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Crise da democracia e os sinais do governo Bolsonaro

Crise da democracia e os sinais do governo Bolsonaro

Publicado no Estadão em 22.01.21

Felipe Calabrez é doutor em Administração Pública e Governo pela pela Fundação Getúlio Vargas (FGV EAESP) e mestre em Ciência Política pela Universidade Federal do Paraná (UFPR)

“ALGUMA COISA ESTÁ ACONTECENDO”. É com estas palavras que o cientista político Adam Przeworski inicia seu mais recente livro, Crises da democracia[1]. Movido pelo incômodo com o clima político a nível internacional, marcado pela ascensão de partidos e líderes de extrema direita com suas pautas regressivas e xenófobas e discursos de ódio e intolerância, mas movido também pela avalanche de macrointerpretações que vaticinam o fim da democracia liberal, Przeworski prefere ser mais comedido. Com seu usual ceticismo em relação à pretensão corriqueira de parte das ciências sociais em conectar fenômenos e atribuí-los causalidades forçadas e sentidos históricos duvidosos, o cientista político busca um robusto conjunto de dados para nos guiar numa instigante investigação movida por perguntas simples e certeiras: O que está acontecendo com as democracias ocidentais? Se é que de fato algo está acontecendo. Onde procurar padrões e respostas? O que a história pode nos ensinar, dadas as contingências do presente? Como as democracias fracassam?

Quem já conhece os trabalhos anteriores do autor não estranhará seu estilo direto e a maneira como traduz questões complexas em perguntas simples, o que aparece desde o início em sua definição minimalista – os termos são seus – de democracia, entendida como “um sistema no qual ocupantes do governo perdem as eleições e vão embora quando perdem”. Assim entendida, a pergunta central que guia a investigação proposta no livro é se a democracia, enquanto mecanismo capaz de processar conflitos, estaria de fato ameaçada.

Os sinais de uma possível crise da democracia elencados por Przeworski incluem o rápido desgaste dos partidos tradicionais, o avanço de partidos e atitudes nacionalistas, racistas e xenófobas e o declínio que o apoio à democracia tem recebido em recentes pesquisas de opinião. As estatísticas comparativas levam o autor a explorar explicações de ordem econômica, cultural e política, sem conferir primazia a nenhuma delas. Isto é, fenômenos como estagnação da renda per capita, desemprego e insegurança no mundo do trabalho podem explicar parcialmente determinadas insatisfações canalizadas pela extrema direita que hoje explora o sentimento de “anti-sistema” e “anti-elites” no poder. Mas não explicam sozinhos. Tampouco explicam sentimentos de ódio aos imigrantes, o que possui causas mais profundas e culturais. 

Sempre parcimonioso em suas conclusões, Przeworski pode decepcionar o leitor que busca grandes explicações sobre tudo isto que está aí. Seu método de análise sugere que tanto a História quanto um quadro estatisticamente estruturado do presente (que inclui comportamento eleitoral, níveis de renda, fragmentação partidária etc.) nos são insuficientes para predizer o futuro. E o ponto central que permeia todo o livro é uma preocupação sobre o futuro: Serão as instituições representativas e seus mecanismos de freios e contrapesos capazes de conter esse espectro de intolerância e autoritarismo que ronda a Europa, os EUA e também o Brasil?

Novamente, o autor não nos oferece uma resposta a essa questão. Nos oferece, no entanto – e é o que torna o livro mais interessante – caminhos para entendermos como a democracia pode ser destruída gradativamente, por vias institucionais e sem violar as Constituições. Medidas discretas, que isoladas parecem não significar nada de relevante e passar despercebidas, podem estar corroendo a democracia. Isso pode envolver “brechas autoritárias” presentes nas Constituições ou mesmo interpretações sobre a constitucionalidade de certas medidas, visto que as próprias cortes são, em última instância, instituições políticas. Esse processo é chamado de sub-repção.  Aqui peço licença ao leitor para transcrever um breve e elucidativo trecho do livro:

A sub-repção é um processo pelo qual o governo adota certas medidas, nenhuma delas manifestamente inconstitucional ou antidemocrática, mas que acumuladas destroem pouco a pouco a capacidade da oposição de tirá-lo do cargo ou ampliam sua liberdade de formulação política (PRZEWORSKI, p. 211, 2020).  

É cristalina a pertinência de Crises da Democracia para pensarmos o Brasil atual. Seguindo a orientação de Przeworski e buscando sinais de que há em curso no Brasil um processo de sub-repção, podemos fazer facilmente uma listagem contendo apenas os acontecimentos mais recentes que sinalizam uma tentativa de operar uma concentração do Poder Executivo e aumentar sua influência e controle sobre organizações armadas do Estado brasileiro. Senão vejamos:

Quarta-feira, 20 de janeiro: Dois dias após o presidente ter afirmado que “quem decide se o povo vai viver em uma democracia ou ditadura são suas Forças Armadas”, Bolsonaro discursa em solenidade do 80º aniversário do Comando da Aeronáutica na base aérea de Brasília, onde reafirma que as Forças Armadas são a “grande base” para sua “missão” à frente do país. Esse aceno às Forças Armadas não é ato isolado e é sintomático que tal aproximação se estreite sempre que o presidente se vê acuado diante de outros poderes e pressões da oposição. Tem-se aqui como agravante o fato de que membros que compõem o alto escalão do governo são ao mesmo tempo militares da ativa, isto é, possuem comando sobre tropas.

Terça-feira, 19 de janeiro: Uma nota do Procurador Geral da República, Augusto Aras, causou perplexidade geral. Diante da pressão para avaliar ilicitudes do Presidente da República, a PGR lançou nota não apenas se eximindo, ao atribuir a função de julgá-las unicamente ao Poder Legislativo, mas complementou com uma menção ao chamado estado de defesa: “o estado de calamidade é a antessala do estado de defesa” declarou a PGR. O chamado “estado de defesa” é um dispositivo constitucional (previsto no artigo 136 da Constituição) para casos de “instabilidade institucional”. Não sabemos a intenção e o cálculo de Aras ao jogar no ar tal possibilidade. Sua invocação, no entanto, não deve passar despercebida.

Sinais na mesma direção dos acima relatados abundam, como, por exemplo, o resgatado projeto de lei que altera o poder dos estados sobre suas forças policiais ao propor alterações na forma de nomear seus comandantes. A proposta, que sugere alterações na estrutura das polícias, embora parta do Parlamento, possui origem e é afinada com as pretensões do Governo Federal e na prática reduziria o poder dos governadores sobre suas polícias. Tal projeto, que passou quase despercebido, pode ser entendido no contexto da guerra aberta de Bolsonaro com os governadores e, o que é mais grave, na aparente tentativa de controle e influência sobre a Polícia Militar, braço armado do Estado.

A listagem acima se limita ao recém iniciado ano de 2021. Se estendermos o período e também a natureza das ações do governo Bolsonaro, vale mencionar os questionamentos públicos sobre a legitimidade do processo eleitoral, gesto inaceitável ao colocar sob suspeita o funcionamento da democracia mesmo em sua versão minimalista. Os efeitos de um gesto como esse são perigosos, como notaram recentemente os EUA ao temer por um momento a observância do preceito mais elementar do jogo democrático: Aquele que perde as eleições reconhece a derrota e vai para casa.

Vale aqui então frisar uma lição aprendida com experiências recentes e assim enunciada por Przeworski: “[…] democracias não dispõem de mecanismos institucionais que impedem que elas sejam subvertidas por governos devidamente eleitos segundo normas constitucionais”. Diante disso, importa o modo como seremos capazes de perceber os efeitos cumulativos de determinadas medidas no futuro e a capacidade de resposta das instituições frente às medidas autoritárias do presidente da república. Importa também a capacidade de mobilização da oposição e da população em geral, o que pode mudar o espaço de ação ou aumentar o risco das jogadas autoritárias para o próprio governo, fazendo-o recuar.

Os alertas feitos acima podem soar ingênuos para o leitor que lembra muito bem das falas do atual presidente sobre fuzilar o então presidente Fernando Henrique Cardoso, ou “metralhar a petralhada”, como dito em campanha presidencial de 2018. Há infindáveis exemplos da personalidade autoritária e violenta do atual presidente. Mesmo sendo notória, parte do país optou por ela. Não se trata, no entanto, de investigar sua personalidade – lamentável sob todos os aspectos – mas sim observar as jogadas do tabuleiro político e as possibilidades de resistência. Seguindo a parcimônia explicativa de Przeworski, não há inevitabilidades na história da política. Ela é marcada por contingências. Por isso não podemos nem afirmar que a democracia está condenada à morte no Brasil e nem afirmar que está tudo bem pois “as instituições estão funcionando”. Olhando para o Brasil, penso que Przeworski diria, a seu modo quase coloquial: As instituições podem até estar funcionando. Mas tem alguma coisa acontecendo. É preciso interpretar os sinais e se mover politicamente para evitar um desfecho autoritário. Antes que seja tarde demais.


[1] PRZEWORSKI, A. Crises da democracia. 1ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2020

Observação: Esse conteúdo não representa, necessariamente, a opinião da Fundação Podemos.

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