O ano de 2024 marca os 300 anos de nascimento de um dos maiores filósofos da história: Immanuel Kant (1724-1804). Nascido na pequena Königsberg, no dia 22 de abril de 1724, cidade que pertencia à Prússia Oriental e hoje é um entrave russo entre a Polônia e a Lituânia, Kant pode ser considerado um dos maiores expoentes da Aufklärung alemã, pioneiro do iluminismo e um dos mais importantes pensadores de toda humanidade.
Kant teve uma longa e aparentemente pacata vida. Oriundo de uma família humilde, o quarto de onze filhos de um artesão que trabalhava com couro, nunca saiu de sua pequena cidade junto ao Báltico. Tinha a fama de ser extremamente metódico e sempre fazer as mesmas coisas nos mesmos horários. Levantava-se sempre por volta das quatro e quarenta da manhã, lecionava entre as sete e as nove da manhã, daí em diante tirava um tempo para pensar e escrever, mais ou menos até uma da tarde, almoçava e então saia para passear. Há a famosa lenda de que era possível ajustar os relógios de Königsberg por meio dos hábitos de Kant.
Muito embora tenha passado para a história como um homem sisudo e de hábitos rigorosos, acadêmico e professoral, estudiosos de sua vida apontam que Kant gostava de almoços longos, boas conversas regadas a vinho, jogos de cartas e bilhar. Era um amigo festivo e um homem generoso. Apesar de não ter nunca se casado e não ter tido filhos, Kant dizia que quando uma esposa lhe fez falta, não tinha recursos para sustentá-la. Afinal, melhorou materialmente de vida aos poucos, principalmente após a publicação de suas obras em momento mais tardio de sua vida.
Entretanto, isso tudo não implica em dizer que Kant não tenha vivido tempos conturbados, violentos e complexos. Apesar de nunca ter saído de Königsberg, a cidade era uma espécie de Veneza do norte, por ser um entroncamento comercial importante. Ali passavam, além de inúmeras pessoas de diversas origens, as notícias que com elas chegavam. Kant, assim, presenciou diversos conflitos, como a Guerra dos Sete anos, durante a qual os russos ocuparam o leste da Prússia, a Revolução Francesa e o início da carreira de Napoleão.
No Brasil, a obra de Kant foi introduzida por Dom João VI (1767-1826) quando transferiu a corte de Lisboa para o Rio de Janeiro em razão da invasão das tropas napoleônicas em 1808. De acordo com a historiografia, Dom João trouxe em sua bagagem o livro que pode ter sido o primeiro sobre Kant em territórios brasileiros. De acordo com Luiz Armando Bagolin, professor do Instituto de Estudos Brasileiros da USP, a obra que Dom João trouxe era Philosophie ou Principes Fondamentaux de la Philosophie Transcendental, publicada pelo francês Charles Villers (1765-1815). Há, posteriormente, registro de reflexões sobre Kant na obra do padre Diogo Antônio Feijó (1784-1843)[1].
Kant influenciou e muito o pensamento no Brasil. Sua filosofia, que teve um desdobramento prático no positivismo, capitaneado por Augusto Comte (1798-1857), marcou a tradição político militar do Brasil republicano. Não é para menos que o lema ordem e progresso tem a inspiração positivista, fundamentado na razão que proclama o progresso e a ordem como processo civilizatório.
Assim, Kant é importante porque inaugura na história do pensamento a razão como ponto de partida e uma moral fundamentada no ser humano como fim em si mesmo. Sua contemporaneidade é notável. Suas três obras mais famosas, a Crítica da Razão Pura, a Crítica da Razão Prática e a Metafísica dos Costumes influenciaram filósofos e pensadores de diversos ramos do conhecimento, seja para se filiar a ele e nele se inspirar, e daí desenvolver seus próprios sistemas, ou para criticar e detratar o que propunha. Nesse sentido, influenciou correntes, provocou reatualizações de seu pensamento, como o neokantismo, servindo de adjetivo, tanto num sentido positivo como pejorativo.
Sua obra é extremamente densa e difícil. Kant não é um autor fácil. Há diversos elementos e conceitos que compõem suas linhas de pensamento. De acordo com Julían Marías (2004)[2], por exemplo, a principal origem do que se concebe como kantismo está na filosofia cartesiana e, consequentemente, no racionalismo. Kant, contudo, por si mesmo, chegou a afirmar que foi a crítica de Hume que o despertou do seu sono dogmático. Em Descartes, a res cogitans e a res extensa tem algo em comum: o ser. Este ser, até então, era fundado em Deus. Em Parmênides, que inicia na filosofia os questionamentos acerca da metafísica, o ser é uma qualidade real das coisas, algo que está nelas, como pode estar uma cor, embora de modo prévio a toda possível qualidade. As coisas, portanto, são definitivamente reais. No idealismo, inaugurado por Kant, o caso é diverso. O ser não é real, mas sim transcendental. Imanente é o que permanece em; transcendente é o que excede ou transcende a algo. Nesse sentido, transcendental não é nem transcendente nem imanente. A mesa, por exemplo, tem a qualidade de ser, mas todas as suas demais qualidades também são; o ser penetra e envolve todas e não se confunde com nenhuma. Todas as coisas estão no ser, e por isso ele serve de ponte entre elas. Isto significa para Kant o ser transcendental. Kant a partir dessa concepção formula uma teoria transcendental do conhecimento, que será a ponte entre o eu e as coisas. Nesse sentido, as coisas em si são inacessíveis, pois não posso conhecê-las, uma vez que na medida em que as conheço, elas já estão em mim. Isto é, já foram afetadas pela minha subjetividade.
Para a filosofia do direito a obra de Kant é de enorme repercussão. Kant dá um imenso valor para as estruturas jurídicas e concebe a comunidade jurídica a partir do reino dos fins. Isto é, promove uma junção do que elabora nas críticas que faz (mais especificamente na Crítica da razão pura e na Crítica da razão prática) para conceber a sociedade humana e analisar os fins que o homem possui. Estabelece, então, uma espécie de lei universal que pautará e servirá como amálgama moral da sociedade humana, que se organizará juridicamente: aja como se sua ação fosse aceitável e desejada em qualquer lugar do mundo; ou melhor, não faça aos outros aquilo que não desejaria para si mesmo. É a concepção do imperativo categórico.
Kant, que presenciou a guerra e suas consequências, abordou a questão da paz em “À paz perpétua”. Para ele as nações deveriam se organizar para formar uma federação de repúblicas, que seria estruturada num direito cosmopolita. Todo homem para Kant teria, assim, direito a uma hospitalidade universal. Nesse sentido, não há como negar que ele foi um inspirador da Sociedade das Nações, que nasceu sobre os escombros da Primeira Guerra Mundial, assim como também da Organização das Nações Unidas, que evidentemente tem em seu gérmen uma fundamentação kantiana. Não há dúvidas de que sobre a Carta de São Francisco de 1945 e sobre a própria Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, Kant, assim como dizia Hannah Arendt, pairava serenamente apoiando suas mãos sobre os ombros da humanidade.
Seria, portanto, desnecessário dizer que em seus 300 anos, Kant permanece importante. Todavia, em tempos líquidos, onde o conhecimento se torna questão de opinião em redes sociais e a profundidade dos debates sobre as coisas humanas tem o raio de uma postagem no instagram ou no tik tok, é preciso reafirmá-lo. A sua estrutura de pensamento é valiosa se pararmos para pensar em como devemos tratar as questões que nos preocupam como civilização que habita uma Terra de recursos finitos e que atingiu uma espécie de pax nuclear, perturbada pelas mudanças tecnológicas, pela inteligência artificial e seus impactos profundos. Como pensar a proteção do meio ambiente e as mudanças climáticas senão pela perspectiva da razão e do ser humano como fim em si mesmo? Como debater questões que envolvam a bioética ou a própria inteligência artificial sem um sistema moral e ético que nos ofereça parâmetros? Como pensar a coexistência pacífica entre culturas diferentes em um mundo cada vez mais violento e fragmentado pelas redes sociais e discursos de ódio? A partir de que momento se pode dizer que a vida humana detém proteção total da dignidade e dos direitos humanos? Respeitar as diferenças e conceber a pluralidade do ser humano como cerne da política não seria fundamentalmente kantiano? Como regulamentar as redes sociais sem pensar no ser humano como fim em si mesmo e não como produto a ser consumido?
Desta maneira, imaginar que todas essas questões poderão ser resolvidas de maneira pragmática e sem um convite para pensar é ingenuidade ou falta de qualquer prudência. Kant nos proporciona razões para explicar que o homem precisa filosofar, não em um sentido escolar, acadêmico, mas em um sentido mundano, que o faça retornar ao pensamento. Afinal, as perguntas permanecem. O que posso saber? O que devo fazer? O que posso esperar? Que é o homem? Assim, vale dizer, Kant, diante de todos esses desafios, em seus 300 anos não permanece fundamental, ele se torna urgente.
[1] Disponível em https://www.dw.com/pt-br/kant-300-anos-como-pensamento-do-fil%C3%B3sofo-alem%C3%A3o-influenciou-a-sociedade-brasileira/a-68869281; último acesso em 25 de abril de 2024.
[2] História da Filosofia. Martins Fontes, 2004, pp. 311-335.