A madrugada do dia 06 de novembro de 2024 entrou para a história. Em uma das eleições mais disputadas que os Estados Unidos já viveram, o ex-presidente Donald Trump venceu a vice-presidente Kamala Harris levando praticamente todos os estados decisivos no pleito em que quase todas as pesquisas apontavam um empate técnico. Embora a previsão fosse de um resultado mais parelho, Trump venceu com relativa folga.
Costumeiramente nas eleições americanas os votos republicanos chegam primeiro que os dos democratas. Deste modo, há quem diga que na apuração o primeiro momento é o da miragem vermelha, para mais ao final os votos azuis chegarem com força. Foi justamente isso que aconteceu durante a apuração do pleito de 2020, quando Joe Biden derrotou o então presidente Trump, impedindo-o de ser reeleito, relegando-o ao humilhante grupo de presidentes em exercício que não conseguiram ser reconduzidos ao cargo. Desta vez foi bem diferente.
Por volta de uma da manhã do horário de Brasília o cenário já se desenhava extremamente promissor para o republicano. Carolina do Norte e Georgia mostravam Trump a frente de Kamala. Para que a vice-presidente ainda tivesse chances, ela não poderia perder, em hipótese alguma, Wisconsin e Pennsylvania. Mas, nessas primeiras horas da madrugada Trump assumiu a dianteira nos dois estados e não mais as deixou. Quando os relógios brasileiros marcavam seis da manhã, a vitória de Trump era irreversível.
Assim, os eleitores dos Estados Unidos decidiram dar a Trump, um homem condenado criminalmente e acusado de ser ao menos conivente a uma das passagens mais dantescas e chocantes da história da orgulhosa democracia americana no dia 06 de janeiro de 2021, uma segunda chance. Trump retorna à Casa Branca, triunfante e, com toda certeza, bem diferente daquele que assumiu pela primeira vez a chefia da maior potência bélica do planeta.
No primeiro mandato Trump era uma incerteza. Muito pouco se sabia do que ele seria realmente capaz. Havia dúvidas se ele conseguiria cumprir suas promessas escatológicas como a da construção de um muro entre os EUA e o México e suas ameaças de deportação. Trump foi um negacionista climático que também falhou diante da pandemia e suas exigências. Em seu governo o movimento Black Lives Matters mostrou força e disposição para reivindicar direitos da população negra cansada de sofrer com o racismo no país. O resultado foi sua demissão do cargo e a eleição de Joe Biden.
Contudo, um mundo conturbado pelo grave conflito envolvendo a Rússia e a Ucrânia, que exigiu um dispêndio vultuoso de dinheiro dos EUA para amparar o governo de Zelensky contra Putin, somado ao desgaste sofrido no apoio incondicional de Biden a Israel e ainda agravado pela inflação decorrente principalmente dos efeitos e impactos da pandemia de Covid-19 levaram o governo democrata a uma profunda crise de popularidade. Além disso, o desempenho pessoal de Biden no primeiro debate provocou a certeza no eleitorado norte-americano de que ele não teria condições de exercer um segundo mandato. Às pressas surgiu uma candidatura vinculada ao governo e com dificuldades de se desvencilhar de suas impopularidades. Ou seja, a derrota de Kamala pode ser explicada por diversos prismas, mas é fundamental que se compreenda que sua candidatura foi valorada pelo eleitor como uma continuidade de Biden. Kamala não conseguiu convencer o eleitor norte-americano de que ela poderia ser a mudança que esperavam. Aliás, muito pelo contrário, além de ser vista como uma continuidade, foi penalizada por eleitores que tradicionalmente votariam nela, principalmente por conta dos conflitos na Europa e no Oriente Médio.
Diante disso, o resiliente Trump, auxiliado pelas confusões do sistema eleitoral e judicial da Federação de estados que forma os EUA, apresentou-se como a renovação e a ideia de um governo mais forte, menos ambíguo, tal como foi Biden em diversos momentos. Assim como a derrota de Kamala pode ser explicada por diversos modos, a vitória de Trump também. De qualquer maneira, importa retomar a ideia de que nesse mandato Trump será bem diferente do primeiro.
Se no primeiro mandato, tal como mencionado, Trump era uma incerteza, não há por qualquer razão duvidar do que ele prometeu em sua campanha para esse segundo. Muitos analistas insistem em dizer que Trump II traz incertezas para o mundo. Talvez, a análise possa ser feita de uma maneira mais condizente com o fato de Trump, em seu primeiro discurso de vitória, ter afirmado que os EUA lhe deram um mandato poderoso e sem precedentes. Ou seja, a incerteza sobre o que ele fará pode ser apenas um subterfúgio para não aceitar ou simplesmente compreender que ele apontou de maneira muito clara o rumo que tomará. Talvez aqui a reflexão possa ser feita: os norte-americanos escolheram justamente aquilo que queriam, pois Trump foi extremamente claro em suas intenções.
Trump em suas entrevistas e discursos cansou de deixar explícito que em seu primeiro mandato o seu maior erro foi não ter sido mais enérgico, autoritário e decisivo. Ou seja, simplesmente apontou que foi tolhido e sofreu contenção por parte de integrantes do seu próprio governo, tanto que afirmou que dessa vez se circundará de generais, que mesmo não tão experientes, sejam fiéis a ele. Dessa forma, a primeira certeza que Trump nos traz é que seu segundo governo será composto de pessoas incapazes de lhe impedir de tomar alguma decisão que ele realmente queira. Nomeará burocratas completamente servis e não admitirá qualquer tipo de contenção. Além disso, Trump manifestou o desejo de acabar com o Departamento de Educação e colocar o Departamento de Justiça (equivalente ao Ministério Público no sistema brasileiro), e o FBI diretamente sob o controle presidencial.
Em sua campanha a temática do discurso contra a imigração foi central. Trump não escondeu em nenhum momento a sua pretensão de executar deportações em massa e aumentar as restrições para imigrantes nos EUA. Durante a corrida eleitoral, ele infestou as redes sociais de mentiras e falsas relações entre o aumento da criminalidade e crimes supostamente cometidos por imigrantes. Chegou, inclusive, a mencionar que a criminalidade havia diminuído na Venezuela porque os criminosos venezuelanos estavam cometendo seus crimes nos EUA. Vale lembrar a tosca e escatológica denúncia de que imigrantes estavam comendo cães e gatos de bons cidadãos norte-americanos. Nesse sentido, não há também qualquer motivo para duvidar ou ter a incerteza de que Trump vai complicar a vida de imigrantes nesse seu segundo mandato. Restrições virão e isso é mais do que esperado.
Em relação às mudanças climáticas e ao aquecimento global, Trump nunca negou em nenhum momento que não acredita em nada disso. Muito pelo contrário, afirmou que impulsionará o uso de combustíveis fósseis como recurso energético e eliminará a Administração Oceânica e Atmosférica Nacional, responsável por monitorar as mudanças climáticas nos EUA. Aliás, vale sempre lembrar que o país é o líder mundial de emissões de dióxido de carbono (CO2) por habitante, apresentando a assustadora cifra de 17,6 toneladas por pessoa.
No que toca ao eleitorado feminino, Trump prometeu restringir o acesso a medicamentos de aborto. Aliás, o fato dele ser um assediador e molestador inquestionável pareceu não incomodar o eleitorado dos EUA em geral, com exceção das mulheres negras que votaram majoritariamente em Kamala. O fato de Trump ter diversas acusações gravíssimas sobre assédio sexual e estupro não teve peso na decisão da escolha do próximo presidente dos EUA. Curioso aqui anotar que os EUA parecem mesmo não desejarem uma mulher como chefe da nação; tampouco negra. Afinal, como já dito, as mulheres brancas optaram por votar em Donald Trump.
Além disso tudo, Trump deixou claro que vai se vingar dos seus críticos e daqueles que considera traidores. Ele falou isso por diversas vezes em sua campanha. Nesse sentido, afirmou que pretende expandir o poder presidencial no sistema norte-americano. Vale aqui apontar que ele terá um Supremo Tribunal bem simpático, uma vez que, inclusive, este já decidiu que o presidente dos EUA tem imunidade para fazer simplesmente o que quiser em seu mandato. Afinal, para ele vale a irresponsabilidade jurídica durante o exercício da presidência. Deste modo, não será incerteza alguma se Trump ampliar seus próprios poderes e tê-los legitimado pelo Supremo. Maioria e controle do Senado os republicanos também conquistaram; resta saber se também terão, tal como se projeta, controle da Câmara.
Trump também afirmou que banirá pessoas trans do serviço militar e colocará militares para perseguir pessoas que estão em situação irregular no país ou cometem crimes.
No campo das relações internacionais, Trump sempre deixou claro seu desprezo pela OTAN e pelas instituições que os próprios EUA foram responsáveis por criar no âmbito da reconstrução do mundo após a Segunda Guerra Mundial. Não há razão para duvidar que ele reduzirá ou cortará contribuições para Organizações Internacionais, como também agirá de uma maneira menos participativa e colaborativa nos principais fóruns globais. Em seu primeiro mandato uma de suas primeiras medidas foi se retirar do Acordo do Clima e impedir o funcionamento da OMC. Assim, a administração Trump importará em um enfraquecimento do sistema internacional, reduzindo o fomento ao multilateralismo, à coordenação e cooperação internacionais
No campo econômico a promessa é adotar tarifas mais agressivas sobre importações vindas de todo o mundo, que girariam em torno de 10%, e um imposto de 60% sobre mercadorias provenientes da China. Por traz dessas medidas, a promessa clara de reativar a indústria americana.
Foge ao escopo desse texto analisar mais detalhadamente os possíveis efeitos dessa medida, mas vale apontar para dois aspectos que estão ligados a ela: o primeiro é o de que no atual estágio de globalização produtiva, esse tipo de medida protecionista dificilmente surtiria os efeitos esperados em curto e médio prazo. O segundo é o de que elas tenderão a gerar inflação no curto prazo, pois, supondo que elas funcionem a longo prazo, leva tempo para reconstruir internamente as cadeias produtivas.
Outra medida econômica anunciada passa pelos cortes profundos nos impostos diretos para pessoas físicas e jurídicas. Trump afirma que tais cortes de impostos para os muito ricos e para as grandes corporações poderão impulsionar o investimento e o crescimento, tese que não tem passado pelo teste da realidade, já que desde os anos 1990 diversos países a adotaram e não obtiveram qualquer impacto sobre o crescimento, aumentando, por outro lado, as desigualdades. Os déficits orçamentários decorrentes dessa renúncia fiscal seriam cobertos pelos recursos obtidos com as tarifas de importação.
O que Trump promete aos americanos é, no fim das contas, um retorno ao passado. Seu lema MAGA – Make the America Great Again – é justamente isso. Um saudosismo a um Estados Unidos como grande indústria do mundo, altos níveis de consumo para as famílias e um país supostamente composto de nativos americanos, o que nunca passou de um mito, de um imaginário criado num horizonte glorioso que nunca existiu, a menos que consideremos como nativos a população indígena que foi exterminada justamente pelos americanos brancos.
Se seus planos vão funcionar, é difícil predizer. Mas Trump parece determinado a persegui-los com o vigor masculino e sexista demonstrado nas eleições. O bilionário de sucesso, admirado por aqueles que acreditam que na América o sonho americano de enriquecer é possível, independentemente de origem, gênero, ou qualquer outra característica, bastando apenas que você seja um killer, parece ter deixado muito claro o que pretende fazer. Talvez nunca tenhamos visto uma administração começar com suas pretensões tão explícitas e evidentes tal como a de Trump agora. Os EUA fizeram a sua aposta.
Autores:
Felipe Calabrez é cientista social, mestre em Ciência Política pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e doutor em Administração Pública e Governo pela Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (EAESP-FGV). Atualmente é professor de cenários macroeconômicos pelo Centro Universitário Belas Artes de São Paulo. Autor do livro Introdução à Economia Política: O percurso histórico de uma ciência social.
Guilherme Antonio Fernandes é Pesquisador Sênior na Fundação Podemos. Pós doutorando em Direito na USP. Doutor em Direito pela USP. Mestre em Integração da América Latina pela USP. Foi membro do Gebrics-USP. Pesquisador, Professor e advogado em São Paulo.