Dois terços dos cerca de 60 mil edifícios de Hiroshima foram destruídos naquele dia. Até hoje existem silhuetas, sombras, das pessoas que foram vaporizadas, tal como a do idoso com uma bengala ainda gravada na escadaria de entrada do Banco Sumitomo em Hiroshima. Cientistas explicaram que os corpos não foram completamente vaporizados com a explosão e que restos de essência humana se misturaram aos escombros. Ou seja, restos microscópicos de material humano e não pedaços de corpos. As silhuetas ou sombras marcadas no concreto foram, na realidade, uma espécie de proteção que o material sólido recebeu do corpo humano que estava à sua frente no momento da explosão, pois todo o entorno acabou embranquecendo em razão do efeito da radiação. Isto é, as silhuetas na realidade funcionaram como escudo para o concreto manter a sua coloração original, anterior à explosão. Elas podem ainda ser vistas por visitantes em Hiroshima e Nagasaki.
A primeira bomba não foi suficiente para o Japão se render, o que levou a um segundo crime em Nagasaki, no dia 09 de agosto de 1945. Estima-se que a explosão da segunda bomba atômica causou a morte entre 28 mil e 49 mil pessoas. Aqueles que não morreram na explosão, logo depois perderam a vida em razão das queimaduras ou dos graves ferimentos. Há inúmeros relatos de pessoas gritando por socorro, com o corpo em chamas e as entranhas expostas. Os testemunhos são de dores indescritíveis e de cenas assustadoras.
O número de vítimas desses dois horrores jamais será determinado com precisão, pois é impossível se contabilizar todos que desapareceram naqueles dois dias e somá-los a todos aqueles que morreram tempos após em razão da radiação. Estamos aqui falando, inclusive, de gerações que tiveram câncer e outras doenças por conta do efeito da radiação no dia e após as bombas, como por exemplo leucemia e catarata. Há relatos de que dez anos após as bombas a taxa de incidência de câncer de tireoide, mama e pulmão era muito mais alta entre os sobreviventes do que o resto da população. Bebês que sofreram a radiação daqueles dias desenvolveram tumores já na infância ou na fase adulta. Em relação ao montante de vítimas, cálculos mais tímidos giram em torno de 110 mil pessoas, enquanto outros mais realistas apontam mais de 210 mil pessoas.
O horror do que foi feito no Japão não pode ser dimensionado apenas por conta das vidas que foram ceifadas em menos de segundos. Os sobreviventes não tiveram apenas que lidar com a dor e os tumores malignos que depois vieram, mas também com o trauma, o medo e a discriminação. Muitos sofreram com a depressão gerada pelo sentimento de culpa por terem sobrevivido e seus parentes e outras pessoas amadas não. Além disso, diversos viveram o resto de suas vidas confinados em hospitais, sentindo dores inenarráveis e assombrados com a presença de uma morte dolorosa. Outros sofreram com a discriminação em razão do aspecto físico e por serem considerados portadores de genes radioativos; isto é, pessoas com quem ninguém queria se misturar ou ter filhos. Afinal, ninguém queria ter um filho que depois teria câncer ou simplesmente correr o risco de contrair uma doença por conta de uma pessoa radioativa.
Os hibakushi vivos têm, hoje, em torno de 80 anos de idade. São testemunhas de um crime que ficou, de certo modo, um pouco escondido na história, principalmente em razão da narrativa política vitoriosa norte-americana e do desfecho da Segunda Guerra Mundial. Um Japão humilhado e controlado pelos EUA emergiu como parceiro e zona de influência americana na região, os crimes cometidos pelos nazistas foram julgados, Hitler e Mussolini entraram para a história devidamente como monstros, enquanto Truman dormiu na ambiguidade da vitoriosa democracia ocidental, impune e, para sua sorte, esquecido. É verdade que Hiroshima e Nagasaki foram importantes para os acordos internacionais que sobrevieram com o objetivo de controlar o uso do armamento atômico e evitar um novo horror. Convenções foram negociadas, como o Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares de 1968; instituições surgiram, como a Agência Internacional de Energia Atômica e desde a destruição e a pulverização de inocentes crianças, mulheres e idosos nas duas cidades japonesas, nunca outro país ousou usar uma bomba atômica em um conflito. Mas, tudo isso parece não ter sido ainda suficiente para impedir o uso criminoso do armamento nuclear, por isso o trabalho dos hibakushi é tão fundamental, principalmente em um mundo onde Vladimir Putin não hesita em ameaçar a Ucrânia com o uso de armamento nuclear, Kim Jong-um afirme rotineiramente que varrerá a Coreia do Sul do planeta e diversos países usem do seu arsenal para manter uma frágil e violenta paz por meio da dissuasão pelo medo.
Assim, a organização Nihon Hidankyo venceu o Prêmio Nobel da Paz por conta dos seus esforços em busca de um mundo livre de armas nucleares e pelo trabalho fundamental de transmissão da memória, por meio de depoimentos de vítimas, sobre aquilo que o ser humano foi capaz de fazer contra si mesmo naqueles dois terríveis e tristes dias de 1945. Talvez nunca um Prêmio Nobel da Paz tenha sido tão merecido e tão pertinente quanto este, por servir principalmente como um aviso, uma necessidade e uma recordação de uma memória não muito distante, mas um pouco esquecida, como se as vítimas de Hiroshima e Nagasaki estivessem tentando, ainda sufocadas, nos dizer algo.
Que o mundo possa aprender e entender a mensagem que a organização Nihon Hidankyo nos oferece, ao relembrar e reviver dores tão profundas e memórias tão dolorosas. Que as próximas gerações possam compreender o tamanho da coragem e também da generosidade que as vítimas de Hiroshima e Nagasaki nos oferecem, por nos permitir ainda aprender com o horror a que foram injustamente submetidos e com toda a dor intergeracional que a monstruosidade humana foi capaz de lhes causar. Que esse Prêmio Nobel não só nos relembre daqueles que padeceram, mas possa nos ajudar a nos livrarmos da nossa arrogância, da nossa bestialidade e da nossa estupidez, que insiste em nos mentir sobre o tamanho de nossa fragilidade.