No ano de 1979 a Organização das Nações Unidas aprovou a Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, também conhecida pela sua sigla em inglês, CEDAW. Ela foi ratificada pelo Brasil em 1984, tendo sido promulgada internamente pelo Decreto n° 4377 de 13 de setembro de 2002, entrando em vigor em 16 de setembro de 2002. Ou seja, faz parte do ordenamento jurídico brasileiro e tem uma natureza jurídica de norma supralegal. Isso significa que ela está, na hierarquia do ordenamento jurídico brasileiro, apenas abaixo da Constituição Federal de 1998 e acima de toda a normativa infraconstitucional que organiza e estrutura juridicamente o Brasil. Trata-se, portanto, de uma norma importante, que não pode ser ignorada e tampouco desconsiderada quando demais legislações tratam do tema dos direitos referentes à proteção da mulher.
O cerne dessa normativa encontra-se na obrigação de eliminar a discriminação contra a mulher em todas as suas facetas sociais e econômicas, assim como também buscar promover a igualdade. Nesse sentido, a discriminação significa normativamente toda distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo e que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo, exercício pela mulher, independentemente de seu estado civil, com base na igualdade do homem e da mulher, dos direitos humanos e das liberdades fundamentais no campo político, econômico, social, cultural e civil ou em qualquer outro campo. Assim, a discriminação tem como estrutura básica em suas manifestações a desigualdade.
A Convenção dispõe que os direitos reprodutivos das mulheres devem estar sob o controle delas próprias e que o estado deve assegurar que as escolhas delas jamais sejam feitas sob qualquer tipo de ameaça ou coação, não se tornando, também, prejudiciais em relação às oportunidades sociais e econômicas. Isto é, que suas decisões em relação aos direitos reprodutivos não impactem em suas carreiras profissionais e em suas vidas como um todo de maneira negativa, injusta ou desigual. Aliás, importante ressaltar que a Convenção reconhece que há situações e experiências às quais as mulheres estão sujeitas que devem ser eliminadas pelos estados ou, ao menos, serem objeto de combate, como por exemplo, o estupro, o assédio sexual, a exploração sexual e outras formas de violência.
Nesse diapasão, a própria Convenção reconhece que apenas a igualdade formal não é suficiente, afinal, as estruturas sociais patriarcais espalhadas pelo mundo sempre colocaram a mulher numa situação de periferia em relação ao homem. Deste modo, ela mesma sugere a criação de medidas afirmativas para que a promoção e afirmação dos direitos sejam realmente concretas. Desta maneira, não bastam apenas legislações repressivas para diminuir e combater a desigualdade entre homens e mulheres, mas também ações que promovam a construção de uma igualdade. Portanto, discriminações positivas são necessárias como medidas compensatórias para que a redução da desigualdade seja possível.
A própria Convenção criou um mecanismo de monitoramento em suas disposições finais. Trata-se do Comitê sobre a Eliminação da Discriminação contra a Mulher, que foi aperfeiçoado pelo Protocolo Facultativo à Convenção de 06 de outubro de 1999 ao assegurar o direito de petição individual em relação às violações aos direitos nela previstos. Nesse sentido, uma pessoa ou um grupo de pessoas podem acionar o Comitê em caso de violações. Além disso, o Comitê tem também a função de examinar a situação dos direitos das mulheres por meio de relatórios periódicos, mais abrangentes, que objetivam dar um panorama geral dos avanços e retrocessos que cada país parte da Convenção fez em relação aos direitos previstos nela.
Em maio deste ano o Brasil passou por uma revisão junto ao Comitê da CEDAW. Essa revisão, aliás, é feita com base em informações da ONU, um relatório produzido pelo próprio Brasil e por meio de dados e contribuições obtidas junto à sociedade civil. Com base nessa revisão, o Comitê fez inúmeras recomendações ao Brasil em relação à situação dos direitos de meninas e mulheres.
No ano de 2023 mais de 12,5 mil meninas entre 8 e 14 anos foram mães no Brasil, dado que dimensiona o tamanho da violência a que são submetidas no país. A legislação penal brasileira, aliás, compreende que o ato sexual com menor de 14 anos configura estupro presumido e não deve ser relativizado. Vale aqui anotar que esse é o entendimento válido conforme a Súmula 593 do Superior Tribunal de Justiça, que dispõe que o crime de estupro de vulnerável se configura com a conjunção carnal ou prática de ato libidinoso com menor de 14 anos, sendo irrelevante eventual consentimento da vítima para a prática do ato, sua experiência sexual anterior ou existência de relacionamento amoroso com o agente. Portanto, independentemente de qualquer fator volitivo, as 12,5 mil ocorrências podem ser todas classificadas como casos de estupro de vulneráveis.
De qualquer maneira, o relatório deste ano foi bastante abrangente. Alguns elogios foram feitos, como por exemplo os destinados a criação da lei n° 14.192 no ano de 2021, em relação ao combate à violência contra a mulher, a lei n° 14.132 de 2021, que criminaliza o assédio e a lei n° 13.104 de 2015, que considera o feminicídio como circunstância agravante do crime de homicídio quando cometido contra mulher em razão de seu gênero.
Contudo, críticas muito preocupantes foram feitas. Dentre elas, o Comitê observou que a Convenção, apesar de ser norma integrante do ordenamento jurídico nacional e ter um status hierárquico de norma supralegal, ainda é muito desconhecida principalmente pelas mulheres, o que implica numa restrição à consciência de seus direitos e dos recursos disponíveis para os reivindicar, particularmente maior em relação às mulheres que vivem na pobreza, na zona rural, mulheres com deficiência, indígenas, quilombolas, afrodescendentes, migrantes, lésbicas, bissexuais, transgênero e intersexuais. Nesse sentido, o Comitê recomendou ao Brasil que faça programas de conscientização acerca dessa normativa e dos direitos nela estabelecidos entre as mulheres, inclusive com linguagem acessível e com traduções em línguas indígenas. No mesmo diapasão, pede que o país melhore o acesso à justiça das comunidades rurais, quilombolas, indígenas, afrodescendentes, de deficientes para que isso também não seja mais uma restrição à afirmação dos direitos.
Uma importante recomendação do Comitê gira em torno dos estereótipos de gênero, que minam a construção da igualdade entre homens e mulheres. Em relação a isso, o Comitê apontou que existe no Brasil um ressurgimento de um fundamentalismo religioso, aliado a narrativas conservadoras, que discriminam as mulheres e impedem a igualdade de gênero. É preocupante que nesse aspecto o Comitê tenha notado um aumento da misoginia e do ódio contra as mulheres, que fomentam padrões socioculturais marcados pela violência e discriminação enraizados nas estruturas patriarcais.
Nesse sentido, o Comitê registrou com enorme preocupação o aumento acentuado de feminicídios, casos de estupro, agressão e outros crimes sexuais, violência doméstica, bem como desaparecimento de mulheres e meninas cada vez mais contra afrobrasileiras. Além disso, registrou que faltam em número e estrutura Unidades de Acolhimento ou abrigos que recebam mulheres em situação de violência de gênero e que precisam, na maior parte das vezes, sair de casa por ameaças e risco de morte, inclusive acompanhadas de seus filhos.
De acordo com o relatório houve uma escalada de assassinatos de mulheres indígenas e adolescentes no estado do Mato Grosso do Sul. Aliás, o Brasil como um todo tem registrado um alto nível de violência de gênero, incluindo assassinatos contra mulheres lésbicas, bissexuais, transgêneros e intersexuais, particularmente afrodescendentes. O Brasil é o estado com maior número de pessoas trans e queer assassinadas globalmente.
Infelizmente o relatório também apontou que o Brasil tem apresentado inúmeros casos de mulheres e meninas exploradas para a prostituição e trabalho forçado em regiões onde estão sendo implementados grandes projetos de desenvolvimento em zonas turísticas do nordeste do país, resorts e zonas costeiras. Desta maneira, é preciso urgentemente ampliar as medidas e o combate ao tráfico e exploração sexual de meninas e mulheres, uma chaga que parece nunca acabar no país.
Em relação à educação de meninas e mulheres, o Comitê da CEDAW apontou que o Brasil tem ainda apresentado altas taxas de evasão escolar, particularmente em zonas rurais, indígenas, quilombolas e entre afrodescendentes devido à pobreza, ao trabalho doméstico não remunerado, à gravidez precoce e ao casamento infantil. Há também a preocupação no que toca as meninas e mulheres com deficiência que ainda sofrem persistente discriminação nas instituições de ensino.
Nesse diapasão, o relatório foi contundente ao afirmar que têm aumentado os casos de discurso misógino e violência de gênero nas escolas, principalmente no bojo de propostas legislativas que surgem para proibir explicitamente o ensino ou a divulgação de conteúdos relacionados à educação de gênero e sexualidade, com o objetivo de proibir uma suposta “ideologia de gênero” ou “doutrinação” nas escolas municipais e estaduais. Vale aqui dizer que as leis e diretrizes educacionais nos níveis federal e estadual exigem educação sexual apropriada para a idade e instrução sobre igualdade de gênero. Ou seja, as propostas legislativas que surgem ferem as leis e diretrizes educacionais.
Com grave e máxima preocupação, o Comitê apontou uma tendência de ampliação das restrições burocráticas para o acesso ao aborto legal e uma criminalização em expansão. Nesse sentido, observou que o país exige a aprovação de um médico e de pelo menos três membros de uma equipe multidisciplinar para acessar o aborto e que, diante disso, as mulheres enfrentam inúmeras barreiras adicionais não estabelecidas em lei para impedir o acesso ao aborto legal. Isso, inclusive, relaciona-se ao aumento acentuado da taxa de mortalidade materna, afetando desproporcionalmente mulheres negras e indígenas residentes em áreas rurais e nas regiões Norte e Nordeste do país.
Diante disso, o Comitê, de acordo principalmente com as metas 3.1 e 3.7 dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), com o escopo de reduzir a mortalidade materna global e garantir o acesso universal aos serviços de saúde sexual e reprodutiva, recomendou que o Brasil retire do campo penal o aborto em todos os casos, garantindo que mulheres e meninas tenham acesso adequado ao aborto seguro e aos serviços pós-aborto para garantir a plena realização de seus direitos, sua igualdade e sua autonomia econômica e corporal para fazer escolhas livres sobre seus direitos reprodutivos. É importante que se diga que o Comitê não tem como objetivo patrocinar o aborto e tampouco incentivá-lo, mas sim fortalecer medidas de saúde e controle público para combater a alarmante taxa de mortalidade materna, inclusive melhorando o acesso aos cuidados pré-natais e pós-natais, os serviços obstétricos de emergência prestados por parteiras qualificadas, abordando, fundamentalmente e de maneira educativa, as causas que levam a complicações obstétricas, à gravidez precoce e os perigos que envolvem os abortos inseguros e clandestinos.
Desta maneira, tomando a complexidade e a dimensão do país, o Comitê da CEDAW apontou que o Brasil deve observar nos sistemas de saúde as práticas tradicionais indígenas e seus saberes ancestrais como forma de ampliar o acolhimento e aumentar o nível de confiança entre as meninas e mulheres indígenas no acesso aos seus direitos.
Dentre tantas recomendações, é necessário que o Brasil leve a sério o seu compromisso jurídico internacional assumido perante todos os demais estados do mundo de que é um país que quer atingir a igualdade entre homens e mulheres e reduzir a discriminação contra meninas e mulheres. Não se trata de uma disputa ideológica entre esquerda ou direita, entre essa ou aquela orientação religiosa, mas sim de cumprir com seu ordenamento jurídico. Nenhum fundamentalismo religioso ou proselitismo político de qualquer espécie pode ignorar uma Convenção, que é, no ordenamento jurídico brasileiro, uma norma de natureza supralegal e, portanto, hierarquicamente superior a qualquer projeto de lei de caráter ordinário. Aliás, vale relembrar que o Brasil incorporou à sua ordem jurídica os principais instrumentos internacionais de direitos humanos[1], assumindo um compromisso com um processo civilizatório em sintonia com a Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948, que emergiu diante da reconstrução do mundo após os horrores do nazifascismo. Ninguém obrigou o Brasil a se comprometer internacionalmente e transformar a normativa internacional em direito interno. Foi o Brasil que assim decidiu, livremente, fazer. Desta maneira, que cumpra, que observe e que não dê espaço para retrocessos em nome de bravatas ou articulações políticas, que ignoram a grave realidade em que vivem meninas e mulheres, imersas em violência diária e humilhações constantes nesse país.
Qualquer projeto de lei que esteja em contradição aos direitos estipulados pela Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher de 1979 viola a sua supralegalidade no ordenamento jurídico brasileiro e a própria Constituição Federal de 1988 em relação ao rol de direitos fundamentais que amplia em seus art. 5°, §§ 2° e 3°. Além disso, em relação aos casos de aborto legal já previstos em lei, estamos diante de direito e garantia individual das meninas e mulheres inderrogável por conta do art. 60, §4°, IV da Constituição Federal. Ou seja, assim como a imputabilidade penal, os casos de aborto legal só podem ser ampliados e não reduzidos, por se tratar de uma das cláusulas pétreas que o constituinte originário determinou no ordenamento jurídico brasileiro.
Que o Brasil entenda que respeitar a CEDAW é, além de proteger a vida das meninas e mulheres brasileiras, lutar contra violências estruturais e históricas, humilhações cruéis, injustas e degradantes às quais elas sempre foram submetidas, reafirmar o pacto brasileiro com a promoção e afirmação dos direitos humanos e a sua inerente natureza civilizatória. É isso que nos separa da barbárie.
[1] O Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais; o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos; a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial; a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher; a Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes; a Convenção sobre os Direitos da Criança; a Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e Membros de suas Famílias; a Convenção Internacional para a Proteção de Todas as Pessoas contra o Desaparecimento Forçado; e a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. O Brasil ainda não é parte da Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e Membros de suas Famílias; das demais citadas é.