Pensar o que significa ser tolerante é uma das tarefas mais inquietantes dos nossos dias. Em tempos de extremismos, polarizações e fanatismos, qual o lugar da tolerância no mundo e na democracia? O que ela realmente implica e por qual motivo ela pode vir a ser fundamental para a própria continuidade do ambiente democrático?
Em um diálogo com Norberto Bobbio, que abordou o tema em seu artigo de 1992, intitulado As razões da tolerância, podemos pensar a tolerância a partir do prisma da coexistência de crenças diversas, tanto no sentido religioso, como político. Nesse sentido, a ideia de tolerância envolve um conjunto de ideias sobre o mundo, a sociedade em si, as pessoas, seus relacionamentos e o transcendental. Ou seja, envolve também o ideário sobre a finitude e o sentido da própria vida.
Já sob uma outra perspectiva, podemos pensar a tolerância a partir da convivência com as minorias étnicas, linguísticas, por conta de orientação sexual, dentre outras características que não envolvem em si um conjunto de ideias ou um sistema de crenças, mas o que as pessoas numa concepção concreta na vida se consideram ou são consideradas, como externalização de suas imagens e personalidades.
Na primeira perspectiva, a tolerância envolve invariavelmente a ideia de verdade, pois, normalmente, todo sistema de crenças toma para si o predicado de ser verdadeiro, correto e, portanto, dispensa qualquer outra explicação fora dele. A segunda perspectiva envolve questões físicas, sociais, que derivam de preconceitos e discriminações. Deste modo, de uma maneira simplificada, a primeira vertente da tolerância envolveria uma formulação fundamentada na contraposição “da minha verdade em relação a sua”. Já a segunda vertente envolveria preconceitos e discriminações irracionais, derivados de fatores emotivos de avaliação, historicamente construídos; ou melhor, “o que eu vejo de diferente em você”.
É fato que na literatura política a discussão sobre a tolerância nasceu praticamente dos confrontos religiosos, das tensões entre as confissões principalmente dentro da cristandade europeia. As guerras religiosas que moldaram a modernidade foram decisivas para a controvérsia acerca do papel da tolerância como uma saída para a convivência não violenta. Nesse sentido, a pergunta central que pautou toda essa discussão foi justamente a sobre como duas verdades opostas poderiam ser teoricamente e praticamente compatíveis. Ou seja, como evitar o choque, o conflito e daí a imposição, na maioria das vezes violenta, de uma verdade sobre a outra.
Na perspectiva sobre o tolerante, o envolvimento da concepção de verdade pode levar ao entendimento de que ele não passa de um indiferente, permissivo ou mesmo um cético. Afinal, o tolerante sabe qual é a verdade que deve ser observada, mas tolera aquele que não a professa por uma questão de mero ceticismo, sabendo que, mais cedo ou mais tarde, aquele que ignora a verdade irá conhecê-la. Nesse diapasão, é possível também se adjetivar o tolerante como um calculista, pragmático ou utilitarista. Ou seja, para o tolerante, tolerar nada mais é do que um cálculo temporal, no sentido de que o mais fraco sucumbirá ao mais forte e que numa relação entre iguais, haverá um equilíbrio de composições sobre a verdade, que acabarão por se anular num jogo de forças onde o resultado terá que ser a coexistência.
Tomando uma outra perspectiva, o tolerante poderia ser considerado aquele que aposta no uso da razão e da persuasão para que a verdade chegue para aqueles que não a conhecem ou a refutam. Neste sentido, a tolerância é exercida como método persuasivo e não propriamente algo que envolva a aceitação do outro. Aliás, nessa perspectiva há uma crença sobre o fato de que a verdade é algo irresistível e, portanto, será, de qualquer maneira, em algum momento alcançada.
Por outro lado, a tolerância pode ser compreendida como respeito aos outros em um sentido kantiano. Isto é, há um valor moral ético que compreende o mandamento de que devo respeitar aqueles que não concordam comigo pelo simples motivo de que desejo ser respeitado também. Nesse caso, a tolerância tem um valor moral evidente, mas que não deixa de estar vinculado com o sistema de crenças pessoal de cada um. O que difere teoricamente das demais é que não há um cálculo com um objetivo de se convencer ou se atribuir a verdade a outrem, mas sim uma situação de coexistência estável por conta de um equilíbrio de respeito mútuo, oriundo de um mandamento precedente.
Em um outro sentido, a tolerância pode ser tomada como o instrumento para o exercício da dialética da verdade. Admite-se aqui que na sociedade há diversas possibilidades de verdade, pois ela não é única e nem pode ser. A verdade é, portanto, algo que decorre também de interpretações e percepções subjetivas, que variam em contextos históricos. Além disso, o ser humano não é capaz de ser um conhecedor total da verdade sobre si e de todas as coisas. Deste modo, a verdade é continuamente produzida como uma síntese das comparações que surgem entre as verdades presentes no seio de uma sociedade. Destarte, sem a tolerância, a síntese não seria possível. É preciso que verdades contrapostas se choquem para que nasça uma verdade-síntese delas, passando a ter mais aceitação e legitimidade do que as anteriores que a resultaram.
Além desses sentidos, é preciso lembrar do sentido negativo da tolerância. Isto é, da intolerância. Essa nem sempre é encarada como algo ruim ou não desejado, pois pode significar um limite estabelecido, sem o qual a sobrevivência de uma sociedade passa a estar em risco. Por exemplo, quando usamos fórmulas como “é intolerável que se admita a violência doméstica contra a mulher por se conceber que no casamento ela deve obedecer ao seu marido”, estamos criando uma situação limite da qual não se pode ultrapassar, pois se isso for feito, o risco é de que a sociedade possa ruir. A permissividade total, desta forma, não pode ser associada como algo atrelado ao exercício da tolerância. A tolerância no sentido positivo precisa também do seu sentido negativo como contingente. Trata-se, portanto, da intolerância em um sentido positivo.
É evidente que todas essas definições teóricas possuem seus problemas e foram formuladas ao longo da história principalmente em razão dos conflitos em relação à religião. Todavia, num mundo tão complexo como o atual, que vive a dinâmica das interações por meio das redes sociais e cuja comunicação foi totalmente transformada pela internet, compreender a tolerância e o que ela significa se torna mais desafiador ainda.
O crescente extremismo experimentado e impulsionado nas redes sociais tem fomentado a intolerância em seu sentido negativo. Discursos de ódio se propagam nas redes numa velocidade muito maior do que assuntos corriqueiros e comuns do dia a dia. Além disso, a própria ideia de verdade sofre um abalo profundo com o advento das fake news, que apesar de não serem novidade no mundo, nunca tinham sido instrumentalizadas com tamanho poder de divulgação, dispersão e consumo. Como pensar a tolerância num cenário desse?
De qualquer maneira, o ponto fundamental é que a concepção teórica da tolerância saiu do campo da compaixão religiosa para compor o ideário do estado liberal na defesa das liberdades, principalmente da liberdade de religião, dando nascimento ao estado democrático de direito. Ou seja, a tolerância é um dos pilares da democracia, porque se esta é conflitiva, mas não deve ser violenta, exige, para tanto, o exercício da tolerância.
Levando Bobbio ao encontro de Senghaas, a tolerância ganha um novo sentido. Na proposta dessa reflexão, a tolerância não estaria vinculada nem à concepção de verdade, tampouco a um valor moral; mas sim na ideia de gestão dos afetos dentro de uma sociedade. Ou seja, muito mais ligada ao controle das emoções do que efetivamente em saber quem detém a verdade sobre algo. Nesse sentido, o conceito abstrato de verdade, que já não pode mais se resumir aos valores da religião como outrora, dá lugar à complexidade da pluralidade humana. Assim, em uma sociedade democrática, inúmeros conflitos surgirão e serão perfeitamente naturais, pois a pluralidade das situações humanas e toda a sua complexidade levarão a isso. Dentro disso, importa que esses conflitos sejam estabilizados por métodos institucionais, que garantam um ambiente de tolerância, que não leve à violência.
A tolerância nesse sentido seria o controle das reações, dos ímpetos, que seriam inibidores da violência. Ou seja, não é concordância, tampouco persuasão; não é por um imperativo moral, tampouco uma cláusula de boa convivência, mas sim um conceito limite de impedimento da reação violenta. Desta forma, o conceito de tolerância permite a não aceitação do outro em termos de foro íntimo, convicção interna, mas obriga a coexistência e exige a integridade física. Contudo, a integridade física não é suficiente, pois a violência também pode ser de caráter psíquico. Desta maneira, denominadores comuns devem ser estabelecidos na sociedade como parâmetros para que a intolerância não seja exercida por meio da violência psíquica. Por exemplo, tipificar como crime o racismo e a homofobia para além das vias de fato.
Assim, a tolerância tem um papel fundamental na sustentação do estado democrático de direito, pois ela se relaciona à solução de conflitos, que nascem e são fomentados pelo próprio ambiente democrático, favorecendo o desenvolvimento da complexidade e da pluralidade humana. Em um regime ditatorial, a tolerância é inútil e desnecessária, pois só existe uma verdade a ser professada: a do tirano, a do partido único ou a da classe dirigente. Portanto, tolerância e conflito são necessários no processo dialético que se refere ao exercício da pluralidade humana e aos choques que ela produz.
É evidente que a concepção de tolerância nesse sentido pode ser considerada reducionista. Afinal, se a tolerância é o controle dos afetos e ímpetos, exclui-se dela a concepção de verdade, mas não a descarta. A concepção sobre a verdade se torna algo secundário à tolerância e não a ela atrelado. A verdade pode ser contraposta ou questionada, mas isso é um exercício posterior ao choque, que, por conta da tolerância, não produziu violência. Deste modo, a proposição sugere muito mais um entrelaçamento da tolerância ao conceito de violência do que à concepção de verdade ou moral.
Por fim, em tempos de intolerância nas redes sociais, o que temos é violência, principalmente no sentido de uma comunicação violenta, que causa contínua erosão à higidez das democracias. Pensar na tolerância como controle dos ímpetos é muito mais cabível e efetivo contemporaneamente do que discutir a verdade ou como nela chegar num mundo que fala em pós verdade e se torna cada vez mais fragmentado, tribalizado, agressivo e intolerante.