Ainda estou aqui (2024) marca o retorno em grande estilo do diretor de Central do Brasil (1998), Walter Salles, ao cinema. Afinal, em pouco tempo o filme já alcançou uma das maiores bilheterias da história do cinema brasileiro. Não há dúvida de que a obra estará, daqui para frente, entre os clássicos que a sétima arte já produziu.
Estrelado por Fernanda Torres e Selton Mello, o filme é a aposta do Brasil para a próxima edição do Oscar. As atuações de ambos têm sido muito elogiadas nos festivais de cinema mundo a fora. Em Veneza, onde faturou o prêmio de melhor roteiro, o filme e os dois artistas foram ovacionados de pé por longos minutos. No Festival de Toronto não foi diferente. Especialistas têm dito, inclusive, que tanto o filme, quanto Fernanda Torres estão cada vez mais fortes para não somente serem indicados ao Oscar, como também para possivelmente levar a estatueta para casa. Vale dizer que a atuação de Fernanda tem sido tão elogiada que muitos já a colocam como indicada na categoria de melhor atriz, o que repetiria curiosamente sua mãe, Fernanda Montenegro, que foi também indicada por conta de um filme de Walter Salles.
Ainda estou aqui é baseado no livro homônimo, lançado no ano de 2015, do escritor e dramaturgo Marcelo Rubens Paiva, filho do deputado cassado pela ditadura militar, Rubens Beyrodt Paiva, brutalmente assassinado pelo regime de exceção que governou o Brasil de 1964 até 1985. Aliás, é sobre essa história triste que tanto machucou sua família que ele nos conta.
Selton Mello vive Rubens Paiva, um engenheiro civil formado pelo Mackenzie em São Paulo, ex-deputado federal pelo Partido Trabalhista Brasileiro, que havia se retirado da política e vivia com sua família no bairro do Leblon no Rio de Janeiro. Pai de quatro meninas e um menino, Rubens era casado com Maria Lucrécia Eunice Facciolla Paiva, interpretada por Fernanda Torres.
O filme retrata logo em seu início a rotina de uma família feliz em um Rio de Janeiro ainda muito diferente do que hoje se vê. Rubens e Eunice formavam um casal harmonioso numa casa repleta de crianças, adolescentes, conforto e paz. Rubens, depois que foi cassado pelos militares após o golpe de 1964, tocava seus negócios voltados para a engenharia e concentrava-se em seus filhos. Era um pai e marido amoroso, carinhoso e dedicado.
O retrato alegre da família Paiva é rapidamente contrastado pela brutalidade da polícia numa blitz que a filha mais velha do casal, Vera Paiva, acaba sendo submetida ao voltar de um passeio com seus amigos. Ou seja, o filme de Walter Salles não demora em contrapor a harmonia da vida em família com o período de chumbo que o país vivia. Vale ressaltar que o filme é impecável ao resgatar elementos da cultura musical da época e do ambiente do início da década de 1970. A fotografia e o figurino impressionam, dando perfeita ideia ao telespectador da atmosfera pesada que a ditadura militar impunha aos brasileiros que ousassem questioná-la.
Em janeiro de 1971, sem qualquer autorização judicial ou direito algum de defesa, agentes armados do regime ditatorial invadem a casa da família Paiva e levam Rubens para um interrogatório do qual jamais voltaria. É nesse momento que começa todo o drama explorado por Walter Salles no longa. O desaparecimento de Rubens é, assim, retratado sob a perspectiva dos impactos causados à família, que nunca pôde enterrar e vivenciar o luto pela morte do próprio pai; mas, principalmente, sob a perspectiva de Eunice, que ao mesmo tempo que precisa ser forte para criar seus cinco filhos e protegê-los, luta para saber o paradeiro do seu marido e convive com sua própria dor.
Não seria adequado nessa crítica contar cada passo que Eunice dá e cada impacto que isso tem na sua própria vida e na dos seus filhos. Isso ficará para o público vivenciar e sentir (ou ao menos tentar) a dor inimaginável que essas pessoas viveram por décadas. Um dos momentos mais duros e profundos dessa dor se dá quando uma das filhas de Rubens, Maria Beatriz (Olívia Torres) pergunta a Marcelo (Antonio Saboia), já mais velhos e próximos dos nossos dias, sobre em qual momento da vida ele “enterrou papai”. Ou seja, cada um dos cinco filhos teve que, em algum momento, decidir aceitar a morte do próprio pai. Uma das maiores torturas que alguém pode viver é passar a vida inteira sem saber como mataram alguém que se ama, onde e quando mataram, onde colocaram o corpo e o que aconteceu nos momentos que precederam a morte. Foi justamente isso que a ditadura militar, covardemente, implicou a cinco filhos e a uma esposa.
A atuação de Fernanda Torres merece um comentário a parte. Ela é simplesmente espetacular. Talvez tenha sido seu melhor e maior papel no contexto de uma carreira já primorosa e admirável. Aliás, Eunice Paiva já idosa é interpretada por Fernanda Montenegro, no que pode ser compreendido como uma justa homenagem à memória dessa mulher que tanto sofreu e tanto fez, chamada Eunice Paiva. A atriz brasileira viva mais importante interpretando uma mulher cuja força e coragem foram impressionantes.
Por fim, para aqueles que se perguntam se Ainda estou aqui é tudo isso mesmo “que estão falando por aí”, a resposta é simples e direta: sim; é. Além de ser um futuro clássico do cinema, é um filme necessário, pois ajuda a contar para gerações que desconhecem a história de abuso, violência, arbitrariedade, ilegalidades e crimes que o regime ditatorial vivido pelo Brasil desde o golpe de 1964 impôs para tantas famílias. É preciso reconhecer a história para nunca mais repeti-la, e, para isso, Ainda estou aqui se torna um valioso instrumento. Walter Salles, Fernanda Torres e Selton Mello nos dão um enorme presente e uma grande contribuição para o futuro da nossa democracia ao recordarem o assassinato que o estado brasileiro cometeu contra Rubens Paiva e a tortura que ele impôs a uma mulher e cinco filhos inocentes, que só queriam ter vivido e crescido ao lado do pai. Ainda estou aqui é um filme necessário e obrigatório.