A quarta-feira, 23 de agosto, foi um dia importante para a geopolítica e geoeconomia global. Os líderes do BRICS – bloco formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, se reuniram em Joanesburgo para a 15ª cúpula dos chefes de estado. Entre os temas em pauta, a expansão dos países membro.
Já na quinta-feira, 24, em meio à expectativa do anúncio sobre quais membros seriam incorporados ao grupo – e a demanda era grande – uma outra notícia ganhou destaque na imprensa: “Brics começa estudos para usar moedas locais em transações dentro do bloco”. Tão logo saiu a notícia – e ela veio antes do anúncio dos novos países ingressantes – já começaram a circular uma série de informações desencontradas: “Eles vão criar uma moeda única”, “Haverá um banco central do BRICS?”, “Vão querer substituir o dólar”.
Não é bem isso. Mas sim, há sinais de que algo importante está se movendo no cenário político e econômico internacional. Vamos tentar entender um pouquinho sobre isso nesse que é mais um episódio da série Economia em Foco.
Ampliação dos BRICS no contexto internacional:
Em um cenário marcado pela polarização entre China e Estados Unidos e por uma guerra sem fim à vista entre Rússia e Ucrânia, havia claro interesse de diversos países em ingressar no Brics. Após complexas negociações, com cada membro originário pressionando pelo ingresso de países de seu próprio interesse, decidiu-se pelo ingresso de mais seis países: Argentina, Irã, Arábia Saudita, Egito, Etiópia e Emirados Árabes Unidos. O grupo contará, oficialmente a partir de 2024, com 11 membros.
De acordo com o professor Rodrigo Gallo, Coordenador do curso de pós-graduação de Política e Relações Internacionais da Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP), essa expansão é interessante por diversas perspectivas, já que pode ampliar a cooperação entre potências emergentes, além da cooperação entre os novos membros em questões de desenvolvimento econômico, em oposição à pouca capacidade e interesse do G7 de coordenar esse tipo de esforço. Diante de um cenário global em constante transformação, a nova configuração dos BRICS vai ampliar também a participação de regiões que normalmente são sub-representadas nos principais fóruns multilaterais, em especial a África, que passaria a contar com três integrantes no grupo: África do Sul, Etiópia e Egito.
Dentro desse contexto geopolítico, vamos tentar selecionar aqui um tema, que seria o mais “econômico”, para tentarmos entendê-lo melhor. Qual o papel do dólar como moeda de referência para as transações comerciais entre os países. Mas vale ressaltar que essa é uma separação artificial, para fins didáticos. No mundo concreto, da geopolítica e geoeconomia global, dinheiro e poder são dois lados de uma mesma moeda.
Hegemonia do dólar e fragilidade financeira dos outros
Desde o pós-guerra, a partir do tratado de Bretton-Woods, adotou-se o padrão dólar-ouro como moeda de referência das transações internacionais. Nesse momento também foi criado um organismo internacional que contaria com um fundo capaz de dar suporte a países que tivessem problemas em seus balanços de pagamentos. Estamos falando do Fundo Monetário Nacional (FMI). Toda essa arquitetura foi construída em um contexto de uma Europa devastada pela guerra e com os E.U.A despontando como grande potência econômica e militar.
No início dos anos 1970, com a impossibilidade de manter o lastro do dólar em ouro, os E.U.A rompem unilateralmente com o acordo e passa a vigorar a livre paridade das moedas. No entanto, os E.U.A seguem hegemônicos no cenário internacional e a moeda de referência para as transações internacionais segue sendo o dólar. Dito da maneira mais simples possível: Todos os países integrados ao comércio mundial precisam encontrar alguma maneira de possuir dólar para financiar suas importações caso sua balança comercial feche em saldo negativo. E se eles precisarem urgentemente de dólar para fechar suas contas externas e evitar uma crise financeira, eles precisam do FMI.
A criação de um Fundo Monetário Internacional, capaz de socorrer os países membro e evitar estrangulamentos financeiros, foi talvez a melhor obra da arquitetura financeira internacional do século XX, e era necessária para uma Europa devastada pela guerra. Seu problema é que poderia ter sido melhor. Uma das propostas da Conferência de Bretton Woods era justamente a criação de uma moeda supranacional que servisse de referência para as transações comerciais. Sua sugestão veio de ninguém menos que John Maynard Keynes, uma das melhores cabeças econômicas do século XX. Essa proposta, no entanto, foi derrotada pelo poder, e os americanos conseguiram determinar que o dólar fosse o meio de pagamento internacionalmente aceito, junto com um sistema de livre paridade entre as moedas nacionais.
O que ocorre é que, desde então, os países dependem de alguma maneira da entrada de dólar, seja para financiar importações, seja para tentar administrar suas taxas de câmbio, que oscilam em função do fluxo de dólar que entra e sai desses países, seja para manter reservar internacionais que reduzam sua vulnerabilidade financeira externa. Em suma, esses países dependem de uma moeda que não é sua, o que faz, inclusive, com que as decisões do único país emissor dessa moeda, os E.U.A, afetem diretamente suas economias. Uma decisão do Federal Reserve (FED) sobre as taxas de juros americanas, por exemplo, geram impacto nas decisões macroeconômicas no Brasil.
Mas o Brasil possui um alto nível de reservas internacionais denominadas em dólar justamente para reduzir essa vulnerabilidade. Já a Argentina, como vimos no vídeo episódio anterior, possui um saldo líquido de reservas negativo e um enorme déficit comercial. Desesperado por dólar, o país vive contraindo empréstimos com o FMI e tendo que se sujeitar às condicionalidades impostas pelo Fundo.
O único país – e esse é ponto do porquê estamos falando em hegemonia do dólar – que pode fechar suas contas externas no negativo sem gerar problemas internos são os E.U.A. O país fechou o ano de 2022 com um saldo negativo em sua balança comercial que beira 1 trilhão de dólares[1], sem que isso gere problemas internos, já que o país é o próprio emissor da moeda, além de ser a praça financeira que mais atrai dólares no mundo, depositados lá justamente pelo países que tiveram superávit.
O BRICS pode mudar isso?
Um dos projetos do BRICS foi a criação de um banco capaz de financiar projetos de desenvolvimento dos países membro e criar algum mecanismo de reserva para reduzir a exposição desses países aos mecanismos do G7. Esses movimentos, que recentemente pareciam seguir um ritmo mais lento, e da parte do Brasil, regressivos, retornaram à cena com tudo.
Um dos projetos colocados na mesa nesta última reunião foi a ampliação do papel do Banco dos Brics (New Development Bank, NDB), que oferecerá empréstimos aos países membro em suas moedas locais, o que, segundo sua presidente atual, Dilma Roussef, “faz parte de um plano para reduzir a dependência do dólar e promover um sistema financeiro internacional mais multipolarizado”.
Outra proposta que chamou a atenção foi a da criação de uma unidade de referência entre as cincos moedas do bloco: A ideia é avaliar se é possível usar moedas locais nacionais, arranjos financeiros ou meios de pagamento alternativos, que permitam a realização do comércio intrabloco sem passar pelo dólar, e que também seja adotado na contabilidade interna dos mecanismos financeiros criados pelo bloco. Nesse sentido, já se fala na possível criação da R5(“are five”), que faz alusão às iniciais dos nomes das moedas dos países membro (real, rublo, rúpia, renminbi e rand).
O que eles estão querendo com isso é não apenas a redução da dependência do dólar no comércio, mas também a redução do papel do FMI, organismo internacional emprestador em dólar e, na prática, representante do eixo E.U.A e União Europeia no tabuleiro geopolítico e geoeconômico. Aparentemente o Brasil foi o maior entusiasta dessa medida, e o projeto já tem o apoio explícito dos russos e é visto com simpatia pela China.
Trata-se de um projeto arrojado, embora ainda incipiente. Para termos uma base de comparação, a carteira de empréstimos do banco gira hoje na casa dos 32 bilhões de dólares, valor inferior ao último empréstimo que a Argentina contraiu com o FMI no ano passado, que foi de 44 bilhões. No entanto, vale lembrar que no BRICS acabam de ingressar Irã, Arabia Saudita e Emirados Árabes Unidos, países produtores de petróleo e que já sinalizaram que vão engordar o caixa da instituição.
As peças do tabuleiro geopolítico se movem rapidamente
Não há dúvida de que estamos diante de um movimento acelerado de reorganização da balança de poder internacional, dentro do que a dimensão “econômica” é apenas um aspecto. Melhor dizendo, a economia é um aspecto indissociável da política
Como ressalta o professor Rodrigo Gallo, do ponto de vista geopolítico, os novos membros também correspondem a locais de interesse global. Irã, Emirados Árabes e Arábia Saudita estão ligados a todo o debate da geopolítica do petróleo, e Egito e Etiópia, pela posição geográfica, são importantes para a questão logística do canal de Suez, que liga o Oceano Índico ao Mediterrâneo e é essencial para a economia mundial – em especial para o comércio exterior chinês.
No entanto, prossegue Gallo, é necessário fazer uma ressalva. Do ponto de vista político, trata-se de um grupo de países muito diferentes e que enfrentam problemas de ordem democrática: além da China, que não é uma democracia liberal, e Rússia, que está atualmente envolvida em uma guerra, há ditaduras sendo incorporadas aos BRICS, o que vai demandar um esforço diplomático para que essa situação não contamine a credibilidade do grupo quando determinadas questões ascenderem ao debate.
Vale lembrar também que, no que diz respeito ao Brasil, a continuidade desses esforços vai depender da direção que a política tomar nos próximos anos, o que vale também para a Argentina.
Se a economia interna de um país depende da política, suas relações econômicas externas dependem de um arranjo político que é ainda mais complexo.
[1] Para efeito de comparação esse valor, que supera 5 trilhões de reais, é algo que representa aproximadamente 50% do PIB brasileiro no ano de 2022.