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Acervo Temático: Reflexões sobre a democracia, linguagem e violência

Acervo Temático: Reflexões sobre a democracia, linguagem e violência

A linguagem é característica fundamental da vida do ser humano em sociedade. Sem ela não existe a comunicação. Definir o que é a língua e a linguagem não é tarefa fácil, pois o conceito não navega tão somente nos mares da linguística, tampouco da sociologia. Ao falarmos de linguagem, estaremos nos aventurando em possibilidades que interessam à filosofia, à antropologia, ao direito e, na realidade, a qualquer fenômeno que esteja vinculado ao ser humano. Desta maneira, trata-se de seara extremamente complexa.

Ferdinand de Saussure (1857-1913), um dos principais estudiosos do tema, nos alertou que a língua não se confunde com a linguagem. Para ele, a língua é apenas uma parte da linguagem, que se constrói como um produto social da faculdade da própria linguagem, vinculada a um conjunto de convenções necessárias, adotadas pelo corpo social, que permitem o exercício dessa faculdade individual pelos indivíduos. A linguagem, nesse sentido, como objeto da linguística, é necessariamente vinculada à língua e realizada através dela. De qualquer maneira, é como se, de uma maneira mais simplificada, pudéssemos dizer que a linguagem é um fenômeno muito mais amplo do que a própria língua, mas esta é o principal canal social dela.

A linguagem permite ao ser humano diversas possibilidades na sua trajetória de vida. Permite a ele que nomeie, interprete, transforme e o insira em suas relações tanto com outros seres vivos, como também com os próprios objetos. Deste modo, a linguagem permite ao ser humano a vida em sociedade. Não há sociedade sem linguagem e nem sociedade sem comunicação. Todavia, a língua em si acaba ganhando um espaço que se destaca da experiência social, pois ela se codifica e se corporifica num conjunto de convenções. Saussure explicou que a língua é, portanto, um conjunto de signos, a parte social da linguagem, exterior ao indivíduo e que não pode ser alterada pelo falante. A fala operacionaliza a língua; ela é necessária para que esta possa ser inteligível e produza os seus efeitos. Contudo, se a fala não pode modificar a língua em um sentido estrito, noutro sentido mais amplo é ela quem faz a língua evoluir. A língua é, assim, instrumento e produto da fala, sendo ambas, mesmo assim, duas coisas distintas.

Dentro desse contexto, qual é o espaço para a língua escrita? Essa compõe um código mais estático, também convencional, que não pode ser alterado simplesmente pela fala. Aliás, a própria língua escrita não serve de modelo para a fala, pois esta acontece de maneira precursora, introduzindo novos signos, modificando os já existentes, reinventando e ressignificando outros.

Desta maneira, não existe língua melhor ou pior que a outra, tampouco superior ou inferior. O que existe no mundo são línguas diferentes, inseridas em contextos, que as transformam de acordo com as interações, necessidades e relações do ser falante com o mundo. Nesse sentido, é natural pensar que algumas línguas possuem mais de 40 denominações para tons de branco, pois as pessoas que operacionalizam essas línguas habitam regiões geladas do globo, outras tem mais de 82 denominações para tipos de lagartas, pois seus falantes habitam savanas. Deste modo, não existe qualquer comprovação científica que indique a superioridade de uma língua em relação a outra, o que implica também a ideia de não haver a superioridade entre uma ou outra sociedade.

Esses conceitos são extremamente importantes para entendermos o complexo fenômeno da linguagem e da comunicação. São apenas conceitos iniciais de um longo e profundo fenômeno, que faz parte de nós e das nossas vidas. Todavia, é importante sempre lembrar, tal como fez Paul Ricoeur (1913-2005), que as palavras não dormem tranquilas nos dicionários. Afinal, a língua se transforma no tempo, independentemente da vontade dos homens. Além disso, por meio do discurso, o homem pode direcionar a língua. A história ensina que diversas ditaturas no mundo se preocuparam com a língua e controlaram a linguagem para que ela não tomasse o rumo natural das interações humanas e atendesse, com isso, os interesses dos dirigentes, tiranos ou ditadores.

Victor Klemperer (1881-1960) estudou como o nazismo tomou de assalto a língua alemã para usá-la a seu favor. Em sua obra seminal A linguagem do Terceiro Reich, Klemperer demonstrou como uma língua pode ser manipulada para que impacte na linguagem e se torne uma condutora ideológica, estimulando alguns comportamentos e bloqueando outros. Em célebre passagem de sua obra, Klemperer afirma que a língua conduz o sentimento, dirige a mente de forma mais natural quanto mais inconscientemente a pessoa a ela se entregar. Assim, o que aconteceria se a língua fosse carregada de elementos venenosos, como minúsculas doses de arsênico? As palavras seriam engolidas e aos poucos o veneno e seus efeitos tornar-se-iam notáveis.

Paul Ricoeur, em sua obra Em torno ao político, notou que a língua em si é inocente, o que a torna nociva e violenta é o discurso. Desta forma, é necessário que alguém fale, que alguém se expresse, não necessariamente como um indivíduo qualquer, mas como grupo, como povo, como classe, como qualquer todo segmentado, para que a violência possa se canalizar.

Destarte, as tiranias, as ditaduras e os totalitarismos nunca foram somente puros e simples exercícios da força bruta, crua e praticamente metabólica, mas também a construção de um domínio artificial e proposital do discurso, que além de seduzir, persuadir, bajular, permitia a construção dos inimigos objetivos dos regimes não democráticos. É preciso usar a língua para disseminar o ódio, para apontar os culpados, para indicar quem merece ser contemplado pelos “direitos” que o regime detém e separar daqueles que precisam ser excluídos. Desta forma, Hitler sem Goebbels jamais teria penetrado no coração dos alemães. Goebbels era mais do que o ministro da propaganda, ele era o difusor da violência e da ideologia do totalitarismo nazista. Ele era propriamente a realização final de Hitler na sociedade alemã. Sem ele, muitos alemães não teriam acreditado que eram superiores e que judeus, homossexuais, “degenerados” de todos os tipos deveriam ser extirpados do mundo por constituírem um erro genético da raça humana.

Aliás, advertiu Paul Ricoeur que toda linguagem tem a possibilidade da violência. A linguagem do direito, por exemplo, estrutura a violência com suas regras de conduta e premissas de ação. Quando na construção normativa básica se aguarda determinada conduta do indivíduo, na fórmula lógica se A, então B, senão S, onde A é o fato da vida, B a conduta esperada a partir dele e S a sanção por não se ter conduzido da forma preconizada, o que temos é um controle da violência por meio da linguagem jurídica. De forma semelhante na poesia e na filosofia, quando tanto o poeta, quanto o filósofo são sujeitos que rompem com a tradição ou com o considerado corriqueiro e normal. O filósofo ao pensar e desenvolver sua estrutura de pensamento carrega consigo o gérmen da contraposição, que não deixa de ser uma espécie de subversão violenta. O poeta, ao seu modo, subverte o jogo comum das palavras, inovando e causando sensações. Essa subversão não deixa de ser uma violência. Contudo, o que nos interessa e nos preocupa é o uso político do discurso, a violência na língua tal como Klemperer notou em Goebbels.

Hannah Arendt (1906-1975), em famosa entrevista a Günther Gaus, ao ser questionada sobre o que havia sobrado da Europa do período pré-Hitler afirmou que a única coisa que restou era a língua. Afinal, não era a língua alemã que tinha enlouquecido, mas o que dela e da Europa fizeram. A afirmação de Arendt corroborou o enorme processo de desnazificação que a língua alemã teve que passar no período pós-guerra, a partir do primeiro minuto pós-Hitler. O nazismo havia penetrado nos dicionários alemães de uma maneira tão calculada e efetiva, que muitas palavras se tornaram cativas do Reich.

A língua alemã foi propositalmente empobrecida pelos nazistas, para que o discurso fosse simples, sem maiores espaços críticos. Praticamente não havia diferença entre o registro formal da língua e a que era falada. Além disso, ela era falada em tom de declamação, para que fosse facilmente memorizada. A letra S, por exemplo, de acordo com Klemperer, foi escolhida como um símbolo marcante, poderoso, para emanar horror, medo e reverência ao mesmo tempo. A sigla SS designava a Schutztafel, a polícia secreta assassina do Reich.

Goebbels se tornou a palavra final sobre o que deveria ser a língua alemã. Seus textos eram transmitidos nas rádios e era ele quem definia qual linguagem era permitida. Sua fala aos berros, em tom enérgico e agressivo, era o molde a se repetir por toda a sociedade. Ao vociferar, ninguém prestava atenção no conteúdo do que estava sendo realmente dito, mas somente nos trejeitos, na forma com que a língua era utilizada para fins criminosos. A língua alemã foi, na verdade, um dos instrumentos poderosos da violência nazista.

Nesse sentido, quando pensamos na democracia, é preciso também se atentar para a linguagem democrática. Mas, o que seria isso? A linguagem democrática poderia ser definida como a linguagem que permite, além do juízo crítico sobre as diferenças que envolvem toda a sociedade e seus conflitos, incorporando toda a complexidade da pluralidade humana, presente em qualquer agrupamento humano, a moderação e a não agressividade quando as ideias são contrapostas. Ou seja, a linguagem democrática não pode ser violenta.

A linguagem democrática não é aquela que impede o conflito. Muito pelo contrário, é aquela que o admite, que o aceita como processo dialético da interação e que dela se utiliza como solucionador. A linguagem democrática é aquela que estabiliza a sociedade e não necessita da violência, tampouco é instrumentalizada por ela.

Ao assistirmos os recentes debates para as futuras eleições municipais no Brasil devemos acender um alerta. A comunicação e a linguagem utilizada nas redes sociais têm preferido a violência como disseminador de perfis e candidatos. Ou seja, os discursos agressivos e a violência têm sido utilizados como ferramentas para ampliar a divulgação de alguns candidatos, distrair as pessoas dos temas que realmente importam, assim como também para angariar votos. Não se trata de uma crítica à qualidade dos candidatos, mas sim à instrumentalização que tem sido feita da linguagem de maneira proposital e consciente. O discurso de ódio e a agressividade, permeada por ataques ad hominem têm sido a espécie de modus operandi de diversos candidatos para alavancar seus posicionamentos nas pesquisas de intenção de voto. Vociferam, agridem verbalmente e falam sem parar.

Quando esse tipo de instrumentalização da linguagem começa a ser uma opção viável e desejada para diversos candidatos espalhados pelos inúmeros pleitos municipais do Brasil, o alerta deve ser compreendido como imediato. A possibilidade de vitória ou resultado satisfatório desses candidatos significa a glorificação de uma instrumentalização nociva da linguagem, a ser copiada no futuro, que causa gradual, mas profunda, erosão no nosso ambiente democrático. Aos poucos a linguagem vai sendo, seja nas redes sociais ou nos rádios, tal como no passado, contaminada por minúsculas doses de arsênico, até que toda ela esteja comprometida e envenenada. Isso não é, em hipótese alguma, saudável para nossa democracia. É preciso rejeitar esses candidatos, que usam da linguagem um instrumento de explícita e feroz violência. Estejamos atentos.

 

Observação: Esse conteúdo não representa, necessariamente, a opinião da Fundação Podemos.

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