fbpx
Fundação Podemos
/
/
Acervo Temático: Reflexões sobre a democracia

Acervo Temático: Reflexões sobre a democracia

Atualmente muito tem sido dito sobre os perigos que a democracia corre no mundo, pelo menos onde ela realmente existe e funciona. Praticamente não há um dia sequer em que nos jornais brasileiros e do mundo ocidental democrático não se encontre pelo menos uma notícia sobre o assunto. Todavia, por qual motivo será que esse tema se tornou tão recorrente? O que há realmente de risco para a democracia?

Para encontrarmos alguma resposta, primeiramente é importante que façamos a reflexão sobre a natureza da própria democracia. Se pegarmos a literatura da ciência política e do direito, encontraremos definições históricas e formais acerca do que é a democracia. Se quisermos ir além da ciência política, encontraremos definições ou cruzamentos na sociologia, na psicologia e na própria antropologia. O que, na realidade, se quer dizer com isso é que a democracia pode ter conceitos formais, mas ela não deixa de ser um fenômeno humano, oriundo da natureza humana em sociedade e, portanto, multifacetado.

Todavia, é preciso que tenhamos premissas básicas para que não caíamos no vazio e nas confusões conceituais que mais atrapalham do que ajudam. Nesse sentido, é preciso pensar que a democracia exige pluralidade. Esta que é uma característica humana, que se manifesta das mais diversas formas sociais. Não é por outro motivo que toda democracia moderna tem como base um rol de direitos fundamentais, que refletem justamente essa pluralidade. A liberdade de expressão, a liberdade de opinião, a liberdade religiosa são liberdades que têm como antecedente a ideia de que somos seres que se manifestam de maneira heterogênea em convívio.

Por ser um fenômeno voltado para a pluralidade humana, a democracia é por definição conflitiva. Afinal, é natural ao desdobramento da ideia de pluralidade de que choques existirão em relação a como se deve ser a condução humana em determinada seara da vida. O mero fato de que somos seres mortais, implica já na basilar discussão sobre os mistérios que envolvem a nossa finitude. Daí justamente as religiões, que vão buscar no transcendental as repostas cujo empirismo não nos é permitido. Claro que diante disso não seria possível pensar na homogeneidade. Imaginar uma religião única para o planeta seria impossível como infactível, pois isso exigira não somente a conexão de todos os seres humanos do planeta entre si, no sentido de que todos ali tivessem a mesma origem, os mesmos impactos geográficos e climáticos, pois sabemos que a natureza é um importante elemento entre diversos credos do mundo, assim como experiências e rituais institucionalizados uniformemente entre todos. Ou seja, completamente impensável. Desta maneira, a explicação sobre de onde viemos, para onde iremos e simplesmente o que nós somos terá, talvez até o fim dos tempos, diversas respostas. Isso seria desde já um elemento suficiente para causar conflito e choques entre todos nós.

Entretanto, dentre tantos fatores relacionados à nós mesmos, seria ingênuo imaginar que o nosso desenvolvimento também adotasse os mesmos padrões e tivesse as mesmas aspirações em todo o mundo. Nossa orientação sexual, nossos afetos em geral e toda nossa pluralidade possuem fatores sociais, culturais e psicológicos que impedem qualquer tipo de homogeneidade estrita. Padrões culturais acerca de condutas esperadas surgem naturalmente entre grupos sociais, mas daí imaginar a totalidade da humanidade seria algo completamente equivocado.

Diante disso tudo, o ponto fundamental é que a democracia é conflitiva e mais do que isso, ela exige o conflito, pois é a partir dele que mudanças ocorrem, aperfeiçoamentos são possíveis e condutas podem ser reavaliadas. Diferentemente do que Hegel ou Nietzche pensavam sobre a guerra e a violência, elas não são necessárias para a saúde e higidez da humanidade. O conflito pode muito bem exercer o papel de movimentar e dar dinamismo, sem que ele custe vidas ou simplesmente se torne violento.

Nesse diapasão é preciso ficar muito claro que quando falamos de conflito, não estamos falando de violência. A violência é algo que se instrumentaliza fisicamente, o conflito não. Deste modo, numa perspectiva arendtiana, a violência é instrumental e o conflito faz parte da ação humana.

Nesse diapasão, em que sentido tomaríamos o conflito como elemento fundamental da democracia? Conforme explicado, em razão da pluralidade que é a sua premissa. A pluralidade que é a razão de ser dos desdobramentos dos direitos fundamentais, que conformam a pedra angular do regime democrático. Afinal, a homogeneidade humana só é possível, nessa perspectiva, de maneira artificial. Ou seja, quando forçadamente provocada por meio de um regime que não a admita, tal como o totalitarismo, que por definição é a sua negação ou as ditaduras, que constroem inimigos objetivos, cuja função é atentar, mesmo que num campo imaginário, contra os eleitos ou a elite que comanda determinada sociedade.

Tendo em vista, então, o conflito como elemento fundamental da natureza da democracia, a pergunta que se coloca é: quando ele surge, como ele pode ser resolvido sem que se torne violência? É nesse ponto que o Estado Democrático de Direito se constrói com base nas instituições, que oferecem processos estabilizadores dos conflitos na sociedade. Isto é, processos institucionalmente previstos, conhecidos e operacionalizados pelas pessoas na dinâmica de suas interações sociais. Métodos de solução de conflitos como a mediação, a conciliação, bons ofícios, a atuação de um poder judiciário investido legalmente, acusatório e não inquisitório, devem permear a sociedade como estabilizadores que permitem a pacificação social. Nesse sentido, são métodos que podem ser encontrados além do poder judiciário, devendo, inclusive, serem constantemente estimulados e aperfeiçoados, para que possuam entre as pessoas não só a chancela de autoridade reconhecida em suas decisões, como também um nível relevante e suficiente de efetividade.

O conflito natural que eclode no seio social é resolvido por meio desses métodos, que inclusive tomam o lugar de soluções instrumentalizadas, como por exemplo, pelo uso de armas ou pelo uso da própria força física. São, portanto, fundamentais para o desenvolvimento da sociedade como lugar de paz e para a própria democracia, como projeto contínuo e não um dado concreto estanque, já completo e encerrado.

Aliás, vale aqui apontar que assim como esses mecanismos permitem a criação de outros novos e o próprio aperfeiçoamento deles mesmos, a democracia também se aperfeiçoa e se desenvolve institucionalmente, não sendo ela um projeto pronto e acabado, mas sim um construído sem termo final, que precisa de constante zelo.

Não é por outro motivo que quando assistimos a ascensão de personalidades ou movimentos autoritários nas sociedades democráticas, um dos elementos básicos em seus receituários discursivos é a tentativa de conferir descrédito às instituições democráticas e aos mecanismos de solução de conflitos. Se pensarmos que a escolha de representantes na democracia também se faz de maneira conflituosa, pois alguém pode pensar que o melhor indivíduo para o representar seja diverso daquele que outro pensa, teremos as eleições, num sentido geral, como uma espécie de método procedimental de solução de conflito. Ou seja, o processo eleitoral é também um processo institucional pacificador da sociedade.

Com todo esse raciocínio não se torna difícil compreender por qual motivo figuras como Donald Trump nos Estados Unidos, Jair Bolsonaro no Brasil, Maduro na Venezuela, dentre outros líderes com caráter autoritário tentam desacreditar as instituições democráticas numa espécie de crescente que vai desde o processo eleitoral até as decisões tomadas pelo poder judiciário. Desta maneira, independentemente do suposto espectro ideológico, o menu é sempre o mesmo: começar a desacreditar as eleições gerais do país, afirmando que não são seguras ou limpas, independentemente de qualquer evidência ou simples prova, para depois questionar decisões de magistrados e de cortes superiores, que fazem o controle político do país, dentro do contexto da separação de poderes e do sistema de freios e contrapesos.

Quando foi derrotado por Joe Biden em 2020, Donald Trump sustentou por inúmeras vezes que as eleições não foram limpas e que teriam, portanto, sido fraudadas. Com isso foi capaz de movimentar massas de eleitores que até hoje acreditam que Trump venceu Biden nas eleições. A estratégia por detrás disso não está, de maneira alguma, em tentar convocar novo pleito, mas sim enfraquecer as instituições democráticas para que, com a erosão delas, a via de chegada ao poder se torne mais fácil. Da mesma maneira em relação ao constante descrédito que Trump dá para o poder judiciário norte americano, chamando-o de lacaio por algumas vezes, ou simplesmente ideologizado em outras; o que lhe é conveniente diante das inúmeras condenações que possui em razão de crimes sexuais e tributários.

Jair Bolsonaro, mesmo vencendo as eleições em 2018, colocou em dúvida a lisura do processo eleitoral brasileiro, dizendo que as eleições não tinham demonstrado a real votação que teve. Durante seu governo entrou em choque quase que diariamente com as instituições, principalmente com o poder judiciário. Ao ser derrotado nas urnas no ano de 2022, não reconheceu sua derrota expressamente e não parabenizou seu oponente, como manda a tradição republicana democrática do Brasil.

Nicolás Maduro recentemente fez a mesma coisa. A Venezuela terá eleições brevemente e já com receio do resultado das urnas, o ditador venezuelano, que há muito tempo governa o país, manifestou-se dizendo que se não vencer as eleições, haverá um banho de sangue e que duvidará da lisura do pleito.

Assim, lideranças autoritárias costumam seguir o mesmo script para enfraquecer os processos institucionais que garantem a manutenção e a existência da democracia. Quanto mais as desacreditam entre as pessoas, mais conseguem tencioná-las, tornando-as mais vulneráveis para que possam implementar seus projetos de poder sem que sejam freados ou limitados. Nesse sentido, são também radicais em seus discursos, preferindo sempre o embate e a divisão, fomentando conflitos no seio da sociedade, com o objetivo de demonstrarem que os canais de solução que existem não são suficientes ou limpos, e que, portanto, não podem receber a confiança das pessoas.

É, portanto, notório que na história todos os líderes com perfil autoritário seguiram a mesma receita. Nas democracias mais robustas não conseguiram erodir suficientemente os processos institucionais para que conseguissem implantar sua hegemonia. Contudo, em democracias mais conturbadas e não tanto estabilizadas, o enfraquecimento pode representar um enorme perigo. Ou melhor, quando essas lideranças aparecem, caso não sejam neutralizadas ou colocadas dentro dos limites institucionais, tendem a erodir paulatinamente as instituições até que elas finalmente se curvem.

Assim, é necessário zelar constantemente para que os conflitos no ambiente democrático sejam sempre estimulados a serem resolvidos pelos processos estabilizadores institucionais, que pacificam o seio social e fortalecem o regime democrático. A violência é instrumento daqueles que desejam subverter a ordem democrática, oferecendo soluções simples para problemas complexos, sempre apontando as instituições como ineficientes e as causadoras dos problemas e conflitos inerentes a qualquer sociedade. Desta maneira, compreender que o conflito faz parte da democracia é fundamental para que possamos fortalecer seus meios de soluções institucionais sem que caíamos no discurso violento, sempre igual, dos espíritos autocráticos que de vez em quando surgem para assombrar o coração das democracias.

 

Observação: Esse conteúdo não representa, necessariamente, a opinião da Fundação Podemos.

Compartilhe:
como citar
Últimas publicações
Acompanhe nosso conteúdo
plugins premium WordPress