Durante praticamente toda a metade do século XX os EUA buscaram se afirmar como a democracia mais sólida, robusta e perfeita do planeta, principalmente em contraposição ao mundo comunista, tomando como obra sua a afirmação dos direitos humanos. Ou seja, no confronto ideológico entre os dois blocos, os EUA tomaram para si a roupagem dos direitos humanos e da democracia para dizerem ao mundo que sua proposta era mais humana e igualitária do que a da URSS. Para isso, como num processo de autonegação, jamais escancararam o profundo abismo racial existente em sua sociedade.
As leis raciais, conhecidas como Jim Crow, dividiam a sociedade americana entre brancos e negros, negando o acesso destes aos mesmos lugares daqueles. Isto é, uma sociedade que apesar do discurso, definia quem era superior e quem era inferior. As leis Jim Crow perduraram de 1876 a 1965.
Nesse contexto de segregação racial, os negros não podiam sentar-se ao lado dos brancos. Não podiam beber água nos mesmos bebedouros, não podiam frequentar os mesmos restaurantes, tampouco as mesmas escolas. Foi necessário que pessoas como Rosa Parks e o Dr. Martin Luther King lutassem pelos direitos civis para que eles pudessem começar a ser realmente aplicados para a população negra norte-americana, que convivia com o racismo diariamente.
Mesmo sendo considerados inferiores, os negros americanos lutaram na Segunda Guerra Mundial. É justamente com esse pano de fundo que o diretor e roteirista Tyler Perry conta a história de um grupo de mulheres negras que, sem qualquer ajuda, prestígio ou mesmo respeito, ajudou os EUA a derrotarem o nazifascismo.
Indicado ao Óscar de melhor canção original (The Journey), Batalhão 6888 narra a missão dada ao primeiro corpo militar composto por somente mulheres negras da história dos EUA. Kerry Washington (Django Livre) interpreta a Major Charity Adams, a responsável por recrutar, treinar e comandar o grupo de mulheres negras que integrará o exército norte-americano. Com uma atuação marcante e extremamente forte, Kerry encarna a coragem de uma mulher que, mesmo diante das suas obrigações hierárquicas, se recusa a ser diminuída, destratada e questionada em sua capacidade e disposição por ser negra.
Inicialmente, o corpo militar de mulheres negras não recebe qualquer tipo de missão. Elas apenas treinam e esperam alguma ordem superior. Na realidade, os militares brancos e homens tratam o batalhão com desdém, ridicularizando a capacidade das mulheres sempre que podem.
Uma das mulheres que resolve se alistar no exército para derrotar Hitler é Lena Derriecott, vivida pela promissora Ebony Obsidian. Lena vivia um romance com Abram David (Gregg Sulkin), um jovem branco e judeu, que resolveu defender os EUA na Europa. Apesar da questão racial, ambos estavam apaixonados um pelo outro. Antes de ir para a Europa, Abram prometeu enviar cartas para Lena sempre que pudesse. Contudo, no ano de 1943, quando a guerra está nos seus momentos mais difíceis para os norte-americanos, os EUA decidiram dar muito mais atenção aos recursos destinados à linha de frente do que a tudo aquilo que era considerado acessório ou colateral, como por exemplo, o sistema de correspondência entre soldados e suas pessoas queridas. Milhares de cartas se acumularam sem serem entregues, o que acarretou numa enorme sensação de angústia e desespero não somente dos familiares, que não tinham notícias de seus filhos na guerra, como destes que se sentiam abandonados junto ao horror do que estavam vivendo.
Lena é uma dessas pessoas. Ela não se conforma em não receber notícias de Abram até o momento que descobre que ele havia morrido em uma de suas primeiras batalhas. Triste pela perda do amor, ela decide se alistar.
Além de Lena, inúmeras outras famílias encontravam-se angustiadas. Diante disso, uma mãe desesperada resolve esperar em frente aos portões da Casa Branca, em pé, durante três dias, até ser atendida por Eleanor Roosevelt (Susan Sarandon). Ao ver a persistência daquela mulher, a primeira-dama dos EUA resolve atendê-la e entender o que estava se passando. Ao explicar que ninguém estava recebendo notícias no e do front, a primeira-dama levou o caso ao então presidente Franklin Roosevelt, que, entendendo a dimensão do problema, mandou resolver a situação imediatamente. A tarefa de dar cabo ao represamento de milhares de cartas foi dada ao general Halt, interpretado pelo ótimo Dean Norris (Breaking Bad). Halt era além de machista, extremamente racista. Contudo, teve que ouvir a sugestão dada pela conselheira negra da presidência Mary Macleod (Oprah Winfrey), para utilizar o batalhão de mulheres negras para essa tarefa.
Contrariado, ele é obrigado a acatar a sugestão e dá ordens para que a Major Charity Adams seja enviada com suas mulheres negras para a Europa. Fazendo de tudo para que elas fracassassem, ele dá o prazo de 6 meses para que consigam resolver, sem ajuda nenhuma todo o problema das cartas, sendo obrigadas a não só identificar remetentes e destinatários, como também desvendar a localização de unidades móveis de soldados.
Em meio ao racismo, à misoginia e a hipocrisia que envolve praticamente todo o contexto de guerra, os EUA, lutando pela liberdade contra os nazistas, tiveram que contar com aquelas que eles julgavam inferiores e incapazes, assim como os nazistas julgavam inferiores e incapazes os judeus. Sem essas mulheres negras, que levaram o afeto e o desejo de se reencontrar àqueles meninos que morriam pela pátria, talvez o ânimo de uma nação não teria sido forte o suficiente para suportar tudo que ainda estava por vir.
Batalhão 6888 é um excelente filme, que escancara um problema muito mal resolvido ainda nos EUA e que até hoje traz sérias consequências. Mas, além disso, é uma justa homenagem a quem muito fez e tão timidamente foi lembrado na história desse país.