Em 2023, o Governo Federal anunciou uma força-tarefa para a criação do Plano Viver Sem Limites II, voltado para a promoção e proteção da pessoa com deficiência e seus familiares. Este Plano seria a reestruturação daquele lançado em 2011, com o intuito de ressaltar o compromisso do país com as prerrogativas da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da Organização das Nações Unidas.
O novo plano, no entanto, já é alvo de críticas de organizações não-governamentais, que lutam pelos direitos e pela promoção das pessoas com deficiência. Vem entender com a gente!
A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência
A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência é um marco na luta pela garantia de direitos e promoção das pessoas com deficiência. A primeira grande conquista foi a demarcação normativa do conceito de pessoa com deficiência. Dispõe a norma internacional que pessoa com deficiência é aquela que tem “impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdades de condições com as demais pessoas.”
Além disso, a Convenção possui um sentido duplo: reafirmar os direitos universais, mas também garantir a não-discriminação das pessoas com deficiência, inclusive das crianças com deficiência. Um dos meios para garantir tal dispositivo é exatamente o que chamamos de discriminação positiva, ou seja, quando você diferencia um grupo, garantindo a ele meios para a efetivação de direitos. Por exemplo, garantir que haja cotas para pessoas com deficiência no serviço público. Adicionalmente, um grande passo para essa garantia é rever normas e processos administrativos do próprio Estado que causam desvantagens a essas pessoas, além de garantir que as autoridades públicas atuem conforme a Convenção, que inclusive é norma com status constitucional no ordenamento jurídico brasileiro. Isto é, a Convenção não é somente uma norma que obriga o Brasil no âmbito internacional, mas também a todos no plano normativo interno, pois é norma que integra todo o conjunto constitucional.
Outro ponto trazido pela Convenção é seu enfoque no direito das crianças e das mulheres com deficiência. Ela reconhece que esses grupos estão ainda mais vulneráveis a situações de marginalização, discriminação e desvantagens históricas. Nesse sentido, a Convenção clama para que os Estados-parte ouçam e façam serem ouvidas tanto as crianças, quanto as mulheres com deficiência na tomada de decisões relativas a elas.
Viver Sem Limites I
É sob o prisma desta Convenção, que o Governo Federal lançou o plano de ação Viver Sem Limites, em 2011. O Plano Nacional da Pessoa com Deficiência, assim intitulado, visava garantir a autonomia, a oportunidade, a convivência e a inclusão. O Plano era estruturado em quatro eixos: acesso à educação, inclusão social, acessibilidade e atenção à saúde.
No primeiro eixo, buscava-se que Estados e Municípios, bem como Distrito Federal, implementassem salas de recursos multifuncionais, criassem escolas acessíveis, implementassem o Programa Caminho da Escola e o Incluir (para acesso ao Ensino Superior), educação bilíngue e o monitoramento das crianças e adolescentes beneficiárias do Benefício de Prestação Continuada (BPC) nas escolas.
Já na inclusão social, buscava-se a implantação do BPC no trabalho, de residências inclusivas e de serviços em Centro-Dia de Referência para PcDs. Em relação à acessibilidade, havia uma estratégia específica relacionada ao antigo programa Minha Casa, Minha Vida, bem como a criação de centros tecnológicos para cães-guia, a implantação do Programa Nacional de Tecnologia Assistiva e o crédito facilitado para a aquisição de tais tecnologias.
Por fim, em relação à atenção à saúde, clamava por estratégias para a identificação precoce de deficiências, estabelecia diretrizes terapêuticas, a criação e promoção de Centros de Habilitação e Reabilitação, o transporte para acesso à saúde e atenção odontológica, bem como Oficinas Ortopédicas e ampliação das ofertas de órteses, próteses e meios auxiliares de locomoção (OPM).
Nesse sentido, o Plano funcionou de forma a organizar e criar diversas políticas públicas para pessoas com deficiência, garantindo um aporte de investimento orçamentário no valor de R$ 7,6 bilhões até 2014.
Viver Sem Limites II
O Plano novo foi lançado em outubro de 2023, no Palácio do Planalto pelo Presidente da República, Luis Inácio Lula da Silva, e pelo ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania, Silvio Almeida. A iniciativa prevê o investimento de cerca de R$ 6,5 milhões para os próximos anos, contemplando mais de 100 ações voltadas para a inclusão e promoção de pessoas com deficiência.
O plano está organizado em quatro eixos, a saber:
- gestão e participação social;
- enfrentamento ao capacitismo e à violência;
- acessibilidade e tecnologia assistiva; e
- promoção do direito à educação, à assistência social, à saúde e aos demais direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais.
Ao que parece, no entanto, o Plano não visa combater e reverter a institucionalização das pessoas com deficiência. Isso é o que diz a Human Rights Watch.
Em 2018, a Organização Não-Governamental, criada nos EUA, mas independente e autônoma, sem qualquer vinculação com o governo, que tem como pauta a inserção comunitária das pessoas com deficiência, citou a situação brasileira em seu relatório. A Human Rights Watch denunciou a institucionalização das pessoas com deficiência, ainda na infância, situação que perdura, para muitos, a vida inteira. Ou seja, essas pessoas são retiradas da comunidade para serem inseridas numa lógica institucionalista, onde podem sofrer abusos e serem negligenciadas.
A ONG chegou a visitar parte das instituições dedicadas para a internação de pessoas com deficiência e encontrou uma situação muito complexa, visto que muitos não tinham acesso ao básico para sobrevivência, como alimentação e higiene adequadas. Além disso, muitos eram amarrados nas camas e sedados para garantir o controle. Em relação às crianças, a situação era ainda mais calamitosa, uma que vez que tinham pouco ou nenhum acesso à educação. Essa situação é completamente contrária ao que determina e busca promover a Convenção. Isso porque seria dever do Brasil garantir a vida comunitária, com independência e autonomia, não uma institucionalização das pessoas com deficiência.
O Brasil possui uma sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos relativa ao caso Damião Ximenes Lopes. A vítima era uma pessoa com deficiência mental, institucionalizada na Casa de Repouso Guararapes, uma instituição psiquiátrica privada – assim como a grande maioria das que operam no Brasil – que funcionava dentro do Sistema Único de Saúde na cidade de Sobral, Ceará. Ximenes Lopes foi internado em 1º de outubro de 1999, vindo a falecer em 4 de outubro do mesmo ano, apenas três dias após a sua admissão na instituição.
Inicialmente, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos identificou a violação dos artigos 5 (Direito à Integridade), 4 (Direito à Vida), 25 (Proteção Judicial) e 8 (Garantias Judiciais) da Convenção Americana. Apesar de ter sido informado, o Estado brasileiro tomou poucas medidas em relação ao caso, que incluiu a hospitalização da vítima em condições desumanas e degradantes, a violação de sua integridade pessoal, e seu assassinato, seguido de uma leniência do poder Judiciário no devido encaminhamento do caso, bem como a sua investigação. Ximenes Lopes possuía marcas de tortura e maus tratos no dia de sua morte.
Essa sentença mostra que a institucionalização das pessoas com deficiência tende a colocar a própria integridade física em risco. Além disso, priva elas da efetivação de sonhos e desejos, bem como seu direito à autonomia. É uma forma também de praticar a exclusão e discriminação das pessoas com deficiência.
Em 2023, a ONG ainda reiterou seu compromisso anti-institucionalização das pessoas com deficiência. A Human Rights Watch aponta que o Plano Viver Sem Limites II, até o momento, não trata das pessoas com deficiência que vivem em instituições, tampouco visa reverter esse quadro absurdo da política brasileira para pessoas com deficiência. A denúncia é que o governo brasileiro falha em promover as condições para que essas pessoas vivam em comunidade. Ainda, a organização visitou novamente parte dos centros que havia visitado em 2016, base para o relatório de 2018 supracitado. Durante a pandemia, as instituições proibiram visitas de março de 2020 até junho de 2023.
O governo brasileiro visa criar Residências Inclusivas, dedicadas para até 10 pessoas com deficiência por instituição. Entretanto, ao investigar, a ONG se deparou com uma das Residências com mais de 55 pessoas. Ou seja, o tratamento individualizado, que também garante maior autonomia, em uma instituição que é credenciada pelo governo, não estava ocorrendo. O risco é de que essas Residências, sem um plano estruturante maior, venham a substituir as instituições já conhecidas. Nesse sentido, a ONG clama para que o governo brasileiro invista em efetivamente acabar com a institucionalização das pessoas com deficiência, em prol de uma maior convivência comunitária e coletiva.