No dia 10 de dezembro de 1948, diante dos escombros deixados pela Segunda Guerra Mundial e dos horrores dos totalitarismos, foi adotada e proclamada pela Assembleia Geral da ONU, por meio da Resolução 217-A (III), a Declaração Universal dos Direitos Humanos. As atrocidades cometidas pelo nazifascismo e as milhões de vidas perdidas num espaço tão curto de tempo por conta dos conflitos que colocaram a Europa e o mundo em guerra fizeram com que a humanidade começasse a perceber o ponto a que tinha chegado. Isto é, o quanto estava próxima de uma aniquilação. Essa foi a razão e as circunstâncias nas quais a Declaração foi gestada. Não foi mera retórica e tampouco uma espécie de discurso poético utópico para o mundo, guiado por qualquer espectro classificável pela ciência política como de esquerda, centro ou de direita, mas sim por um sentido de urgência e medo.
Auschwitz, a metonímia dos campos de extermínio nazistas, assustadoramente hoje negado por alguns e até esquecido por outros, tornou-se sinônimo de morte e crueldade. As duas bombas atômicas jogadas desnecessariamente em Hiroshima e Nagasaki provocaram um extermínio instantâneo de milhares numa das páginas mais horrendas da história. Vale dizer que os Estados Unidos nunca foram punidos pelo que fizeram. O presidente que ordenou o lançamento das duas bombas, Harry Truman, poucas vezes é lembrado como o homem que decidiu em última instância algo que simplesmente pulverizou crianças, mulheres e homens inocentes, que nada tinham que ver com aquela guerra.
Assim, a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 não nasceu em razão de uma iluminação filosófica ou em um momento de união da humanidade. Ela, contrariando muitos entendimentos equivocados que vemos hoje, foi o início de um projeto para tentarmos evitar a nossa destruição e impedir a nossa violência de provocar mais catástrofes. Foi, portanto, um primeiro olhar para os direitos humanos de maneira universal, enfatizando a passagem do dever dos súditos para com qualquer estado para os direitos do cidadão pela mera condição de sermos humanos. Daí em seu princípio dispor que todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos, dotados de razão e consciência, devendo agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade.
Nesse sentido, quando falamos de direitos humanos, estamos nos referindo a direitos próprios da condição de ser humano; isto é, de todos os seres humanos, enquanto seres humanos, diferentemente dos demais direitos, que só existem e são reconhecidos em função de particularidades individuais.
Desta maneira, a Declaração, que não é tratado, convenção ou pacto, mas sim uma exposição daquilo que deve existir por condição e não por constituição de alguém ou dado por alguém, surgiu com aspirações de universalidade naquilo que nos faz dignos e nos permite viver a salvo do temor e da necessidade. Aliás, a universalidade da Declaração pode desde já ser afirmada pela sua longevidade e pela força de caráter obrigatório, por configurar costume internacional entre os estados. Vale lembrar que quando proclamada, dos membros existentes nos primórdios da ONU não houve nenhum voto contrário. Foram 48 votos a favor, nenhum contra e oito abstenções, especificamente por parte da Árabia Saudita, Bielorrúsia, Checoslováquia, Polônia, Ucrânia, União Sul Africana, União Soviética e Iugoslávia; evidentemente demonstrando uma certa desconfiança do bloco comunista em relação a ela nos primórdios da guerra fria.
Dentre os que encabeçaram a sua redação, é preciso enunciar, principalmente para demonstrar seu embrião universalista, aqueles que foram considerados seus padrinhos. Eleanor Roosevelt, política norte americana e esposa do ex-presidente dos EUA, Franklin Delano Roosevelt, foi quem liderou um grupo heterogêneo, formado por pessoas de diversas origens e forjadas em diferentes culturas. Ao seu lado estiveram René Cassin, professor, diplomata e veterano de guerra francês, Charles Malik, professor e diplomata libanês, Peng-chun Chang, professor e diplomata chinês, John P. Humphrey, professor e diplomata canadense e, por fim, Hernán Santa Cruz, político chileno. Desta forma, por mais que ao longo dos anos tenha recebido a crítica de ser uma declaração de um suposto ser humano ocidental, o argumento não resiste ao simples olhar dado para os redatores do documento. Vale lembrar que contribuíram dois brasileiros para a redação da Declaração de maneira decisiva: Austregésilo de Athayde e Bertha Lutz.
O jornalista e escritor brasileiro, Austregésilo de Athayde, fez parte da Comissão criada para formular o documento. Seu papel foi fundamental na defesa das liberdades civis, principalmente no tocante à liberdade de expressão e no direito à informação. Bertha Lutz, bióloga e política brasileira, foi, por sua vez, extremamente importante, pois por conta dela a Declaração abordou a igualdade de gênero como premissa para a construção de um mundo que pudesse ter como objetivo o progresso da humanidade.
Assim, desde o seu início a Declaração baseou-se na concepção universal, muito diferente da ideia de homogeneização. Sua proposta é, como podemos conceber a leitura íntegra do texto, fincada numa dialética de complementaridade, que se constrói da diversidade a partir da universalidade da espécie humana. Se ela não é compatível com a dicotomia entre direita e esquerda, pois em nenhum dos dois supostos compartimentos ela cabe, tampouco é com a ideia de ela ser apenas uma visão ocidental. Sua dialética permite, inclusive, o seu caráter dinâmico, no sentido de que ela acompanha o contexto do ser humano e sua jornada geracional na Terra.
Não é por outro motivo que a Declaração ganhou a alcunha de universal e não de internacional, pois ela não é um esclarecimento sobre algo acordado entre os estados do mundo e as nações existentes, mas sim algo sobre a humanidade que habita o planeta. Sua universalidade ganha, portanto, outra característica, que é a da unidade do gênero humano. Isto é, uma universalidade de uma espécie em seu sentido social e político.
É justamente por isso que ela dispõe que todo ser humano tem capacidade para gozar dos direitos e das liberdades que ela estabelece, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento ou qualquer outra condição.
Em seu corpo ela traz direitos e liberdades de ordem pessoal, que se relacionam à vida, liberdade, segurança e dignidade da pessoa. Nesse sentido, dispõe sobre a necessidade de uma igual proteção perante a lei, garantias contra a escravidão, tortura, detenções e penas arbitrárias, exigindo que haja o direito de recorrer aos judiciários contra abusos de poder. Nesse sentido, ela é uma Declaração que preza profundamente pelas liberdades inerentes à condição humana.
Todavia, liberdade tão somente não basta se não forem providos aos seres humanos direitos que sejam típicos do indivíduo no seu relacionamento com os grupos a que pertence e as coisas do mundo. Ou seja, a Declaração dispõe sobre o direito à vida privada e à intimidade, o direito à liberdade de locomoção e ao asilo em caso de perseguição, o direito à nacionalidade, básico na concepção arendtiana do contingente universal que envolve o direito a ter direitos. Além desses, estabelece o direito de casar-se, criar uma família, ter um lar, um domicílio e o direito de ter uma propriedade, seja de maneira individual ou em sociedade com outros.
Apesar desses direitos fundamentais, a Declaração admite que eles não são suficientes para que o projeto de progresso da humanidade em direção à convivência pacífica e harmoniosa seja possível. Por isso, ela também dispõe que além deles, deve haver direitos relacionados às faculdades espirituais, às liberdades públicas e aos direitos políticos fundamentais. Nesse sentido, direitos como a liberdade de consciência, de pensamento, de crença, de palavra, de expressão, reunião, associação e de tomar parte na vida política, envolvendo a participação em eleições livres e periódicas.
Seriam todos esses direitos aqueles que conhecemos como direitos civis e políticos, mas que isolados não conseguem reduzir as desigualdades e injustiças existentes no mundo. Daí ela dispor junto a eles sobre direitos econômicos, sociais e culturais, como o direito ao trabalho, à livre escolha de trabalho, à seguridade social, às liberdades sindicais, à educação, ao descanso, à vida cultural e à proteção da criança.
Entrelaçando o direito à propriedade com os direitos culturais, a Declaração já menciona a necessidade de se proteger os interesses morais e materiais decorrentes de qualquer produção científica literária ou artística que venha a ser produzida por alguém.
Ao seu fim, a Declaração estabelece que todo ser humano tem direito a uma ordem social e internacional em que os direitos e liberdades preconizados possam ser plenamente realizados. O que muita gente não sabe, porém, é que tudo isso só pode ser realizado em um lugar onde haja efetivamente o direito de cada ser humano em tomar parte no governo de seu país diretamente ou por meio de representantes livremente escolhidos, sendo, portanto, a vontade do povo a base da autoridade do governo. Vontade esta, que deve ser expressa em eleições periódicas e legítimas, realizadas por sufrágio universal, por voto secreto ou por processo equivalente que assegure a liberdade de voto. Ou seja, a Declaração exige, indica, preconiza, estabelece que os direitos humanos só podem ser realizáveis no regime democrático.
Desta maneira, democracia e direitos humanos são intrinsecamente ligados de uma forma em que um é condição sine qua non para a afirmação, promoção e efetivação do outro. Não é possível se pensar na existência de direitos humanos em qualquer sociedade em que não haja eleições livres, pois a universalidade dialética das diversidades se torna impossível quando as visões conflitivas do ser humano em sociedade se tornam impossíveis de serem colocadas em debate. Sem eleições, sem alternância de poder, a tendência é de que se formem regimes autoritários, que transformem a diversidade e a pluralidade da condição humana em homogeneidade artificial e forçada, produzindo, invariavelmente, guerras, fluxos de deslocados forçadamente ou simplesmente ataques aos grupos que não pertencem à elite dominante.
Assim, a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 é um documento que demonstra que qualquer discussão sobre direitos humanos não é algo de propriedade da esquerda, da direita, do centro, do ocidente, do oriente, ou seja lá qual for a dicotomia redutora e demagógica. A Declaração é um projeto político do ser humano visto em sua condição de espécie existente sobre o planeta, cuja possibilidade de realização exige o regime democrático, que até hoje, mesmo diante de suas imperfeições e problemas, é o único que permite que a complexidade humana e toda sua pluralidade seja desenvolvida sem que a violência e a brutalidade das tiranias, ditaduras ou totalitarismos a destruam.