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Acervo Temático: Eleições americanas, democracia e o que o Brasil tem a ver com isso

Acervo Temático: Eleições americanas, democracia e o que o Brasil tem a ver com isso

Eleições americanas e Democracia: Entrevista com Guilherme Cardoso de Moraes

 

Aquela que é considerada a maior e mais antiga democracia do Planeta está às voltas com um enorme dilema político. Recentemente a Suprema Corte dos EUA liberou Donald Trump para disputar as próximas eleições presidenciais. E isto em um contexto no qual, de acordo com as últimas pesquisas, o ex-presidente lidera as intenções de voto, com 48% contra 43% para o atual presidente Joe Biden[1]. E no momento em que esse texto é escrito diversas primárias estão sendo realizadas nos estados americanos e os resultados e projeções apontam vitória inquestionável de Trump para o Partido Republicano e de Biden para o Partido Democrata, reeditando para as próximas eleições o embate que se deu em 2020.

Ora, se o pré-candidato que lidera as intenções do voto popular está vencendo as primárias do partido, que o viabilizam como candidato oficial, e está liberado pela mais alta Corte do país para disputar as eleições, onde está a suposta ameaça à democracia apontada por analistas e cientistas políticos, poderia se perguntar o leitor. Afinal, democracia não seria a vontade soberana do povo, gostemos ou não do candidato? A resposta a esta questão é mais complicada do que parece. Vamos entender um pouco melhor isso?

Para discutir a eleições americanas, seu impacto no Brasil e no mundo e as perspectivas para a democracia em geral, a Fundação Podemos inicia uma série de textos e entrevistas.

Nesta edição conversamos com o cientista político da USP, Guilherme Cardoso de Moraes.

 

Felipe Calabrez: De acordo com algumas pesquisas recentes, o ex-presidente americano Donald Trump lidera as intenções de voto para as próximas eleições presidenciais, assim como tem liderado de maneira inconteste as primárias internas do Partido Republicano. Porém, ao mesmo tempo em que aparece como favorito dentro do seu partido e entre eleitores em geral, Trump é apontado por muitos analistas e estudiosos como uma grande ameaça à democracia. Você o vê como ameaça à democracia americana. Se sim, por quê?

 

Guilherme Cardoso de Moraes: Trump é uma ameaça à democracia porque não é democrático. É importante que se diga isso. A democracia comporta e precisa da pluralidade de ideologias e projetos políticos, mesmo que, por vez, sejam antagônicos. Quero dizer com isso que é próprio do jogo democrático que diferentes ideologias e agendas sejam postas em disputa durante as campanhas eleitorais, ou pela oposição durante os governos. Projetos mais à esquerda ou mais à direita, mais redistribuição ou mais livre comércio, Estados maiores ou mínimos e por aí vai não são, a priori, um problema. A democracia é justamente uma forma de escolhermos, periodicamente, entre essas diferentes plataformas políticas. Não há crise da democracia quando um ou outro partido sai vencedor das urnas e, mesmo quando ocorrem mudanças entre essas plataformas em disputa, isso pode ser um indicador da saúde de uma democracia e não sintoma de sua ruína.

O problema é que Trump ataca abertamente os valores e instituição que alicerçam a democracia. Apenas para citar dois exemplos: durante as eleições presidenciais de 2016, Trump ameaçou prender sua concorrente, Hillary Clinton, caso fosse eleito. Em 2020, já presidente e concorrendo à reeleição, Trump levantou dúvidas se aceitaria o resultado das eleições, caso saísse derrotado contra Joe Biden. A democracia convive com a pluralidade de ideias e posições políticas, mas não pode conviver com a violência e com ameaças, esta não é a linguagem da democracia, mas é a linguagem política de Donald Trump.

 

Felipe: O cientista político Adam Przeworski inicia seu livro recente com a seguinte afirmação: “ALGUMA COISA ESTÁ ACONTECENDO. Sentimentos “antiestablishment”, “antissistema”, “antielite”, “populistas” explodem em democracias amadurecidas”. Nos parece que o fenômeno Trump se encaixa perfeitamente ao que Przeworski aponta na frase acima. Se isto for verdade, podemos ver Donald Trump mais como resultado, como efeito de problemas que já existem no funcionamento da democracia americana, ou, ao contrário, devemos vê-lo como causa primordial dos problemas?

Guilherme:Me parece que o trunfo de Trump é que ele foi capaz de capitanear, dar voz e oferecer uma identidade política para uma série de incômodos e ressentimentos que já estavam presentes e dispersos na sociedade americana e que têm origens e causas muito variadas, como xenofobia, desempenho econômico aquém do esperado, aumento da concorrência pelos postos de trabalho, desigualdade e pobreza crescentes, apenas para citar alguns.

 

Felipe: Os americanos sempre fizeram muita reverência aos seus chamados “pais fundadores”, que são os artífices dos princípios constitucionais daquele país. Uma de suas grandes preocupações sempre foi evitar a chamada “tirania da maioria”. Poderia nos explicar da maneira mais simples possível em que consistiria essa expressão?

Guilherme: A democracia moderna caminha sobre duas pernas, como se dois princípios regessem a democracia como nós conhecemos atualmente. De um lado, temos a soberania popular, do outro, os direitos individuais. A primeira garante poder ao demos, isto é, o povo de uma democracia, para decidir sobre as questões públicas relevantes. Poderíamos dizer que a soberania popular carrega a ideia de autonomia política: uma comunidade de cidadãos que vivem sob as leis que eles mesmos se impuseram através de um processo coletivo de tomada de decisão. Já os direitos individuais são um conjunto de direitos que os indivíduos possuem independentemente da vontade da maioria. Estão contidos nesse conjunto alguns direitos comumente identificados com a tradição política do liberalismo, tais como as liberdades de consciência, de pensamento, de associação, de expressão, dentre outros. Juntos, eles “criam” e protegem um âmbito de atuação da vida que não pode ser violada pelo Estado ou pela vontade da maioria. Trata-se de direitos que pertencem aos indivíduos e não à comunidade política.

O esforço dos Federalistas foi para oferecer uma engrenagem institucional capaz de equilibrar essas duas demandas, através de um sistema de “freios e contrapesos” que envolve, entre outras coisas, ideias comuns para nós, como a separação dos poderes e as garantias associadas à ideia de um “império da lei”.

Assim, a expressão “tirania da maioria” diz respeito a uma situação em que uma maioria, seja ela numérica ou política, exerce seu poder sem esbarrar em qualquer limite, prejudicando ou oprimindo os interesses, direitos ou opiniões da minoria. Poderíamos dize que é uma situação de desequilíbrio entre os princípios da soberania popular e direitos individuais.

 

Felipe: Na sua visão, a agenda de intolerância e truculência que Trump e boa parte da extrema direita global defende teria possibilidade de êxito no longo prazo, isto é, podemos vislumbrar a possibilidade de uma mudança no funcionamento da dinâmica das democracias liberais tais como as conhecemos?

Guilherme: A democracia como nós experienciamos hoje surgiu em um momento recente da nossa história política, de modo que boa parte da nossa história não é democrática. A democracia é uma escolha e não algo do qual não podemos viver sem. Dizer que outras formas de organização da vida política são possíveis não é o mesmo que dizer que são igualmente desejáveis, ou mesmo superiores ao modelo democrático como conhecemos. Mas, como uma escolha, a democracia está constantemente sob avaliação, e sua estabilidade depende de os cidadãos acreditarem que essa escolha segue sendo justificada no presente. Reafirmar essa escolha no presente é reafirmar os valores e práticas de um regime político democrático e de uma sociedade democrática, uma sociedade de cidadãos livres e iguais, que se reconhecem assim e reconhecem também os seus concidadãos, e preservar as instituições que dão sustentação a esse modo de organização da vida política.

O que estamos assistindo com Trump – e com o que você chamou de uma “extrema direita global” – é uma onda de políticos que vem atacando esse modo de vida democrático e convencendo as pessoas de que, no presente, essa escolha não se justifica mais, sem, contudo, oferecer uma alternativa melhor. Reiterando, a democracia depende que as instituições democráticas funcionem bem e de maneira segura, mas depende também que os cidadãos confiem na democracia. A mudança que preocupa é o convencimento de um número cada vez maior de cidadãos de que a democracia não é mais a melhor alternativa. À medida que esse grupo se avoluma, isso pode alterar significativamente a estabilidade das democracias.

 

Felipe: Nos últimos anos tem havido uma avalanche de publicações de cientistas políticos que falam em crise da democracia. Obviamente existem diversas visões e abordagens e é muito difícil resumir tantas análises, mas seria possível tirarmos algum diagnóstico comum dessas tantas análises? Se sim, qual seria?

Guilherme: Você mencionou anteriormente a abertura do livro do Adam Przeworski, onde o autor afirma que “alguma coisa está acontecendo”. Pode parecer trivial dizer isso, mas essa é a constatação comum. Se lembrarmos, a virada da década de 1980 para 1990, Fukuyama escreveu um célebre, e polêmico, ensaio onde afirmava o fim da história. Na ocasião, o fim da história significava o triunfo da democracia liberal sob os seus adversários do século XX, os autoritarismos de direita e de esquerda. A democracia liberal, então, seguiria avançando a passos largos, sem um adversário que lhe ameaçasse. Dizer que “alguma coisa está acontecendo”, atualmente, é buscar identificar na nossa história política dos últimos vinte anos aquilo que representa ameaça à continuidade do regime democrático, pelo menos com conhecemos. Mas, para além dessa constatação de partida, há pouco consenso entre os cientistas políticos acerca dos diagnósticos da crise.

Embora muitos concordem que há uma crise em curso, os cientistas políticos de todo o mundo vêm buscando identificar as causas e vêm oferecendo respostas e diagnósticos muito diferentes entre si. Posso listar sumariamente apenas alguns, a título de exemplo. Alguns diagnósticos focam nas transformações econômicas pós crise de 2008. Wolfgang Streeck acredita que a crise da democracia é, no fundo, parte de uma crise do capitalismo. Castells também participa do debate e acredita que o cerne da nossa crise atual está na quebra da confiança entre governados e governantes, entre cidadãos e elites políticas. Para Castells, então, estaríamos enfrentando uma crise de representatividade. Runciman, que encheu prateleiras de livrarias com o seu “Como a democracia chega ao fim”, acrescenta ao debate um olhar para as novas tecnologias e mídias digitais de massa (como WhatsApp, Facebook, Instagram etc.) e o modo como elas transformaram a forma, o conteúdo e a velocidade do debate público a partir de uma lógica própria do universo digital, como os conteúdos virais, a utilização de boots e a racionalidade algorítmica, mudanças que transformaram a internet em um terreno fértil para a propagação das fake News. Não posso deixar de mencionar o que talvez tenha sido o diagnóstico mais popular dentro dessa vasta bibliografia, que é apresentado em “Como as democracias morrem”, de Levitsky e Ziblatt. Os autores chamam a atenção para o papel das regras informais em uma democracia. Sem questionar o papel fundamental das regras escritas e institucionalizadas, Levitsky e Ziblatt defendem que a sobrevivência das democracias exige também o reconhecimento e a observância de regras informais. Vou exemplificar a partir do que os autores chamam de “tolerância mútua”. A tolerância mútua significa que devemos reconhecer que os nossos adversários políticos têm os mesmos direitos que nós de existir, competir e governar caso isso não coloque em risco o regime democrático e a institucionalidade democrática. Não reconhecer o resultado das urnas, ou ameaçar prender os seus adversários, é uma forma de violar esta regra informal de tolerância da qual falam Levitsky e Ziblatt.

Esses exemplos que citei, definitivamente não esgotam o tema, mas ilustram a diversidade dos diagnósticos que se multiplicam a cada dia na literatura especializada. Não acredito que esses diagnósticos sejam excludentes, ao contrário, eles nos mostram que o cenário que se apresenta para nós tem diferentes camadas e que, por vez, se não há unidade, acredito que as abordagens e diagnósticos, em grande medida, se complementam.

 

Felipe:  Estima-se que cerca de 58 países realizarão eleições no ano de 2024. Na sua visão, de um ponto de vista global, a democracia vai bem e tende a se fortalecer e se alastrar ou, ao contrário, está sob grande ameaça? O copo está meio cheio ou meio vazio?

Guilherme: Você utilizou a metáfora do copo, me perguntando se vejo ele meio cheio ou meio vazio. Vou responder me valendo de outra imagem, a de um sinaleiro no cruzamento. Nesse momento, acho que a luz amarela está ligada e precisamos redobrar a atenção para evitar um acidente adiante. A democracia está sob ameaça, mas não está condenada de morte. Estamos em condições de reverter essa situação, mas isso dependerá do que faremos agora. As instituições democráticas têm mostrado sua força e resistido aos ataques que sofreram, e continuam sofrendo, de líderes como Donald Trump e Jair Bolsonaro, seja através de declarações e ameaças bradadas pelos ex-presidentes dos Estados Unidos e do Brasil, respectivamente, ou pela forma como as instituições estão processando e punindo os participantes dos episódios de invasão ao Capitólio, em 2021, e a invasão do Congresso e do STF, em 2023.

Embora a força das instituições seja um aspecto fundamental para a estabilidade e manutenção de um regime democrático, só podemos imaginá-las fortes se ainda representarem valores e práticas compartilhadas na sociedade. Isto é, é preciso que a democracia não seja um conjunto de prédios reunidos na Praça dos Três Poderes, em Brasília, mas que ela ecoe nas crenças e nas práticas dos cidadãos em todo o país. Para isso, não me parece ter muitos caminhos: é preciso que os cidadãos, aqui ou alhures, se convençam de que a democracia ainda vale a pena e que não há, nesse momento, alternativa melhor. É preciso que a cada eleição os cidadãos punam, nas urnas, partidos e candidatos que atacam e estão dispostos a abrir mão da democracia.

 

Guilherme Cardoso de Moraes é doutorando (bolsista FAPESP) em Ciência Política pela USP e mestre em Ciência Política pela mesma instituição. Graduado em Ciências Sociais (bacharelado e licenciatura) pela Universidade Estadual de Londrina. Atua no campo de Teoria Política, com ênfase nos seguintes temas: teorias da justiça social, teorias da democracia e desobediência civil.

 

 

[1] Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2024/03/eua-trump-tem-48-das-intencoes-de-voto-ante-43-de-biden-diz-pesquisa.shtml

 

Observação: Esse conteúdo não representa, necessariamente, a opinião da Fundação Podemos.

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