No ano de 1951 Hannah Arendt publicou a obra que a colocaria de vez no seleto círculo daqueles que pensaram o século XX e deixaram elementos para pensarmos o futuro: “as Origens do Totalitarismo”. Nesse monumental livro, a filósofa judia alemã, que se autointitulava como uma pensadora política e não propriamente uma filósofa, examinou com profundidade todo o conjunto de elementos que teriam levado a Alemanha ao desastre do nazismo e o que ele significava em si em termos políticos. Ela compreendeu que estávamos diante de uma forma de domínio nova, que o tradicional pensamento político não havia ainda descoberto. Ou seja, o totalitarismo diferiria de quaisquer outras modalidades já conhecidas, como a tirania, a ditadura, a democracia e a autocracia.
Arendt percebeu que o nazismo não nasceu do dia para a noite na Alemanha, mas foi sendo gestado lentamente pelos séculos desde a formação das primeiras correntes antissemitas espalhadas pelo continente europeu e pelo imperialismo que dividiu o mundo entre nações civilizadas e nações inferiores não civilizadas. Ou seja, as nações civilizadas seriam as europeias e todas as outras que sofriam a empreitada colonial seriam de povos primitivos. Lembremos aqui do poema eurocêntrico e colonialista de Rudyard Kipling (1865-1936), autor de Mogli, o menino lobo, sobre o “fardo do homem branco” em rumar para fora da Europa com o fim de levar a civilização, como uma missão nobre e bondosa para cativos “metade demônio, metade criança”.
O imperialismo, por ser necessariamente uma empreitada que dividiu colonizadores e colonizados numa ordem de hierarquia, foi fundamentalmente racista. A ideia de superioridade europeia estava, portanto, incrustrada no imaginário do continente, principalmente em relação ao homem branco. A certeza de que a superioridade de alguns seres humanos em relação a outros era algo real provinha principalmente da vitória e da dominação. Isto é, só povos inferiores poderiam ser dominados; somente seres humanos débeis e fracos cairiam na dominação daqueles considerados mais fortes e destinados ao triunfo. Tal como diria Nietzsche (1844-1900) em sua metafísica da onipotência e da vontade ao afirmar que a maioria não deveria passar de meio para a excelência de uns poucos. Aliás, o filósofo teve inevitavelmente uma forte influência no racismo explosivo que alicerçou o nazismo.
Nietzsche considerava que seres humanos comuns, fracos e malogrados, deveriam sofrer, se preciso, para que a conformação de um grande homem pudesse ser possível. Ou seja, o sofrimento e a dor de alguns seriam completamente justificáveis se isso fosse voltado para um objetivo maior, mais importante. A enorme energia de grandeza poderia dar forma ao homem do futuro por meio da disciplina e da eliminação, aos milhões, dos fracos e patéticos.
Nietzsche não viu Hitler chegar ao poder, pois morreu muito antes, na virada do século. Mas, pavimentou o caminho para que o arianismo racista do nazismo decidisse quem poderia habitar o planeta e quem deveria morrer para criar um ser humano superior. Hannah Arendt observou o método em que essa ideologia foi propagada para que o totalitarismo nazista se transformasse na indústria de cadáveres dos campos de extermínio. O nazifascismo, de cunho nacionalista, antidemocrático, antioperário, antiliberal, antimarxista, romântico e militarista, fora construído por meio de uma ideologia racista e antissemita propagada através da mentira e da censura.
Nesse sentido, o totalitarismo, tal como Arendt percebeu, seria uma composição de uma estrutura baseada no partido único, que violentamente tiraria todos os demais do jogo político, somado a um controle massivo dos meios de comunicação, que apenas propagaria a ideologia racista, convencendo as pessoas de que nada além dessa composição ideológica existisse ou fosse verdade. Tudo isso eficazmente controlado por uma polícia secreta, responsável pelos expurgos necessários ao identificar qualquer pessoa que contrariasse a ideologia propagada. Claramente o ideário teria a personalização numa liderança populista e demagógica, que seria o dirigente da nação para um futuro glorioso de vitória e domínio. Assim, se Hitler era a ideologia personificada, Goebbels era seu porta voz.
O nazismo era, portanto, um movimento da natureza humana voltada para a construção de um ser humano perfeito. Todavia, para que esse objetivo fosse possível, os considerados imperfeitos precisavam ser eliminados. Daí a lógica do extermínio justificado e assustadoramente naturalizado no seio de uma das sociedades mais educadas e sofisticadas da Europa. A terra de Kant havia sido convencida de que Hitler estava certo e exterminou mais de seis milhões de pessoas, porque elas eram inferiores e não dignas de compartilhar a supremacia ariana.
No ano de 2018 a emissora norte-americana CNN divulgou uma pesquisa estarrecedora: um terço de sete mil entrevistados na Europa sabia muito pouco ou quase nada a respeito do Holocausto. Um em cada vinte entrevistados simplesmente nunca ouvira falar do assassinato em massa de judeus na Alemanha. Aliás, normalmente é um erro de expressão já consagrado dizer que os judeus morreram na segunda guerra mundial. Eles foram exterminados durante seu período, mas não na guerra e sim numa indústria macabra, cujo funcionamento se deu paralelamente ao front de guerra. Na Áustria, 40% dos entrevistados disseram ter pouco conhecimento sobre o assunto. Além disso, um terço dos entrevistados também afirmou que eventos destinados a relembrar o Holocausto se prestam a desviar a atenção de atrocidades atuais[1].
Em relação aos EUA, uma pesquisa feita em 2018 apontou que aproximadamente um terço da população norte-americana (31%) e em torno de quatro entre dez pessoas consideradas millenials (41%) acreditam que menos de seis milhões de judeus foram mortos no Holocausto. Já 45% dos norte-americanos não foram capazes de citar o nome de um campo de extermínio, nem sequer Auschwitz, o mais famoso de todos. Entre os millenials, assim chamadas as pessoas entre 18 e 34 anos naquele ano, a taxa foi de 49%. Durante o Holocausto existiram em torno de 40 mil campos de concentração e guetos[2].
Neste ano de 2024, teremos a segunda maior eleição de um ambiente democrático no mundo. Isto é, as eleições para o Parlamento Europeu, que só perdem em números para as eleições indianas. Se a Índia é a maior democracia do mundo em termos numéricos, a União Europeia, mesmo não sendo juridicamente um estado, mas sim uma organização intergovernamental de caráter supranacional é a segunda, envolvendo 350 milhões de eleitores. Às vésperas das eleições para o Parlamento Europeu, o partido ultradireitista alemão, Afd (Alternativ für Deutschland), possui 15% das intenções de voto. Na França, Itália, Holanda, Bélgica, Áustria e Hungria os partidos de extrema direita têm liderado as pesquisas de preferência do eleitorado. Na Polônia e na Suécia podem chegar no mínimo a um segundo ou terceiro lugar. Ao todo, as projeções indicam que o número de representantes da extrema direita no plenário do Parlamento crescerá consideravelmente, em torno de 21% a 25%, mas ainda sem tornar-se maioria decisiva.
Normalmente o comparecimento nas urnas, que é facultativo, gira em torno de 50% dos eleitores. Desta vez, as pesquisas indicam que deverá haver um maior engajamento. Todavia, o que preocupa é esse crescimento da extrema direita, que é formada principalmente por eurocéticos com tendências marcadamente anti-imigração, racistas, que dentre outros argumentos, praticamente exigem o fim da União Europeia.
Cenas preocupantes foram vistas principalmente entre os jovens alemães, que começaram a marcar encontros para entoar cânticos neonazistas cada vez mais fortes. Recentemente a revista Der Spiegel[3], uma das mais importantes da Alemanha, estampou em sua capa uma bandeira da Alemanha cobrindo sombriamente uma suástica, com o título Nichts Gelernt? (Não aprendemos nada?).
Diante desse crescimento assustador da extrema direita, que tem captado principalmente o coração dos jovens, contaminados pelos discursos simplistas e radicais que permeiam as redes sociais, um grupo de oito sobreviventes do Holocausto resolveu se manifestar. Sobreviventes de uma das páginas mais tristes da história, já muito idosos, com idade entre 81 e 102 anos, mas ainda preocupados e conscientes do futuro das próximas gerações, pediram abertamente o voto contra a extrema-direita: “Nós não conseguimos detê-los, mas vocês podem fazê-lo nos dias de hoje”.
Eles assinaram uma carta pedindo voto contra a Afd alemã, afirmando que conseguem perceber semelhanças muito fortes entre a extrema direita atual com a que ascendeu ao poder na década de 1930. Na carta aberta aos eleitores alertaram: “todos nós somos a democracia, jovens ou velhos. Avós e netos. Judeus, cristãos, muçulmanos, ateus. Cabe a nós todos fazermos deste país e da Europa o que sonhamos. Milhões já saíram às ruas este ano contra o extremismo de direita, o que nos dá esperança. Uma Europa unida e pacífica é um presente maravilhoso para todos nós. Nós todos conseguimos lembrar de um tempo em que isso era algo impensável (…) para milhões de vocês, as eleições europeias são as primeiras de suas vidas. Para muitos de nós, poderá ser a última (…) da última vez que a extrema direita chegou ao poder, ainda éramos jovens, alguns de nós crianças. Eles prometeram tornar esse país grande novamente. Prometeram que a Alemanha estaria em primeiro lugar e encontraram alguém para pôr culpa por tudo o que deu errado: os judeus, os (povos nômades) sint e rom, homossexuais, pessoas com deficiência e democratas convictos. Passo a passo, milhões de pessoas foram desprovidas de seus direitos, até lhes tirarem o direito à vida”[4].
Como nos ensinou Hannah Arendt, a extrema direita não chegou ao poder por meio de um golpe, mas sim por meios democráticos. Ela usou da mentira, da propaganda e do discurso de ódio para contaminar a alma daqueles que se sentiam frustrados ou infelizes com as coisas do mundo, dando-lhes culpados objetivos, inocentes que nada tinham que ver com os reais problemas estruturais do desemprego, da desigualdade e das dificuldades do dia a dia.
A carta escrita por esses oito sobreviventes do horror nazista foi intitulada de Nie wieder ist jetzt; isto é, o nunca mais é agora. Impedir a extrema direita de transformar a Europa novamente num campo de ódio e guerra é um dos objetivos desta carta. A ausência da memória do que aconteceu durante o nazismo, a lacuna nos jovens em relação à compreensão do que ali realmente ocorreu, os tornou presas fáceis para um mundo onde a extrema direita não precisa mais queimar livros ou colocar a Gestapo para verificar quem fala o quê, basta uma postagem mentirosa na internet, basta a viralização de uma fake news, acusando um grupo de pessoas ou a própria democracia para convencer os frustrados e infelizes de que os problemas estruturais socioeconômicos não são complexos e que seriam facilmente resolvidos se os imigrantes fossem banidos e grupos de desvirtuados ou degenerados fossem simplesmente calados. Como disse uma vez Primo Levi, sobrevivente do Holocausto, cada tempo tem seu fascismo adormecido. É preciso educar e lutar para que ele não acorde e volte a fazer sofrer.
Assim, para que o nunca mais seja agora, recordemos a lição de Hannah Arendt: o nazifascismo não aconteceu do dia para noite, ele foi uma longa e sombria gestação, subestimada e perigosa. Que a Europa acorde e o mundo também, pois a democracia está em risco e o futuro também.
[1] A shadow over Europe: Anti-Semitism in 2018. Disponível em <http://cnn.it/2Qr3Rbw>.
[2] A pesquisa na íntegra está disponível em https://www.claimscon.org/study/.
[3] Der Spiegel de 18 de maio de 2024.
[4] Disponível em https://www.dw.com/pt-br/sobreviventes-do-holocausto-pedem-voto-contra-ultradireita/a-69269863; último acesso em 07 de junho de 2024.