Após 51 dias em uma situação considerada por muitos como “sem governo”, a França voltará a ter um primeiro-ministro. O anúncio foi feito na quinta-feira 05/09 pelo Presidente da República após inúmeras consultas a partidos políticos, pressões por todos os lados e um impasse político cujo fim ainda não é certo.
Mas como a política francesa chegou a esse ponto? Para entendermos é preciso olhar os fatos em retrospectiva.
Eleições europeias:
Entre os dias 06 e 09 de junho os europeus foram às urnas para eleger seus representantes no Parlamento Europeu. O resultado, como já apresentei em texto anterior (https://fundacaopodemos.org.br/blog/acervo-tematico-um-espectro-ronda-a-europa/) demonstrou um aumento significativo do campo da chamada extrema-direita. No que diz respeito à França o resultado não foi diferente: Um aumento do número de cadeiras do Rassemblement National (RN), da conhecida Marine Le Pen, que conquistou cerca de 32% dos votos, e uma redução do número de cadeiras do agrupamento representado pelo campo político do presidente, o Ensemble, que ficou com cerca de 15%.
Embora essa eleição não tenha o poder de produzir qualquer efeito sobre a composição da Assembleia Nacional Francesa, posto se tratar do Parlamento Europeu, que é supranacional, o seu resultado foi como um tornado que passou pela política francesa. Isso porque poucas horas após o anúncio de seu resultado, em um domingo à noite, o Presidente Emannuel Macron foi aos canais de TV e, ao vivo em rede nacional, anunciou a dissolução da Assembleia Nacional, para a perplexidade de todos.
Dissolução da Assembleia Nacional e convocação de novas eleições:
O sistema político francês que inaugura a V República com o Presidente Charles de Gaulle em 1958, passando por algumas modificações posteriores, culminou em um sistema considerado por especialistas como um Semi-presidencialismo, por combinar elementos do presidencialismo e do parlamentarismo.
Nesse sistema o presidente da República é eleito por voto direto e atua como “chefe de estado”, mas também possui algumas atribuições de que lhe dão poderes que por vezes extrapolam um pouco essa caracterização, como nomear o primeiro-ministro, que será o chefe de governo, de maneira estratégica, a partir de seus próprios cálculos políticos, e também dissolver a Assembleia Nacional. Pois então. O presidente Macron usou e abusou dessas prerrogativas.
O anúncio foi feito por meio de palavras bonitas sobre ouvir a vontade do povo sobre mudança e sobre respeitar a soberania popular. Por trás das bonitas palavras, um cálculo político que ninguém entendeu. O fato é que novas eleições foram convocadas para ocorrem em dois turnos, o primeiro no dia 30 de junho e o segundo no dia 07 de julho.
Eleições para a Assembleia Nacional:
Foram semanas de intensa movimentação política no país, com os partidos se organizando, formando alianças e fazendo campanha. Em uma velocidade impressionante, os partidos da esquerda, apesar de suas divergências, conseguiram se unir em torno de um objetivo comum, que é barrar o crescimento do RN de Le Pen. E assim anunciaram a construção da Nova Frente Popular (NFP).
No entanto, mesmo com a improvável e súbita união das esquerdas, o resultado do primeiro turno confirmou a tendência de sucesso eleitoral do agrupamento em torno do RN, que recebeu cerca de 33% dos votos, contra cerca de 28% do NFP e 21% do agrupamento do presidente.
Tudo parecia apontar para uma vitória acachapante do RN, que já cogitava ter força para exigir do presidente a nomeação de seu líder, Jordan Bardella, como primeiro-ministro. Porém, uma reviravolta impressionante aconteceu na semana seguinte, entre o primeiro e o segundo turnos.
A estratégia foi a seguinte: Em todos os distritos em que um candidato do RN liderasse, seguido pelas candidaturas de centro e de esquerda, o terceiro colocado (fosse da esquerda ou de “centro”) renunciava à sua candidatura, transferindo seus votos para o segundo colocado e impedindo a vitória do então favorito do RN.
Abertas as urnas, a surpresa: O agrupamento de esquerda (NFP) obteve maioria relativa, obtendo 182 assentos na Assembleia, seguido pelo agrupamento do presidente (168) e deixando o RN em terceiro lugar, com 143 assentos.
Já no dia seguinte o então primeiro-ministro, Gabriel Attal, pede demissão do cargo.
Mas quem ganhou as eleições?
Aí é que começam os problemas. A Assembleia Nacional francesa possui 577 cadeiras, de modo que uma maioria exige um mínimo de 289.
O impasse:
Uma pergunta tão simples quanto “quem ganhou a eleição” tem sido o tema dos debates políticos no país desde então. Com maioria de cadeiras em relação aos outros agrupamentos políticos, o NFP reivindica vitória e pressiona Macron para que nomeie um indicado seu como primeiro-ministro e implemente seu programa de governo. O argumento é simples: Esta é a vontade da maioria dos franceses.
Então, no dia 16 de julho o Presidente da República aceita o pedido de demissão de seu primeiro-ministro, que passa a ser formalmente um primeiro-ministro demissionário e passa a operar com poderes mais limitados. Diante da necessidade de tratar do orçamento do país, faz-se urgente que se nomeie então um novo primeiro-ministro.
Após aventar alguns nomes e em meio a disputas internas, o NFP chegou a um nome de consenso: Lucie Castes. Funcionária da alta administração pública, de perfil técnico e mais conciliador do que a ala mais à esquerda do NFP, que é a La France Insoumise (LFI), Castets parecia ser um nome palatável para os outros campos políticos. No entanto, após muita pressão do NFP e após ser recebida por Macron, o nome de Castets foi cortado em nome da “estabilidade institucional”. A alegação do presidente é a de que essa indicação seria barrada pelo RN e por boa parte da centro-direita, que lançariam mão do dispositivo da moção de censura, o que inviabilizaria seu governo.
Diante dessa recusa, Macron passa semanas realizando consultas a líderes partidários de diversos espectros, inclusive do RN, enquanto muitos na imprensa falam de “caos institucional” e exigem a imediata nomeação de um novo primeiro-ministro e a esquerda passa a falar em golpe de Macron contra a democracia e o povo francês e marca manifestações de rua para o dia 07 de setembro.
Na segunda-feira do dia 02 de setembro Macron recebe no Palácio do Eliseu os nomes Bernard Cazeneuve et Xavier Bertrand; o primeiro, um antigo primeiro-ministro pelo Partido Socialista; o segundo, presidente da região Hauts de France, da direita republicana. Na mesma segunda-feira Macron recebe também os ex-presidentes François Hollande e Nicolas Sarkozy, enquanto a imprensa especula sobre outros nomes candidatos ao cargo e o presidente é acusado de inação.
Enfim, no início da tarde de quinta-feira (05/09) o Palácio do Eliseu anuncia a nomeação de Michel Barnier, antigo quadro do Partido Republicano (Les Republicans, LR, que possui apenas 38 assentos na Assembleia), e a transmissão do cargo do jovem Attal para o Barnier ocorre na mesma tarde, cerimônia televisionada na qual ambos discursam sobre tolerância e contra o que chamam de sectarismo.
Estabilidade institucional?
O quadro político na França não parece ter encontrado a calmaria. O país e seus representantes na Assembleia seguem fortemente rachados, com ameaças de moção de censura à esquerda e à direita.
O Presidente Macron claramente atuou de forma estratégica e aparentemente buscando bloquear a formação de um governo de esquerda, embora os dispositivos constitucionais lhe confiram essa prerrogativa de nomear livremente o primeiro-ministro.
Tudo o que não há por hora é consenso. Marine Le Pen afirmou que seguirá atenta à linha política que o novo primeiro-ministro anunciará, a presidente da Assembleia Nacional pediu ao Presidente da República que convoque sessão extraordinária no Legislativo e a esquerda se sente traída por ter ganhado, mas não levado, acusa o presidente de golpe e busca engrossar protestos de rua.
O fato é que Macron parece ter aceitado uma aventura arriscada ao dissolver a Assembleia em nome da “vontade do povo pela mudança”. Depois de meses de incerteza e mais de cinquenta dias sem primeiro-ministro de fato, nomeou alguém que não parece representar mudança alguma. Jogou o país em uma confusão política cujo final não é certo de que tenha chegado.