O Tribunal Penal Internacional (TPI) representa na história da humanidade um inequívoco avanço naquilo que denominamos como responsabilização penal internacional do indivíduo. Ele é fruto de uma dura e gradual construção que se deu a partir da concepção de que o homem, sendo sujeito de direitos e deveres no âmbito internacional, é capaz de cometer crimes que ofendam a própria essência de tudo aquilo que constitui a nossa condição humana.
Historicamente é possível apontar que a gênese do Tribunal Penal Internacional se deu através do Tribunal de Nuremberg em 1945 e do Tribunal de Tóquio de 1946. Ambos relacionados aos crimes cometidos durante a Segunda Guerra Mundial pelos nazistas e pelo império japonês, derrotados pelos aliados. Vale dizer que nesse momento histórico apenas os crimes de guerra cometidos pelos derrotados foram levados a julgamento, uma vez que as duas bombas atômicas jogadas sob Hiroshima e Nagasaki pelos Estados Unidos nunca foram juridicamente julgadas. Não se pode esquecer que em menos de poucos minutos duas cidades inteiras foram pulverizadas pelos norte-americanos, com ordem diretamente dada pelo então presidente Harry Truman, deixando sequelas, inclusive, para gerações que sobrevieram, principalmente por conta dos efeitos transmitidos pela radiação da explosão das bombas. Da mesma forma, nunca foram julgados os massacres, as deportações e as violências sistemáticas contra populações civis e prisioneiros de guerra cometidos pelos soviéticos durante e depois do conflito[1].
Tanto o Tribunal de Nuremberg, quanto o de Tóquio sofreram graves críticas por conta da sua excepcionalidade e a sua falta de legitimidade jurídica. Afinal, foram tribunais que contrariaram o princípio clássico do direito penal nulla poena sine lege praevia (não há pena para crime que não exista legalmente constituído antes dos fatos). Todavia, o mundo estava diante de um desafio nunca presenciado por qualquer tribunal doméstico: o Holocausto e todo o horror que levou à elaboração da Convenção para Prevenção e Repressão ao Crime de Genocídio de 1948. A Alemanha estava destruída e os nazistas que não se suicidaram covardemente, como Hitler e Goebbels, precisavam ser julgados. A lei de Weimar não era capaz disso, tampouco todo o arcabouço jurídico nazista que foi sendo construído na Alemanha.
Se Nuremberg e Tóquio sofreram válidos questionamentos jurídicos em relação à sua legitimidade, o mesmo não pôde ser dito em relação aos dois outros tribunais que sobrevieram no início da década de 1990. Após a catástrofe genocida em Ruanda e na Ex-Iugoslávia, dois Tribunais Penais Internacionais ad hoc foram criados mediante resoluções do Conselho de Segurança da ONU. Sendo normativa de caráter obrigatório e com efeito erga omnes para todos os estados membros da ONU, os dois tribunais possuíam legitimidade jurídica suficientemente fundamentada na Carta das Nações Unidas, na jurisprudência dos Tribunais de Nuremberg e Tóquio e em toda normativa convencional internacional criada desde 1945, que se referia ao assunto; isto é, em relação ao crime de genocídio, aos crimes de guerra e aos crimes contra a humanidade.
Em 1998 foi, enfim, criado, por meio do Estatuto de Roma, o Tribunal Penal Internacional de caráter permanente, cujo funcionamento se deu a partir do ano de 2002. O objetivo do TPI não é punir os agentes estatais por meio da punição efetiva do estado na seara internacional, mas sim punir os indivíduos, as pessoas, que em nome do estado ou em nome de qualquer outra entidade cometam os crimes que, como já mencionados, ofendem a própria condição humana. Sua criação se deu seguindo a concepção de um direito internacional não mais guiado pela coexistência entre os estados, mas sim pela cooperação entre eles.
Nesse sentido, deixando clara a margem que os estados têm para cumprirem com suas obrigações internacionais, o Estatuto de Roma dispõe sobre o princípio da complementaridade, que faz com que o TPI tenha caráter excepcional e complementar. Ou seja, somente será exercida a sua jurisdição em casos de manifesta incapacidade ou evidente falta de disposição de um sistema judiciário nacional para cuidar dos crimes em questão. Dessa forma, o argumento de que o TPI seria uma invasão à soberania de um país ou mesmo uma ingerência política de outros estados em qualquer um outro se torna mera falácia. Afinal, os estados têm primazia para investigar e julgar os crimes que estão previstos como de competência do Tribunal.
O problema está, na realidade, no fato de que normalmente os agentes desses crimes são pessoas que detém muito poder político e comandam governos ou pertencem ao alto escalão deles. A grande dificuldade do exercício do caráter punitivo da jurisdição do TPI reside justamente nesse fato: os criminosos de guerra, aqueles que cometem crimes contra a humanidade ou orquestram um genocídio são pessoas poderosas.
Em março de 2023 o TPI emitiu um mandado de prisão contra o presidente russo Vladimir Putin, por conta de crimes de guerra cometidos no atual e duradouro conflito entre a Rússia e a Ucrânia, especificamente envolvendo a deportação ilegal de crianças da Ucrânia. Além desse mandado de prisão, a promotoria do TPI fez, já em maio de 2024, o pedido de mandado de prisão para o premiê israelense Benjamin Netanyahu e para as lideranças do Hamas em razão dos inúmeros crimes de guerra e contra a humanidade cometidos por ambos no conflito entre Israel e o grupo terrorista.
São alvos do pedido feito pelo promotor-chefe do TPI, além de Netanyahu, o ministro da Defesa de Israel, Yoav Gallant e os líderes do Hamas Yehya Sinwar, Mohammed Deif e Ismail Haniyeh, líder do grupo, comandante militar e diretor do escritório político respectivamente. Feitos os pedidos, eles são avaliados por uma Câmara de pré-julgamento, que decide se eles devem ser expedidos ou não.
O TPI conta com 123 estados membros na atualidade. Não são parte dessa organização internacional nem os EUA, tampouco Israel. Todavia, isso não significa que os mandados de prisão contra as lideranças políticas israelenses seriam inúteis, pois apesar de um estado não membro não ter a obrigação de cumprir com uma ordem do Tribunal, todos os demais estados que são membros têm essa obrigação. Isto significa uma restrição grave ao direito de ir e vir das pessoas que são objeto desses mandados de prisão. Tanto isso é verdade, que Putin tem tido o cuidado de não viajar para estados que são parte do Tribunal. Sua futura viagem ao Brasil, por exemplo, no próximo encontro do G20 é algo que ainda se encontra em aberto.
Nesse sentido, a Alemanha, que é, assim como o Brasil, parte do Tribunal, já se manifestou que, apesar do seu apoio a Israel, se Benjamin Netanyahu viajar a Berlim, será preso. Trata-se de importante manifestação de um país que vive até hoje com a sombra e o fantasma do que aconteceu na Segunda Guerra Mundial, mas que se demonstra cumpridor e cuidadoso com suas obrigações internacionais assumidas por meio de tratado. Vale dizer que o mesmo deverá caber para o Brasil em relação a Putin, se o país quiser continuar a cumprir com aquilo que assumiu formalmente perante toda a comunidade internacional.
Em relação ao conflito entre Israel e o Hamas, é importante apontar que a promotoria do TPI vem investigando há um bom tempo os possíveis crimes cometidos por ambos. Embora não tenha falado em genocídio, a investigação feita indica que Israel usou a fome como arma de guerra em conjunto a outros ataques e punições coletivas contra a população civil de Gaza. Dentro disso, Israel, para a promotoria do TPI, provocou forçadamente a desnutrição, a desidratação, implicando um sofrimento profundo a um número crescente de bebês, crianças e mulheres. Ela também aponta que foram causados profundos impactos e terrível sofrimento às vítimas dos ataques feitos pelo Hamas em 07 de outubro de 2023.
Tanto os acusados de Israel, quanto os do Hamas reagiram aos pedidos de prisão solicitados pela promotoria do TPI. Ambos se manifestaram no mesmo sentido, argumentando que se tratava de um absurdo, porque o TPI estaria igualando as vítimas aos perpetradores. Nesse sentido, é comum que cada acusado sempre reaja com argumentos parecidos, que quase sempre se dividem em três grupos. Isto é, um grupo de argumentos que busca a própria vitimização e inocência, um outro mais técnico, que perpassa o não reconhecimento jurídico da legitimidade do tribunal e um último de cunho político, que sempre aponta que o Tribunal está sendo usado para atender interesses de nações consideradas inimigas ou não passa de mero fantoche delas.
Embora esses argumentos sempre apareçam, na maior parte das vezes são falaciosos. Aliás, vale apontar que durante a sua breve história o TPI foi apontado por muitos juristas e estudiosos como um Tribunal que só tinha olhos para o continente africano, como se os crimes que ofendem a condição humana só acontecessem nos países da África. O conflito na Ucrânia e em Gaza têm mostrado que isso não é mais uma crítica aceitável. Um mandado de prisão contra Putin e Netanyahu demonstra que o TPI, no seu gradual desenvolvimento, mesmo que historicamente estabelecido em Haia, não é um Tribunal que só tem olhos para os países mais fracos politicamente, tampouco que não sejam considerados importantes no mundo ocidental. Putin se coloca como inimigo do Ocidente, é verdade, mas Netanyahu está longe de o ser; para provar isso, basta analisar o fornecimento contínuo de armas e recursos que tanto a Europa, quanto os EUA para Israel enviam.
É muito importante ressaltar, principalmente para que as críticas sejam bem compreendidas e as retóricas falaciosas sejam afastadas, que o TPI não age por ofício. Ou seja, seus juízes se pronunciam após serem oferecidas as denúncias embasadas em profunda investigação e colheita de provas. É verdade que sempre haverá a possibilidade de um mandado de prisão emitido pelo TPI ser considerado ineficaz e, assim, conferir certo descrédito para a instituição no âmbito político e para a opinião pública global. Contudo, não deve assim ser visto, mesmo quando o mandado não é cumprido. Afinal, o constrangimento que ele causa, as limitações no direito de ir e vir das pessoas envolvidas e a própria oportunidade de os países membros manifestarem o seu endosso ao compromisso que firmaram ampliam a força de atuação do jovem Tribunal. Ou seja, não é paradoxo algum afirmar que mesmo não sendo cumprido, o mandado de prisão tem um relevante grau de efetividade. Como já ventilado, as restrições de viagem de Putin demonstram fortemente essa realidade.
Aliás, vale também ressaltar que em hipótese alguma os pedidos feitos para os mandados de prisão das lideranças políticas de Israel e do Hamas deixam de considerar que estes últimos são uma organização terrorista, enquanto os primeiros governantes legítimos e não terroristas. Não há uma equiparação de ambos em relação ao que são, mas sim ao que fizeram. Isso é extremamente importante, pois o foco do Tribunal não é o conflito e suas razões políticas em si, mas sim buscar intimidar aqueles que ameaçam a integridade e a vida dos inocentes que realmente nada tem que ver com ele, mas por conta dele padecem, sofrem profundamente e morrem.
[1] Vale aqui lembrar que também nunca foram julgados os crimes cometidos durante a guerra do Vietnã, que envolveu os horrores causados à população civil em razão do agente laranja e do napalm utilizados pelos EUA. Também nunca foram julgados os crimes cometidos pela URSS durante o longo governo de Stalin, que promoveu a fome como instrumento de terror para matar no que ficou conhecido como Holodomor.