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Acervo Temático: Um mundo cada vez mais inseguro e hostil. A crise global dos refugiados       

Acervo Temático: Um mundo cada vez mais inseguro e hostil. A crise global dos refugiados       

De acordo com as Organização das Nações Unidas a cada minuto no mundo pelo menos 20 pessoas são obrigadas a deixar tudo que construíram, sua casa, seus pertences, o lugar que nasceram, os locais onde fizeram amigos e viveram diversas experiências para poder sobreviver; ou melhor, para não serem mortas. Afinal, sobreviver também engloba a ideia de buscar uma vida melhor em algum outro lugar. Contudo, aqui estamos falando de sobreviver no sentido mais estrito possível, aquele que contempla a percepção mínima de manter-se vivo. Nesse sentido, estamos diante da maior crise de refugiados da história desde que o conceito foi modernamente construído e a Organização das Nações Unidas passou a fazer registros acerca dessa temática.

Se pararmos para pensar, nunca a história do homem na Terra foi marcada precisamente por tempos de paz. Sempre em algum lugar do planeta algum conflito esteve em andamento. Desta forma, a própria ideia sobre paz no mundo é uma construção a partir de conceitos que determinam a sua presença ou ausência em alguma localidade do globo. Isso, por si só, já divide a humanidade entre lugares considerados mais importantes e outros menos. Nesse sentido, se definirmos a paz como a ausência de conflito armado declarado entre forças nacionais, muitos lugares do mundo vivem em paz. Todavia, se adotarmos o conceito de paz como a ausência de conflitos não armados dando lugar a uma convivência, ou coexistência harmônica entre as pessoas, talvez não exista nenhum lugar propriamente no mundo onde haja paz. O conflito parece ser inerente ao ser humano, muito embora ele possa ter gradações entre aquele que não é violento e aquele que é.

De qualquer maneira, a paz depende de um referencial, que, no final das contas, sempre estará atrelado à ausência ou à presença da guerra ou, ao menos, do conflito. Desta maneira, é perceptível que entre a dicotomia paz e guerra, a segunda é o termo forte, pois preenche de sentido o primeiro. Aliás, a própria palavra paz deriva etimologicamente do sentido da guerra, uma vez que paz vem do latim pax, pace, do verbo paciscor, cujo particípio é pactus. Ou seja, pactus enseja o pacto celebrado entre os beligerantes para findar a guerra[1].

Além disso, se analisarmos um pouco a mitologia greco-romana, não há uma divindade relevante ou forte voltada para a paz. Temos a sabedoria, o prazer, a beleza e a guerra, mas não propriamente a paz. Da mesma maneira, ao longo da história, seja na filosofia ou nas relações internacionais, muitos celebraram a guerra como uma extensão da política ou simplesmente como algo transformador, regenerativo e evolutivo. Nesse sentido foram Clausewitz, Hegel, Nietzche e outros mais que elogiaram de alguma forma a guerra. Particularmente vale relembrar a célebre frase de Hegel acerca da guerra como algo necessário para revitalizar uma sociedade, assegurando-a de uma estagnação que pudesse prejudicar sua saúde moral. Hegel dizia que a guerra era como o vento que evitaria a podridão da água parada.

Por outro lado, a paz não foi completamente negligenciada em termos filosóficos, muito embora tenha sido de certa maneira encarada como secundária ou mera utopia singela de ingênuos. De qualquer maneira, a mensagem bíblica do novo testamento cristão pautou a paz como um valor. Nesse diapasão vale lembrar as encíclicas do pontificado de João XXIII, já no século XX, que davam à paz não o sentido da ausência da guerra, mas sim como obra da justiça[2].

Antes mesmo do século XX não se pode omitir o quanto o movimento das luzes no século XVIII, durante a Aufklärung, fez com que a razão ditasse um sentido de maior importância para a paz em detrimento do conflito. Isso podemos ilustrar com Kant e seu projeto de paz perpétua ou com o Abade de Saint Pierre.

Contudo, no século XX o advento do mundo nuclear deu ênfase à guerra como preponderante à paz. Afinal, por mais que o mundo tenha assistido a movimentos pacifistas e de não violência concretizarem-se como instrumentos voltados para a redução dos conflitos, a dissuasão armada nos brindou com um mundo cujo flerte constante com a aniquilação é real e imediato. Ou seja, é difícil pensar em tempos de paz quando essa mesma é sustentada por armas nucleares cujo potencial destrutivo impedem que homens cometam o horror final.

Assim, o século XXI, ao invés de trazer um novo quadro no sentido do pacifismo, apenas aprofundou a potencialidade destrutiva e a reafirmação da guerra como o termo forte da dicotomia, principalmente por causa da tecnologia, que permitiu o uso de drones em conflitos e a cyberwar, que praticamente tem levado o conflito para a rotina e para os smartphones das pessoas. Isso tudo sem contar no controle da informação e no uso disseminado de fake news que proporcionam um discurso mais violento em todo mundo.

Diante desse quadro todo, o mundo enfrenta diversos graves conflitos que levam, inclusive, a temores acerca da possibilidade de uma terceira guerra mundial. O grave conflito na Europa envolvendo a Rússia e a Ucrânia, que impacta nas relações globais, principalmente por conta das tensões que proporciona aos EUA, à União Europeia e à China, é um dos que tem mais preocupado o mundo na atualidade. Entretanto, somado a ele, o mundo assiste ao morticínio em Gaza e aos horrores no Sudão, Iêmen, sem contar as tensões no Mar do Sul da China, no Sudeste Asiático e na península coreana. Além desses, impossível ignorar a violência em números avassaladores e crescentes que povoa a América do Sul. A crise na Venezuela e o problema do crime organizado são duas grandes preocupações.

O mundo, como podemos ver, não está, de maneira alguma, em tempos de paz. Talvez a experiência das duas grandes guerras mundiais tenha dado a muitos a falsa ideia de que se não houver um conflito de proporções colossais, o mundo estará em paz. A prova disso está justamente no recorde sombrio que atingimos com a cifra de 120 milhões de pessoas no mundo forçadas a fugir da guerra, da violência e da perseguição. De acordo com o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), esse número representa um aumento de 8% em relação a 2023. Assim, como já mencionamos anteriormente, atingimos a triste marca de a cada minuto pelo menos 20 pessoas sentirem-se obrigadas a fugir de suas casas.

De acordo com o ACNUR, o número de refugiados sob custódia da ONU cresceu consideravelmente entre 2021 e 2023. Desde 2013 as taxas são crescentes, mas houve um aumento muito maior no intervalo dos anos mais recentes. Em 2013 o ACNUR registrou 11,7 milhões de refugiados sob sua custódia, em 2023 o número foi de 31,64 milhões.

Em relação a deslocados internos, seguiu-se uma lógica parecida. Isto é, um aumento gradual ano após ano, com um aumento mais vertiginoso nos últimos três anos. Em 2013 o número de deslocados internos era de 23,93 milhões de pessoas, em 2023 o número foi de 63,25 milhões. Dentre os solicitantes do status de refugiado, o ACNUR registrava em 2013, 1,16 milhões de pessoas nessa condição. Em 2023 o número foi de 6,86 milhões.

Um número particularmente preocupante é o de refugiados palestinos sob custódia da UNRWA (Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina no Próximo Oriente). No ano de 2013 o registro que se tinha era de 5,03 milhões de palestinos sob a proteção da ONU, em 2023 o número aumentou, mas não seguiu a tendência maior dos demais já citados, o que pode ser explicado pelo aumento do número de mortes na região. Em 2023 o número registrado foi de 6 milhões de refugiados palestinos.

Além desses dados extremamente graves, o ACNUR aponta que a Síria continua sendo a região do planeta que mais provoca o deslocamento de pessoas no mundo. Ou seja, desde que a guerra civil começou, são mais de 13 milhões de pessoas deslocadas à força dentro e para fora do país. Além da Síria, numa região esquecida dos holofotes e principalmente da imprensa ocidental, o Sudão é outro local de grande produção de refugiados. Mais de 10 milhões de pessoas fugiram de suas casas até o final de 2023 em razão da guerra civil que assola o país.

Outro local que se tornou grande fonte na produção de refugiados no mundo foi o Afeganistão. Desde que o Talibã retomou o poder em 2021, mais de 6,4 milhões de pessoas deixaram o país em busca de sobrevivência.

Muito embora a África e a Ásia sejam grandes focos de deslocamento, a América do Sul tornou-se um lamentável irradiador de pessoas desesperadas em fugir por conta, principalmente, da crise na Venezuela. A ditadura de Nicolás Maduro e o desastre econômico do país já levaram mais de 7 milhões de venezuelanos a deixar o país.

Analisando os fluxos, é interessante observar que, de acordo com o próprio ACNUR[3], a maioria dos refugiados sírios se deslocou da Síria para a Turquia, para a Alemanha e para o Líbano, sendo o primeiro o maior receptor de sírios dentre os três. Já os afegãos fugiram em sua grande maioria para o Irã e, em menores, mas ainda muito consideráveis, proporções para a Alemanha e o para o Paquistão. Os venezuelanos deslocaram-se em massa para a Colômbia, que é, de longe, a maior receptora de refugiados da Venezuela na América do Sul. Além da Colômbia, em menor número, os venezuelanos fugiram para o Peru. Aliás, nesse diapasão, a Colômbia recebeu em torno de 2,2 milhões de venezuelanos, enquanto os EUA e o Brasil receberam em torno de quinhentos mil. O Peru recebeu 1,54 milhões de venezuelanos.

Aliás, o relatório do ACNUR esclareceu que de todos os refugiados no mundo, 19% estão no continente americano. Isto é, em torno de 23 milhões de pessoas ou quase um quinto da totalidade. Diante disso, é muito relevante compreender que a maioria dessas pessoas está na América Latina e não nos EUA, como muitos imaginam. Afinal, além da crise venezuelana existem graves situações que provocam o deslocamento forçado de pessoas em Honduras, Guatemala e El Salvador. Além disso, o México é um dos países que, apesar de a impressão comum ser de que se trata de um país emissor de pessoas para os EUA, mais recebe pedidos de asilo e refúgio de todo o mundo, principalmente por receber as pessoas oriundas desses outros países da América Central. Evidentemente não é só um país de destino, mas também de trânsito para aqueles que buscam chegar, todavia, aos EUA.

A crise haitiana também deve ser lembrada, muito embora ela tenha se dado principalmente após o terrível terremoto de 2010. De qualquer maneira, o país, que luta para se reconstruir, tem números consideráveis de deslocamentos internos e de fluxos para o Chile, Brasil e República Dominicana.

No contexto europeu, a guerra da Ucrânia ainda se estende e provavelmente acrescentará mais números a essa grave crise global. É verdade que em relação a esse complexo e grave conflito os dados ainda são incertos, pois ele se alonga e muitos ainda não conseguiram ou não quiseram deixar o país. De qualquer maneira, a guerra já provocou o deslocamento de mais de 6 milhões de ucranianos, que fugiram principalmente para a Alemanha, para a Rússia e para a Polônia.

Assim, é realmente preocupante o quadro que o mundo apresenta diante do que significa o fenômeno do refúgio. Aliás, os números e os contextos devem ser bem compreendidos, principalmente diante do fato de assistirmos no mundo o crescimento de um discurso vinculado à extrema direita de que os fluxos de pessoas são as causas dos problemas econômicos e principalmente do desemprego. Para tentar desmistificar isso basta perceber que 69% dos refugiados são acolhidos pelo país vizinho daquele do qual se foge. Além disso, os cinco países que mais acolhem refugiados no mundo são o Irã, a Turquia, a Colômbia, a Alemanha e o Paquistão. Ou seja, a maioria das pessoas que se deslocam no mundo não estão caminhando para a União Europeia ou para os EUA.

Por fim, os números impressionam, principalmente se pensarmos que o quadro não é de redução e tampouco de estabilidade. Vale ainda dizer que de acordo com o relatório do ACNUR, 40% dos refugiados em 2023 eram crianças. Dentre este triste número, ainda há um mais triste ainda: 2 milhões de crianças nasceram já refugiadas entre os anos de 2018 e 2023.

Assim, dentre tantas percepções, uma é certa, o mundo não está em paz e tem se tornado cada vez mais um lugar hostil para todos nós. É preciso repensar nossas impressões e compreender o que estamos fazendo agora, para que não transformemos nosso futuro num grande campo de sofrimento. A paz pode um dia, quem sabe, ser uma esperança possível.

 

 

[1]LAFER, Celso. Lasar Segall: Múltiplos Olhares. Imprensa Oficial: São Paulo, p. 51-52.

[2] Idem.

[3] Fonte: Relatório de Tendências Globais 2023, ACNUR. Vale ressaltar que o relatório Inclui refugiados sob custódia do ACNUR, pessoas em situação semelhante ao refúgio e outras em necessidade de proteção internacional.

Observação: Esse conteúdo não representa, necessariamente, a opinião da Fundação Podemos.

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