Todos nós com certeza notamos que os ânimos políticos andam muito exaltados no Brasil. A chance de que quem estiver lendo isso já tenha brigado, se afastado ou até mesmo rompido com amigos e familiares porque a pessoa votou no outro candidato é enorme. “O Brasil está polarizado”, dizem alguns.
Ora, de fato estamos diante de algo novo. Nem sempre foi assim. Mas o problema não é a polarização em si. Há outra coisa em curso na vida política brasileira. É disso que vamos falar nesse texto.
A polarização em si não é ruim:
À exceção da eleição de 1989, a primeira desde a redemocratização, as demais eleições foram marcadas pela polarização competitiva entre PT e PSDB. Gostemos ou não, esse tipo de polarização é normal em democracias presidencialistas, quando as opções competitivas eleitoralmente se organizam em torno de dois polos – não “extremos” – entre uma centro-esquerda e uma centro-direita.
No caso brasileiro o PT ocupou o polo da centro-esquerda ao moderar gradativamente seu discurso a fim de captar o eleitorado mais ao centro. Já o polo da centro-direita fora ocupado pelo PSDB, que não é exatamente o PSDB imaginado pelos seus fundadores, que seria uma espécie de terceira via de centro esquerda inspirada nas social-democracias europeias, mas o PSDB que se adaptou a essa dinâmica política ocupando o espaço da centro-direita em busca do eleitorado mais conservador, que não vota em muitas das bandeiras que o PT carrega.
Em geral, o que está em jogo nesse tipo de polarização partidária envolve visões sobre o mundo (mais ou menos conversador nos costumes) e visões sobre o papel do Estado e políticas públicas (Se se deseja mais intervenção econômica ou mais liberalismo, se privatiza ou não empresas estatais e se um programa de transferência de renda para os mais pobres é desejável ou não). No pleito democrático os partidos apresentam um conjunto de propostas que abarcam essas visões de mundo de Estado e os eleitores sufragam aquela que for da preferência da maioria. Ao final todo mundo volta para casa, quem perdeu lamenta e a vida segue. Faz parte da democracia.
Esse tipo de polarização, portanto, é de natureza partidária e é comum em diversas democracias, a exemplo dos EUA, onde republicanos e democratas geralmente não se confundem entre si e (até recentemente) aceitavam suas diferenças.
Polarização afetiva e calcificação:
Essa dinâmica partidária acabou. Hoje o PSDB aparentemente não reúne mais as condições de ocupar de maneira competitiva um dos lados desse polo. Pelo menos a nível nacional. Mas não é apenas a configuração partidária no Brasil que mudou. O que tivemos no Brasil recente foi uma modificação muito mais profunda, que diz respeito ao modo como os eleitores se identificam e se engajam com a política. Pelo menos esta é a tese apresentada por Felipe Nunes e Thomas Traumann em livro recente[1].
Com base em fartos dados levantados pelas pesquisas da Genial\Quaest ao longo dos últimos anos os autores nos mostram que há em curso uma nova relação com a política no Brasil. Aquela velha polarização PT-PSDB que orientou boa parte da Nova República foi suplantada por uma nova lógica de identificação política. E ela é sobretudo afetiva.
Isso foi resultado de um processo ao longo do qual uma série de fatos políticos, midiáticos e jurídicos produziu uma enorme insatisfação da população com o sistema político, criando um clima antipolítica e produzindo uma radicalização sem precedentes que culminou no resultado eleitoral de 2018, que foi fortemente marcado pelo antipetismo. E aqui chegamos ao ponto central da tese dos autores:
A eleição de 2018 é o ponto de inflexão na transformação da polarização partidária em um fenômeno novo, mais extremado, no qual o radicalismo político começou a transbordar para o cotidiano. A posição política passou a ser parte da identidade de cada um e o seu diferencial em relação ao outro. (Nunes e Trauman, 2023 p.14)
Assim, em lugar da mera polarização eleitoral, onde os eleitores se dividem em relação à preferência por partidos políticos e por políticas públicas, agora a divisão se dá em torno de algo mais forte, que passa pela visão sobre como deve ser a vida, sobre questões morais e comportamentais. Mas mais importante que isso: Agora a vitória do adversário passa a ser inaceitável porque representa uma ameaça à nossa forma de vida e a nossos valores. Seja ela vista como uma ameaça à família tradicional e ao cidadão de bem, seja porque é vista como uma ameaça à sexualidade, ao comportamento, a modos de ser. O sentimento predominante aqui, como captam as pesquisas, é o medo. Assim, o adversário agora não pode ser tolerado, é algo que deve ser exterminado, que não deve existir. O adversário agora é um inimigo.
Fica claro que nesse caso os eleitores não se dividem em torno de divergências sobre políticas públicas. O que temos aqui é uma polarização afetiva. A diferença é que aqui as divergências afetam a identidade, aquilo que somos, e a vitória do adversário (ou inimigo) ameaça essa existência e põe em risco o mundo que desejamos e que queremos criar nossos filhos. E o que é mais importante: não terminam depois das eleições. Elas persistem no dia a dia.
Mas há algo tão ou mais importante em curso no Brasil. Esse processo por meio do qual as opiniões políticas passam a ser parte da identidade dos eleitores, seguem os autores, acaba se cristalizando em posições políticas imutáveis. Trata-se do fenômeno chamado de “calcificação”. Entender isso é fundamental, sobretudo para quem pretende disputar eleições: Como o termo calcificação sugere, o que se observa é um engessamento total de opiniões e posicionamentos. Como as pesquisas da Genial/Quast captaram durante todo o governo Bolsonaro e seguem captando durante o governo Lula, os eleitores que se identificam com algum dos dois polos seguem firmes em suas convicções e avaliações. Assim, não importa o que Bolsonaro ou Lula façam ou digam, não importam revelações sobre desvios de conduta ou processos legais que surjam contra eles, não importam resultados concretos da economia ou das políticas públicas. Seus apoiadores seguem firmes em sua defesa e apoio.
Pesquisas mais recentes, feitas após a publicação do livro, só vieram confirmar essa tendência: Quando perguntados sobre a situação da economia durante o governo Lula, os eleitores de Bolsonaro responderam massivamente que a economia ia mal, enquanto os eleitores de Lula responderam massivamente que a economia ia bem. Isto tudo sugere que, afinal de contas, pouco importa os resultados concretos da economia. A percepção desses eleitores é guiada por suas preferencias eleitorais que já estão dadas. E estão engessadas, ou melhor, calcificadas.
Os dados mostram também que essa calcificação tem se espalhado para outros âmbitos da vida das pessoas, influenciando, por exemplo, as marcas ou empresas de que consomem produtos. Os chamados boicotes a artistas ou empresas que se manifestam em favor deste ou daquele polo político têm sido cada vez mais frequentes. Tudo ocorre em uma realidade marcada por um ecossistema de comunicação enviesado, o que significa, dito de modo simples, que as pessoas, em razão do seu campo político, se informam cada vez mais por meios de comunicação segmentados, que produzem informações consumidas apenas por este campo, o que tende apenas a reforçar aquilo que as pessoas já achavam.
Tem saída?
Os autores não nos oferecem uma resposta. Talvez porque não haja saída simples. Podemos pensar que se as eleições voltassem a ser pouco mais do que uma disputa por visões sobre Estado e políticas públicas e os valores e costumes voltassem a ser algo da esfera do privado, talvez retornaríamos ao modelo que vigorou durante boa parte da Nova República. Mas como fazer isso, não sabemos.
É importante salientar também que nem tudo está perdido. Os eleitores que se identificam com algum dos polos em questão representam, numericamente, algo em torno de um terço do eleitorado, para ambos os lados. Isto significa que ainda há um terço do eleitorado que não está “calcificado”, e que, portanto, ainda é disputável politicamente.
Vale lembrar também que estamos falando aqui de eleições presidenciais, que, historicamente no Brasil, têm o poder de colocar em disputa grandes questões como visões de mundo e de país. Essa realidade não se reproduz da mesma maneira em eleições proporcionais, como sabemos, nem em eleições municipais. Esta é uma questão que podemos abordar em uma próxima publicação. Mas o que as pesquisas que produziram o livro de Felipe Nunes e Thomas Traumann nos revelam é, sem dúvida, uma tendência importante demais para ser ignorada por quem busca compreender ou participar da política no Brasil.
[1] Nunes, Felipe e Traumann, Thomas. Biografia do abismo: como a polarização divide famílias, desafia empresas e compromete o futuro do Brasil. Rio de Janeiro: Harper e Collins Brasil, 2023.