Quando pensamos em alianças brasileiras no exterior, devemos lembrar não somente daqueles que são potenciais parceiros em nossa região, mas que são também globais. Dando atenção para a América do Sul, não podemos deixar de olhar para a situação argentina.
Submetida a crises econômicas desde o antigo presidente, algo que o atual, Alberto Fernández, simpático ao presidente brasileiro, Lula, não conseguiu combater, a política argentina enfrenta um tsunami. Para agravar a tensão econômica – que combina estagnação com inflação extremamente alta – este ano a Argentina terá eleições gerais, nas quais, dentre outros cargos, serão eleitos os chefes dos executivos do país, inclusive o próximo presidente.
Mas, por que estamos falando tanto da Argentina?
Bom, a política nacional da Argentina pode impactar fortemente na política externa do Brasil. Isso porque o país também faz parte do Mercosul, bloco que há muito vive em crise, porém intensificada a partir de 2021.
A intensa crise do Mercosul pode ser compreendida a partir de discordâncias sobre o futuro do bloco entre o então presidente brasileiro Jair Bolsonaro e Alberto Fernández, da Argentina. A questão também envolveu o presidente do Uruguai, Luis Alberto Lacalle Pou.
Neste jogo de xadrez, o Brasil se aliou ao Uruguai, muito por conta de proximidades da agenda política, a partir de uma guinada neoliberal na região. De outro lado, se posicionaram os presidentes da Argentina e o do Paraguai, Mario Abdo Benítez.
Para compreender esta dinâmica, precisamos voltar um pouco e entender o que faz do Mercosul uma união aduaneira imperfeita.
A grande questão do conflito era em relação a TEC (Tarifa Externa Comum). Isso significa que os quatro países que fazem parte do bloco aceitaram, em 1995, adotar uma tarifa comum para importação de produtos oriundos de países de fora do bloco. Obviamente, há exceções. Esse é o caso dos bens de informática, sendo que o Brasil aplica uma alíquota diferente da Argentina.
A grande crise se intensificou na comemoração de 30 anos do Mercosul, quando Fernández e Pou se desentenderam. A questão envolveu exatamente a TEC. O Brasil defendia um corte de 20% de todas as alíquotas de importação do bloco, sendo 10% imediatamente e 10% escalonado em meses. Já a Argentina não queria mudar a tarifa de todos os produtos, mas de cerca de 40% deles (existem mais de 10 mil produtos em que a alíquota comum é aplicada).
Nesse sentido, a Argentina defendia uma instrumentalização do bloco para impulsionar a indústria. O Brasil, que vive um processo de desindustrialização, tinha como estratégia o acesso de produtos sem impulsionar a indústria nacional, ou seja, ativando a importação. Já o Uruguai, que é um país que depende fortemente da importação, queria uma redução das alíquotas do comércio internacional.
Outra questão que apareceu durante essa crise foi a capacidade de fazer acordos com terceiros. De acordo com o Tratado que deu origem ao Mercosul, os países-membros só podem fazer acordos de livre-comércio em bloco. Isso foi agravado com a notícia dada por Pou em setembro de 2021, quando este afirmou que estava negociando um acordo de livre-comércio com a China.
O jogo de xadrez mudou
O início da década de 2020 foi de extrema importância para reconfiguração do xadrez político da América Latina. As duas eleições que mais chamaram a atenção foram da Colômbia, com a eleição do ex-guerrilheiro Gustavo Petro, e a eleição do Brasil, com a volta de Lula à presidência.
Isso abriu margem para a esquerda latino-americana sonhar com uma “nova onda rosa”. O termo faz referência ao período que se viveu no início do século XXI com políticos de diferentes matizes de esquerda comandando seus países. O início dos anos 2020 deu uma esperança à esquerda que foi eleita na Bolívia (Luis Arce, 2020), no Peru (com o presidente impedido Pedro Castillo, em 2021), no Chile (Gabriel Boric, 2022) e a já citada Colômbia.
Podemos entender, então, que os principais países da região deram uma guinada à esquerda nas últimas eleições presidenciais – embora a grande maioria deles enfrentam o “fantasma latino-americano”, isto é, enfrentam problemas de governabilidade com um Legislativo fragmentado.
Possibilidade de mudança novamente
Desta maneira, uma mudança ideológica no poder argentino muda completamente o jogo de forças da América Latina e é aqui que a eleição do país ganha tanta importância. Neste sábado será definida a lista de pré-candidatos para as eleições gerais no país e, assim, terá início a campanha eleitoral.
Algumas coisas nos saltam ao olhar. Primeiro, o atual presidente afirmou em abril deste ano que não disputará a reeleição, sendo retirado, portanto, um importante player do xadrez político argentino. A declaração foi feita em meio a uma crise de governo que opõe Fernández e sua vice, Cristina Kirschner. À Radio Nacional Rock, Fernández chegou a afirmar que faltou democracia ao peronismo nos últimos anos.
A crise de governo também impacta a aliança peronista para as eleições, que mudou de nome de Frente de Todos para União pela Pátria (UP). O kirchnerismo, corrente do peronismo, defende um pré-candidato único da aliança; mas, Fernández apoia dois outros candidatos: Daniel Scioli, Embaixador da Argentina no Brasil, e o chefe de gabinete Agustín Rossi.
Há também as candidaturas de centro, representadas pela frente Juntos pela Mudança (juntos por el cambio). Trata-se de uma aliança composta por Avanza Liberdad e pelos partidos GEN e UNIR.
No lado oposto do espectro do kircherinismo encontra-se o polêmico Javier Milei, que ratificou a inscrição de seu partido La Libertad Avanza (LLA). Milei é conhecido por suas falas impactantes e seu estilo populista. Inclusive, a sua possível vice-presidente, Victoria Villarruel, elogiou a ditadura militar de 1976 no país, algo que é muito malvisto por boa parte da população argentina.
Essas são as três principais alianças que disputaram as primárias argentinas. O El Cronista, jornal argentino, compilou as últimas pesquisas de opinião, que consolidam essas três alianças para as eleições. Realizada em maio pela Opina Argentina, a pesquisa aponta A Frente de Todos – agora UP – ligeiramente na liderança, com 26% dos votos. Seguida por um empate entre a coalizão de centro Juntos pela Mudança e o partido de Milei, La Libertad Avanza.
Quando olhamos o cenário por pré-candidato:
- Horacio Larreta e Patricia Bullrich, pelo Juntos pela Mudança;
- Sergio Massa e Wado de Pedro, pela Frente de Todos; e
- Milei, candidato único de La Libertad Avança.
Quem aglutina a maior quantidade de intenção de voto é Milei, com 23,3% dos votos; seguido por Larreta (15,1%) e Massa (14,2%).
O que está por vir?
Num possível segundo turno, a situação complica para os peronistas e a aliança de Frente de Todos, com uma possível coalizão entre Milei e alguns pré-candidatos de Juntos pela Mudança.
Entretanto, ainda há todo o período de campanha, sendo que as eleições presidenciais serão realizadas apenas em outubro. Essa fragmentação toda na eleição pode nos dar indícios do que será a governabilidade do/a eleito/a: será que conseguirá escapar do “fantasma latino-americano”?