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Acervo Temático: Reflexões sobre a democracia e a não-violência

Acervo Temático: Reflexões sobre a democracia e a não-violência

A violência é um tema caro para a democracia, pois nela há o pressuposto de que seu exercício será controlado e somente necessário quando os limites legais forem ultrapassados ou simplesmente a própria democracia estiver em risco. De qualquer maneira, a violência é tema importante para qualquer tipo de regime, seja num sentido negativo, seja num positivo.

Se pararmos para pensar, definir violência é algo aparentemente fácil, que logo ultrapassa o abstrato e dá lugar a exemplos práticos. Não é por outro motivo que a violência é, portanto, instrumental. Quando tentamos imaginar a violência, pensamos em bombas, tiros, socos, confrontos bélicos do passado e do presente. Ela é praticamente metabólica. É o ser humano utilizando sua própria força física ou expandindo-a por meio de instrumentos para se impor em relação a outro ou a um grupo.

Contudo, se pararmos mais uma vez para pensar e tentarmos definir a não-violência, o que conseguiríamos? À primeira vista a mais fácil definição seria aquela que se aproxima da ideia de abstenção. A não-violência seria, então, simplesmente não ser violento. Ou seja, mais um conceito, assim como a paz em relação à guerra, que derivaria do termo forte do binômio; no caso a “violência”. Deste modo, seria o não responder, não agredir, não maltratar, não violar, não machucar, não matar. Mas, há também outra possibilidade, mais subjetiva, que é aquela que relaciona a não-violência a uma espécie de covardia ou passividade.

Todavia, a ideia de não-violência não deve se contrapor à ideia de violência como simplesmente a negação de uma ação. Muito pelo contrário, se a violência é uma ação, a não-violência também é. As ideias que devem ser contrapostas de maneira a constituir uma antítese para entendermos melhor do que estamos diante quando falamos de não-violência são morte/destruição e vida/construção. Ou seja, enquanto a violência sempre está ligada à concepção de destruição e potencial morte, pois ela, mesmo quando exercida no campo da hipótese, carrega sempre consigo o alerta de que a resistência a ela levará aquele que resiste à própria morte, a não-violência está ligada à ideia de vida, existência, muito além do que mera resistência.

Nesse sentido, a violência é, em um sentido amplo, voltada para a morte. Obviamente isso não quer dizer que todo ato violento leva à morte de alguém, mas ele, em última instância, para subjugar aquele que contraria o comando do violento, ou sua imposição, em tese tem como último recurso a violação e destruição final daquele que se opôs. A violência carrega consigo o gérmen do medo e a ausência de autoridade reconhecida, que dele precisa para poder se impor. Aquele que sofre o ato violento, obedece porque tem medo de ser destruído e não porque respeita aquele do qual o ato é oriundo. A autoridade autêntica, nesse sentido, prescindiria da violência, pois dela não necessitaria.

A não-violência, por sua vez, não é uma resistência passiva, tampouco uma covardia. Ela é uma ação. Ou seja, a não-violência não é uma abstenção em relação a ser violento ou não. Não se trata de um conceito negativo, mas sim positivo no sentido de que ela exige uma ação e um objetivo que a paute. Mahatma Gandhi conceituou a não-violência como uma filosofia da existência. Aliás, Gandhi não tinha apreço pela expressão “resistência passiva”. Para ele, ela não é apenas um meio de ação mais moral do que a violência, mas mais eficaz.

Desta forma, se a violência se finca na morte e na destruição, a não-violência finca-se na vida e na ação construtiva. Se pegarmos os casos mais emblemáticos da história recente da humanidade onde a não-violência foi utilizada poderemos perceber que ela envolve muito mais uma ação coletiva, que objetiva respeito do que qualquer sentido que a defina como a abstenção puramente de reagir à ação violenta.

Na década de 1950, Rosa Parks (1913-2005) se recusou a obedecer às leis racistas que obrigavam negros a não compartilhar espaços com os brancos. Ela estava simplesmente cansada de tudo aquilo. Estava cansada de caminhar, cansada de trabalhar exaustivamente, tão cansada, que simplesmente se recusou a levantar do banco de um ônibus reservado para brancos, onde nenhum branco havia sentado. Ou seja, por não ser um lugar reservado aos negros, a lei do Alabama determinava que ela deveria ficar em pé, no fundo do ônibus, ao invés de sentar-se no lugar vazio destinado aos brancos. Seu ato gerou o que depois, comandado por líderes como Martin Luther King, ficou conhecido como o movimento pelos direitos civis nos EUA. O ponto principal aqui é que Rosa Parks não queria destruir os brancos ou tampouco se recusar a viver com eles. Ela apenas queria ser respeitada. Claramente seu ato de não-violência pôde ser teoricamente equiparado a um ato de resistência, mas, o que foi gerado a partir dele foi muito além do que uma mera resistência. A sua ação gerou um conjunto maior de ações no movimento pelos direitos civis. Dela constituiu-se uma ação coletiva não-violenta, que queria, nada mais, nada menos do que respeito no país em que viviam.

Os meios, pelos quais as ações de não-violência se davam, envolviam passeatas, agrupamentos, discursos e convocação à consciência. É evidente que alguns grupos naquele período optaram pela violência. Mas, não há dúvida hoje de que o que realmente foi transformador foi o movimento de não-violência. Rosa Parks queria ser respeitada e recusou-se a ser vítima da violência, que por gerações os brancos norte-americanos impunham aos negros norte-americanos. Mas, em nenhum momento ela queria não conviver com os brancos ou matá-los.

Gandhi e o movimento de independência da Índia foi outro grande movimento de não-violência. A grande Marcha do Sal foi a ação coletiva que fez com que o processo de independência tomasse forma e se tornasse inevitável. Gandhi não queria matar os ingleses e tampouco varrê-los do mapa. O que ele queria é que a Índia fosse respeitada no seu direito de libertar-se do opressor que a ocupava. Gandhi utilizou a fala e a greve de fome como instrumentos para chegar ao objetivo de libertar a Índia.

Outro exemplo de ação coletiva não-violenta foi a greve dos operários navais de Gdansk, na Polônia da década de 1980. Por meio dela, os trabalhadores conseguiram chamar a atenção do mundo todo e tumultuar o ambiente político do país que vivia sob a influência dura do regime soviético. Nesse cenário destacou-se Lech Walesa e o Solidariedade foi fundado.

As Mães da Praça de Maio na Argentina também constituem um exemplo de não-violência. Durante a ditadura de Jorge Videla na Argentina, inúmeros jovens desapareceram e seus corpos nunca foram encontrados. As mães, desesperadas, decidiram questionar o que o regime militar havia feito com seus filhos. Resolveram perguntar insistentemente nas repartições públicas, todos os dias, sem descanso. Ao notarem que a burocracia nada faria, foram associando-se, uma a uma, em sua dor pela ausência dos filhos e construindo uma rede de mulheres que exijam a verdade e o paradeiro dos filhos. Elas poderiam ser presas ou simplesmente caladas, mas a ação não-violenta delas não permitiu que isso fosse justificado ou legitimado pelo governo ditatorial. Deste modo, com coragem e se expondo, elas conseguiram chamar a atenção do país inteiro e de diversos outros países.

Em todos esses exemplos de não-violência a centralidade das ações estiveram no anseio por respeito. Respeito em compartilhar dos mesmos direitos que qualquer cidadão, respeito em poder autodeterminar-se como povo e nação, respeito em ter os direitos como trabalhador contemplados, respeito em ter o direito de saber o que foi feito com o próprio filho, dar-lhe uma despedida digna e ter o luto.

Em todas essas ações por respeito, o instrumento primordial utilizado foi a fala. A linguagem da não-violência recusa o papel de vítima e não quer destruir aquele contra quem se contrapõe. O respeito, por meio da linguagem da não-violência, permite a construção de uma sociedade em que as contraposições de ideias passam a ter a possibilidade de coexistir, assim como também as diferenças culturais e individuais.

É preciso advertir, no entanto, que a linguagem da não-violência não pretende excluir a violência da realidade da convivência humana. A violência sempre estará presente, ou porque a assumimos como uma característica de nossa natureza, ou porque simplesmente não conseguimos ainda superá-la como algo que se destaca de nós. De qualquer maneira, a violência também pode ser útil em situações extremas, quando a resistência física é fundamental para que se possa existir. O que se coloca em pauta é o fato de que, existindo ou não, sendo útil ou não, a violência é incapaz de construir algo. Ela pode fazer com que alguém resista, mas dificilmente será por ela que a convivência entre quem a impôs contra quem dela resistiu será construída.

Nesse sentido, seria possível uma ação não-violenta na esfera de um regime assassino como o de Hitler? A resposta é afirmativa. Todavia, diante da brutalidade e da totalidade de domínio do terror, apenas as ações de solidariedade e ajuda surtiriam efeito. Elas também podem ser consideradas como não-violência. O que não seria possível seria o martírio em vão, a não-violência diretamente contraposta ao regime totalitário.

Além disso tudo, é preciso apontar que se a não-violência tem como instrumento a fala, a arte e a imprensa podem ser vetores fundamentais da ação não violenta. Por meio da arte é possível dar uma resposta à violência, por meio da imprensa a ação expande-se, torna-se notável e ganha novos adeptos.

Desta maneira, a linguagem da não-violência, por ter a centralidade na ação que objetiva o respeito, é salutar para a construção, manutenção e aperfeiçoamento do ambiente democrático. Diferentemente da violência, que é destrutiva, a não-violência permite que os choques numa sociedade plural e diversa sejam solucionados sem que ninguém seja subjugado ou sinta-se minimizado. Ela possibilita o respeito.

Em qualquer sociedade cada ser humano luta por reconhecimento, respeito e consideração. Se a violência é destrutiva, ela não pode ser benéfica para a democracia. Ou seja, ela é na verdade a destruição da própria democracia. Uma sociedade que se desintegra na violência não tem como ser democrática. Nesse sentido, a não-violência, além de ser muito mais eficaz, pois é construtiva, permite que o ambiente democrático se desenvolva.

Talvez, hoje, o nosso grande desafio em termos democráticos seja lidar com a ação violenta e buscar a cultura de não-violência nas diversas esferas que permeiam a vida contemporânea. Como construir um ambiente de não-violência nas redes sociais? Como falar de não-violência num ambiente controlado por empresas privadas, que visam o lucro e que, acima de tudo, estão muito mais preocupadas com a divulgação da mensagem, não importando o seu conteúdo em si? Se a palavra é o instrumento da não-violência e a ação dela se utiliza para se constituir, como pensá-la na dinâmica das redes sociais, do Instagram, Tik Tok e demais, que favorecem discursos contrários ao respeito mútuo? Se o século XX nos trouxe inúmeros exemplos de exercício da não-violência em contextos de descolonização, luta por direitos civis, luta por democracia, o que nos espera na linguagem virtual que lucra com o discurso de ódio, com fake news e com toda a agressividade que pauta a interação nas redes? Como pensaremos a não-violência em um mundo de linguagem virtual e violenta? O futuro da democracia conta com essa reflexão e impõe esse desafio.

 

 

Observação: Esse conteúdo não representa, necessariamente, a opinião da Fundação Podemos.

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