A data de 11 de julho de 2024 marca o primeiro dia internacional de reflexão sobre o genocídio em Srebrenica (International Day of Reflection and Commemoration of the 1995 Genocide in Srebrenica), uma das páginas mais sombrias dos conflitos que decorreram em razão do desmembramento da antiga Iugoslávia. Entre 11 e 16 de julho de 1995 mais de 8 mil pessoas perderam suas vidas, milhares foram obrigadas a se deslocar e comunidades foram destruídas. Ao todo 8.373 bósnios muçulmanos foram assassinados, homens, adolescentes e idosos. Entre 25 mil e 30 mil mulheres bósnias, incluindo meninas e idosas, foram estupradas.
Como todo genocídio que aconteceu no mundo, o de Srebrenica também foi fincado no racismo, na supremacia de um povo em relação a outro, no ódio, na intolerância, na disseminação de mentiras e na construção de inimigos ilusórios. Ele foi um dos capítulos do delírio de formação da grande sérvia sob o comando de Slobodan Milosevic.
A cidade de Srebrenica fica na região leste da Bósnia-Herzegovina, que um pouco antes dos terríveis acontecimentos, estava sob proteção da Organização das Nações Unidas. Aliás, nesse caso, infelizmente a ONU cometeu uma série de erros e foi incapaz de proteger a população. Os capacetes azuis holandeses, que tinham como missão defender a cidade, outrora declarada zona de segurança, foram incapazes de cumprir com seus objetivos e proteger a população. Nesse sentido, no ano de 1999, um relatório do secretário-geral Kofi Annan reconheceu as falhas da instituição em relação à tragédia.
Tropas sérvias invadiram Srebrenica e forçaram as famílias muçulmanas a deixarem a cidade. Separaram os homens das mulheres, fazendo uma espécie de triagem por gênero. Os homens e meninos foram cruelmente executados e seus corpos jogados em valas comuns.
Srebrenica foi fruto da gestação do ódio e da violência. Não se pode compreender o que lá aconteceu sem a perspectiva histórica do desmembramento da Iugoslávia e das mágoas e rancores passados que envolveram as populações que formavam o país multiétnico, mantido sob a força e a tutela do General Tito. Jacques Sémelin (2009) esclarece que em 1992 a cidade de Srebrenica caiu nas mãos de tropas paramilitares sérvias. Entretanto, elas foram expulsas pelos muçulmanos comandados por um jovem policial chamado Nazer Oric, que organizou uma espécie de milícia denominada “homens de saque”. Esses homens, também conhecidos como torbari, não hesitavam em pilhar e incendiar vilarejos sérvios nas proximidades. Isto é, antes do massacre de Srebrenica, sérvios foram atacados e começaram a nutrir um espírito de revanchismo e raiva contra os bósnios muçulmanos.
No dia do Natal ortodoxo, 7 de janeiro de 1993, o vilarejo de Kravica foi atacado por esses homens de saque. Foi um verdadeiro massacre. Os homens mortos pelos torbari não foram sequer enterrados e acabaram sendo devorados por animais. Além disso, as mulheres de Srebrenica ajudaram o grupo a saquear os víveres preparados pelos sérvios para a festa religiosa.
Desta forma, não é difícil perceber que Srebrenica não foi por acaso escolhida. Além de ser uma região estratégica para a consolidação de uma entidade política monolítica sérvia, havia todo esse histórico de violência e animosidade. Tudo isso poderia ter sido levado em conta pelas forças de paz, uma vez que mesmo como a criação em abril de 1993 da área de segurança pela ONU, o sentimento de revanche continuava a ser cultivado, principalmente por Ratko Mladic, chefe do exército da República Sérvia, que já em 1994 explicitamente demonstrava a sua vontade em eliminar os muçulmanos daquela região da Bósnia com o objetivo de fazê-los pagar por tudo que supostamente fizeram e inclusive por terem colaborado com os turcos durante o domínio do Império Otomano na região. Ou seja, pagar por aquilo que os habitantes de Srebrenica não fizeram, em razão de conflitos históricos que nada tinham que ver com as pessoas, principalmente as crianças e adolescentes que habitavam a cidade de Srebrenica.
De acordo com Jacques Sémelin (2009), quando Mladic se preparou para o ataque, a meta inicial era transformar a cidade num reduto cercado, ou melhor, numa espécie de gigantesco campo de refugiados, obviamente sem acesso a recursos e que com o tempo sofreria com a fome. Todavia, a falta de resistência dos capacetes azuis provavelmente estimulou Mladic a tomar uma decisão mais efetiva e rápida: o extermínio.
Apesar de Mladic responder à Belgrado, não se sabe ao certo até que ponto Milosevic se envolveu na decisão do massacre. Essa é uma questão que ainda resta. Mas, é certo que não fez nada para evitá-lo. Se a decisão foi inteiramente tomada por Mladic ou não, Milosevic foi, ao menos, conivente.
De qualquer maneira, os relatos do que aconteceu em Srebrenica são devastadores. A crueldade e a selvageria das tropas de Ratko Mladic foram dignas de fazer envergonhar qualquer ser humano minimamente ainda com juízo crítico de qualquer lugar do planeta. Homens e adolescentes chegaram a ser enterrados vivos, ainda agonizando. Crianças presenciaram o assassinato dos pais e morreram de fome, sede ou de cólera. Há relatos escatológicos de canibalismo forçado entre parentes e estupros sistemáticos contra as mulheres e meninas muçulmanas, inclusive de idosas.
É verdade que posteriormente foi constituído o Tribunal Penal Internacional para a Ex-Iugoslávia, que definiu que o massacre ocorrido em Srebrenica realmente tratava-se de um crime de genocídio. No ano de 2005, ainda sob o comando de Kofi Annan a ONU apontou que Srebrenica foi um dos piores crimes cometidos na Europa desde a Segunda Guerra Mundial. Aliás, como já ventilado, o secretário-geral deu um passo importante no longo processo de luta, prevenção e repressão contra o crime de genocídio ao reconhecer que a organização tinha cometido uma série de erros de julgamento, que acabaram contribuindo para que as tropas de Mladic cometessem suas atrocidades. Nesse sentido, Kofi Annan publicamente afirmou que o genocídio em Srebrenica seria uma tragédia que assombraria para a sempre a história da ONU.
No ano de 2013, Tomislav Nikolic, então presidente da Sérvia, pediu desculpas oficialmente pelo massacre em Srebrenica, negando, contudo, que ali tenha ocorrido um genocídio. Aliás, nesse sentido ainda há uma resistência na Sérvia em reconhecer o genocídio, o que é de certa forma até esperado, uma vez que todo genocídio tem como elemento a sua posterior negação pelos seus perpetradores, tal como acontece entre turcos em relação ao genocídio na Armênia e entre ainda muitos grupos de extrema-direita, que ousam negar o Holocausto. De qualquer maneira, vale apontar que os sérvios reclamam de nunca serem lembradas as vítimas sérvias anteriores a Srebrenica, que padeceram nas mãos das milícias de Nazir Oric; alegação que é bastante contestável, uma vez que Oric chegou a passar, por exemplo, anos preso em Haia. Além disso, vale aqui a máxima de que um erro não pode jamais justificar um outro.
De qualquer maneira, é de muita importância anotar que entre 2013 e 2014, a Holanda se considerou responsável em seu próprio sistema judicial por não ter impedido mais de 300 mortes como membro das forças da ONU, que operavam naquele momento em Srebrenica. Decisão extremamente relevante no sentido de considerar que a ONU não é uma entidade que paira sob os demais estados do mundo sem que estes tenham qualquer relação com suas decisões e principalmente suas falhas. Além disso, importante também no sentido de que operar via ONU não garante e não deve garantir a ninguém imunidade em relação aos erros que custam principalmente vidas inocentes.
Apesar da negação da Rússia em reconhecer Srebrenica como o palco de um genocídio no Conselho de Segurança da ONU no ano de 2015 e de ainda existirem inúmeras vozes contrárias ao reconhecimento da realidade, o dia 11 de julho de 2024 marca o primeiro dia internacional de reflexão sobre o que ocorreu em Srebrenica (International Day of Reflection and Commemoration of the 1995 Genocide in Srebrenica). Desta maneira, todo dia 11 de julho será um dia de reflexão e respeito à memória daqueles que inocentemente pagaram com suas vidas o preço do ódio, do racismo e da estupidez humana.
Todavia, alguns poderiam dizer, mas por qual motivo sempre se recordar algo tão triste e tão cruel, que só traz más lembranças para todas as pessoas envolvidas e o resto da humanidade? A resposta é simples: nenhum genocídio termina enquanto ele não é reconhecido inteiramente por todos, inclusive aqueles relacionados aos seus perpetradores. Nenhum genocídio termina enquanto todas as vítimas não receberem o devido respeito às suas memórias e o mínimo de dignidade diante da crueldade injustificável que sofreram. Mais de mil pessoas continuam desaparecidas em Srebrenica; ou seja, muitas das pessoas que foram assassinadas nunca tiveram seus corpos encontrados ou reconhecidos e talvez não terão por toda a eternidade. É inestimável a dor de uma família em não poder ter um túmulo a visitar para relembrar seus parentes perdidos ou simplesmente saber o desfecho da história de uma vida. Nesse sentido, o dia internacional de reflexão sobre Srebrenica é de fundamental importância e não pode ser considerado jamais mera efemeridade.
Como vamos evitar futuras tragédias no mundo se nos esquecermos daquelas que já cometemos? Não se trata de um exercício masoquista que a humanidade faça a si mesmo, mas sim de um longo processo educativo e civilizatório. Mais do que isso, um processo de conscientização de que quando o ódio começa a florescer em qualquer lugar da Terra, é necessário agir para estancá-lo. Combater o racismo e a intolerância não é, e jamais será mero exercício de ativismo daqueles considerados os chatos defensores dos direitos humanos, mas sim uma urgência e uma obrigação coletiva para que nunca mais possamos ver cenas como as vistas em Srebrenica e hoje na Palestina. Sem esse processo educativo, argumentos como aqueles que tentam justificar o assassinato de crianças e adolescentes inocentes, os estupros contra mulheres e idosas por crimes cometidos por outras gerações e pessoas específicas tendem a encontrar defensores e se multiplicarem. Sem o exercício do juízo crítico é fácil comprar o que o ódio tem para nos oferecer. Quando um ser humano consegue pensar, ele conseguirá entender que uma criança é sempre inocente e ela jamais, em hipótese alguma, pode ser responsabilizada por quaisquer crimes cometidos nos conflitos de décadas ou de séculos passados. Qual culpa tinha um menino bósnio muçulmano pelo conflito entre turcos e sérvios na época do Império Turco-Otomano? Qual culpa tinha um adolescente bósnio ou uma menina pelos saques realizados no início da década de 1990 contra os sérvios?
Por fim, datas como essa têm a função de aos poucos ensinar a dimensão da monstruosidade que podemos afligir a nós mesmos como humanidade. Em outras palavras, por não conseguirmos até hoje dar os nomes a todos que morreram no Holocausto, porque nunca saberemos o nome, o rosto, a história de todos aqueles que morreram em Auschwitz e nos demais campos de extermínio, é que ele ainda não terminou e jamais terminará. Por não conseguirmos prestar a homenagem digna para todos que despareceram em Ruanda, no Camboja e em Srebrenica, dando a cada um o direito do último descanso, é que esses genocídios ainda não acabaram e precisam ser relembrados. A mesma lógica deve ser aplicada, inclusive, aos povos originários que foram dizimados em todos os lugares do mundo nos processos colonizatórios.
Relembrar Srebrenica é fundamental nos tempos atuais, uma vez que ainda é muito difícil para o ser humano entender que o “nunca mais” é necessário para que possamos ainda continuar habitando com decência o nosso planeta. Aliás, precisamos de uma vez por todas entender que a crueldade final de um genocídio contra inocentes é que ele seja eternamente esquecido.
Referências
SÉMELIN, Jacques. Purificar e Destruir. Usos políticos dos massacres e dos genocídios. Rio de Janeiro: Difel, 2009.