A violência policial é frequentemente objeto de manchetes dos jornais brasileiros. Contudo, não se trata de algo exclusivo da realidade brasileira. Os Estados Unidos, por exemplo, viveram uma onda de protestos contra a violência policial após a morte brutal de George Floyd durante uma abordagem policial, movimento que ficou conhecido como “Black Lives Matter”. Muito embora haja diferenças, tanto no Brasil, quanto nos EUA, o tema da violência policial inevitavelmente traz a questão racial para o centro do debate. De acordo com estudo realizado pelo Ministério Público de Minas Gerais, durante uma abordagem policial, pessoas negras têm quatro vezes mais chances de sofrer violência do que as brancas. Isso representa um enraizamento do racismo no Brasil, refletido estruturalmente em outras esferas da sociedade, muito além da segurança pública. Neste acervo, trabalharemos questões referentes às origens e às causas da violência policial contra a população negra no Brasil, bem como o papel do Estado no combate ao racismo.
Para o presente debate é de fundamental importância o esclarecimento sobre a correlação entre pobreza e violência. Em levantamento realizado no ano de 2018 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 75% da população vivendo na faixa da miséria é preta ou parda, configurando-se uma desproporcionalidade racial significativa, uma vez que essa população representa 55,8% dos brasileiros. Ademais, outro estudo também elaborado pelo IBGE, em 2019, aponta que, além de serem mais pobres, pretos e pardos estão mais propensos a morrer de forma violenta no país. Dessa maneira, podemos inferir que, concomitantemente, a violência está atrelada às disparidades sociais e intimamente amarrada ao fator racial.
Pesquisa efetuada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Públicaindica dados alarmantes no que diz respeito à violência contra pessoas negras no Brasil em 2021. Na última década, aproximadamente 405 mil pessoas negras foram assassinadas, o equivalente à população da capital do Tocantins, Palmas. Além disso, 75,8% das vítimas de homicídio no país em 2021 foram pessoas negras. No que se refere à violência policial direta, os negros representam 78,9% das vítimas de intervenções. Vale frisar ainda que 62,7% dos policiais assassinados são negros.
Há uma relação evidente entre a desigualdade social e a violência policial. Nesse sentido, a busca por diminuir essas desigualdades poderia surtir efeito na própria redução desses níveis de violência contra a população negra. Juntamente a isso, há uma demanda direta sobre a atuação das forças de segurança pública. Em resposta a essa questão, a instalação de câmeras nos uniformes dos policiais foi uma das medidas adotadas por alguns Estados da Federação para proteger os cidadãos e os policiais. Mas, essas medidas seriam apenas pontuais, não sendo capazes de atacar estruturalmente a relação íntima entre desigualdade e violência.
Pesquisadores vinculados a Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ) e a universidades inglesas conduziram um estudo quanto aos desdobramentos da inclusão de câmeras nos uniformes de policiais em Santa Catarina. Os resultados obtidos indicam sobretudo uma mudança comportamental positiva, tanto por parte dos agentes de segurança, quanto da população. Apesar de tal medida demonstrar avanço e ser objeto de análise para a adoção em outros Estados brasileiros, não soluciona por completo o problema do tratamento dos agentes de segurança com a população negra. Em artigo publicado no “El País”, são relatados dois casos de abuso policial envolvendo a morte de dois jovens já rendidos, sendo um deles negro, identificados em virtude das câmeras nos uniformes dos PMs. Perante a isso, as câmeras possuem importância no reconhecimento do ato. Todavia, a violência continua mesmo com o equipamento, sugerindo a necessidade de alterações mais profundas. Em suma, o evento ocorrido sinaliza a exigência de mudanças institucionais na estrutura das corporações policiais, que, se forem feitas, ainda não serão suficientes
A suposta parcialidade na atuação policial, além de reafirmar o racismo estrutural, ainda levanta o questionamento das origens intrínsecas desta conjuntura. Dentre outros fatores, o racismo possui origem, principalmente nos países ocidentais, na dominação imposta pelos colonizadores europeus sobre as populações negras escravizadas e sobre os povos originários. Os desdobramentos dessa dominação durante séculos são incontáveis e baseados fundamentalmente na ausência de direitos dos povos que foram libertados sem qualquer atenção ou proteção posterior de toda sociedade. Dessa forma, a ineficiência por parte do Estado na inclusão racial no mercado de trabalho e a falta de políticas públicas, atreladas à herança discriminatória da escravidão, fomentam a manutenção de um estado social de racismo estrutural.
Por fim, é de suma importância levantar os marcos legais relativos à discriminação racial. A criminalização do racismo foi institucionalizada somente na Constituição Federal de 1988 em seu art. 5° inciso XLII, que prevê que: “a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito de reclusão nos termos da lei”. O tardio estabelecimento do ato racista como crime, cem anos após a abolição da escravidão através da Lei Áurea, dá indícios de que o problema estrutural que impede o pleno desenvolvimento de toda população brasileira ainda permanece pulsando. O abuso de autoridade é, além da potencial injúria racial, outro crime nas abordagens policiais excessivamente agressivas contra pessoas negras. São definidos os crimes de abuso de autoridade, cometidos por agentes públicos, servidores ou não, através da Lei Nº 13.869, de 5 de setembro 2019. O Art. 13 desta Lei dispõe que o abuso de autoridade, no que diz respeito a atuação das forças de segurança pública, é definido por: “Constranger o preso ou o detento, mediante violência, grave ameaça ou redução de sua capacidade de resistência”. A pena para o abuso de autoridade pode variar de um a quatro anos de detenção e multa.
Quando o abuso é cometido pela Polícia Militar, a instituição recebe a denúncia do ato praticado. Este vai para a Corregedoria que deve constatar se houve desvio de conduta. Então, há dois possíveis encaminhamentos: se houve crime militar, quando o policial comete o crime durante a função, é aberto um inquérito para investigar; se o crime for cometido por policiais aposentados ou de folga, trata-se de um crime comum e enviado para a Polícia Civil.
Em caso de crime militar, a Corregedoria, ao final do inquérito, envia a denúncia para o Ministério Público, que analisa os documentos e decide se o envia ao juiz da auditoria militar. Nota-se, portanto, que em caso de crime militar, o policial é julgado na justiça militar. Há especialistas que criticam este tipo de encaminhamento, que supostamente pode proteger policiais que cometem delitos. Paralelamente ao encaminhamento ao Ministério Público, a Corregedoria também abre um processo https://fundacaopodemos.org.br/wp-content/uploads/2023/03/semana-municipal-primeira-infancia-sao-paulo-agosto22.pngistrativo para apurar a conduta do policial. O mesmo ocorre para os casos enviados para a Polícia Civil. Caso o militar seja aposentado ou cometeu o delito em folga, abre-se um Processo Administrativo Disciplinar (PAD) para apurar a conduta dele enquanto militar. Ele pode ser punido com detenção https://fundacaopodemos.org.br/wp-content/uploads/2023/03/semana-municipal-primeira-infancia-sao-paulo-agosto22.pngistrativa ou exclusão do quadro policial, a depender da gravidade do delito.
Casos recentes de crime militar, entretanto, mostram que há diversas problemáticas na justiça militar. Apesar de graves, muitos casos resultam no afastamento do policial da instituição e não há um julgamento de sua conduta. É preciso fortalecer a carreira policial, com melhores salários, melhores condições de trabalho e acompanhamento psicossocial constante, ao mesmo tempo que se fortalece a instituição que os pune. Não podemospensar em uma melhora na conduta da polícia sem antes pensarmos na valorização da carreira.
A violência policial, como tratado neste Acervo Temático, afeta de forma desproporcional as pessoas negras. Essa desproporcionalidade evidencia o racismo estrutural do país. Tendo em vista os aspectos observados, é notório que a violência policial no Brasil possui diversas matrizes vinculadas ao racismo. São necessárias ações diretas e indiretas sobre a atuação das forças de segurança pública. Para combater essa violência medidas pontuais nas carreiras de segurança pública, por exemplo, são fundamentais para melhorar e valorizar a carreira dos policiais, porém, isso não é o suficiente. É necessário um programa de compliance nas polícias, bem como uma reestruturação e revisão de processos, a fim de reduzir os abusos da polícia.
Além disso, é urgente que o Brasil tenha como foco a redução das desigualdades. A existência do racismo estrutural deve ser enfrentada, pois dessa forma compreenderemos a extensão do problema, que vai muito além da repressão.
Negros têm 4 vezes mais chance de sofrer violência policial do que brancos nas abordagens/G1 (20/11/21)
“Quase 7 em cada 10 mortos ou feridos em abordagens realizadas pela polícia entre 2013 e 2018 em Minas Gerais são negros, segundo levantamento da Fundação João Pinheiro e do Ministério Público de Minas Gerais (MPMG).”
IBGE: Dos 13,5 milhões vivendo em extrema pobreza, 75% são pretos ou pardos/Valor (13/11/19)
“De acordo com o levantamento, 75% das pessoas que vivem na miséria eram de cor preta ou parda em 2018, parcela apontada como desproporcional, já que essa população representa 55,8% do total de brasileiros (207,7 milhões).”
Câmeras em uniformes de PMs e viaturas ajudam a diminuir os números da violência, diz estudo/G1 (17/10/21)
“Pesquisadores brasileiros que atuam em universidades inglesas e na PUC do Rio instalaram 73 câmeras em coletes de policiais militares de Santa Catarina, e compararam, durante três meses, a ação deles com a dos policiais que não usavam câmeras. Os resultados animaram a corporação.”
Câmeras mostram Polícia que ainda tem muito a avançar no combate a abusos/El País (06/12/2021)
“O segundo caso aconteceu em 30 de novembro, quando a cena em que um policial militar em serviço algemou um jovem negro à sua moto e o obrigou a correr enquanto dirigia o veículo foi filmada por um transeunte.”
Violência policial no Brasil: uma pessoa negra é morta a cada quatro horas/CNN (22/12/2021)
“Um levantamento feito pela Rede de Observatórios da Segurança (ROS) revelou que a polícia mata uma pessoa negra a cada quatro horas em ao menos 6 estados brasileiros: Bahia, Ceará, Piauí, Pernambuco, Rio de Janeiro e São Paulo. Foram 2.653 mortes com registro racial ocorridas em 2020, das quais 82,7% tiveram como vítima pretos ou pardos.”
Brasil registra 114 mortes de civis para cada uma de policial, diz estudo/O Globo (26/01/2022)
“SÃO PAULO — No Brasil, para cada um policial morto em serviço há 114 civis assassinados, mostra um estudo patrocinado pela Open Society Foundations e divulgado nesta quarta-feira. A proporção é a maior da América Latina e do Caribe e, de acordo com especialistas, reflete um abuso da força policial no país, incentivado nos últimos anos por lideranças políticas como o presidente da República, Jair Bolsonaro (PL).”
Militar da Marinha mata homem negro e diz tê-lo confundido com bandido/Folha (03.02)
“Um militar da Marinha matou a tiros o próprio vizinho e disse tê-lo confundido com um bandido na noite desta quarta-feira (2), em São Gonçalo, região metropolitana do Rio de Janeiro.”
Negros são os mais abordados pela polícia no Rio em qualquer situação, diz pesquisa/Folha (15.02)
“Na rua, na praia, no carro, no transporte público, na moto, no táxi, na festa. Não importa a situação, negros são o grupo mais abordado por policiais na cidade Rio de Janeiro, e também os que mais sofrem abusos ou constrangimentos nessas situações, concluiu uma nova pesquisa.”