Não é novidade alguma que nos discursos e debates existem estratégias que vão além do próprio exercício argumentativo. Todo debate político envolve uma técnica, uma prévia análise do adversário para que pontos fracos e fortes sejam detectados. Num sentido maior, campos políticos, ideológicos ou correntes sempre buscaram dar predicados aos seus adversários para que deles se diferenciassem e, ao mesmo tempo, os enfraquecessem, acusando-os de serem os culpados por todos os problemas existentes em determinado contexto. Termos normalmente generalizantes sempre foram criados para confundir e também desmoralizar. Na prática muito pouco úteis, mas com o condão de fabricar a diferença e estimular a animosidade entre os contendores.
De qualquer maneira, políticos com pouco a dizer ou que simplesmente defendiam absurdos para convencer eleitores a lhes darem o poder sempre foram prolíficos em estratagemas de discurso e debate. Maliciosos, quase sempre seguiram o mesmo padrão: criar inimigos objetivos, generalizá-los, de modo a dividir a sociedade entre nós e eles; oferecer soluções simplistas e fáceis para problemas complexos e difíceis; dizer absurdos ou escatologias para polemizar e ter o nome fixado na cabeça do eleitor; dentre tantas outras técnicas.
Arthur Schopenhauer (1788-1860), afeito às perturbações do espírito e não muito esperançoso com os rumos da humanidade, escreveu, por volta do ano de 1831 um famoso ensaio intitulado Die Kunst, Recht zu behalten, que em português foi traduzido para “A arte de ter sempre razão” ou “Como vencer um debate sem precisar ter razão”. Sua pequena obra se tornou famosa, principalmente por se tratar de um manual de patifaria intelectual; ou melhor, de desonestidade intelectual. Ao escrever esse livro, Schopenhauer não queria que ele servisse como um guia para desonestos e falastrões, mas sim que ele servisse de defesa para o público. Isto é, quando as pessoas estivessem presenciando um debate, estariam armadas do conhecimento dessas técnicas para que logo pudessem identificar um charlatão, um falsário, desmascarando-o e não apostando nele, casso estivesse concorrendo a qualquer cargo ou posição.
Schopenhauer chamou de dialética erística a arte de discutir de modo a vencer. Ou seja, não é a discussão para se chegar à verdade, tampouco duas teses contrárias em si sendo postas à prova para se construir uma síntese; trata-se da arte de estar sempre com a razão, independentemente da verdade. De acordo com o filósofo de Frankfurt, a erística não foi algo que se desenvolveu teoricamente, no sentido de ser analisado, testado, sistematizado e organizado, mas sim algo oriundo da perversidade natural do gênero humano. Para ele, se ela não existisse e se no fundo fôssemos todos honestos, em todo e qualquer debate tentaríamos fazer a verdade aparecer, sem termos a preocupação de estarmos certos ou de que ela estivesse adequada à nossa opinião, nossos desejos e vontades. Todavia, nossa vaidade é congênita e nos impede de admitirmos que aquilo que num momento inicial sustentávamos como verdade, na realidade é falso. Mais do que isso, ela nos impede de admitir que nosso adversário, ou pelo menos aquele que vemos assim, possa estar certo.
Schopenhauer era sabidamente um pessimista e um filósofo que não se dava muito bem com Hegel e Kant. Aliás, muitos sustentam que ele é um dos precursores do existencialismo, que viria a influenciar autores como Kierkegaard (1813-1855), cujo pessimismo schopenhaueriano reconheceu na abordagem sobre a angústia da existência. De qualquer maneira, não é nosso objetivo discutir se os estratagemas usados para dissuadir o público e vencer um debate a qualquer custo têm origem na nossa natureza. Mas, é importante pensar que eles acontecem e são usados de alguma maneira em cada época, com roupagens e atualizações, que normalmente possam derivar dos fenômenos instrumentais de comunicação presentes. Afinal, quando Schopenhauer pensou sobre a dialética erística, ele não conhecia a televisão, tampouco a internet. Sem pretender esgotar todos os estratagemas pensados por ele, selecionamos alguns para pensarmos na atualidade e de como podem ou estão sendo utilizados nas redes sociais, por exemplo.
De acordo com o filósofo alemão, para vencer um debate a qualquer custo, o debatedor deve intencionalmente usar premissas falsas para seu argumento. Afinal, é possível elencar uma série de premissas falsas sobre um argumento verdadeiro, mas não é possível delas se chegar a algo verdadeiro. Desta forma, o debatedor pode manipular o quanto quiser premissas que confundirão seu adversário.
Em um debate honesto, perguntas feitas de modo rigoroso e formal são adequadas para organizar o pensamento. O debatedor que quer vencer deve, então, fazer perguntas em desordem, para propositalmente confundir não somente o adversário, mas quem também está presenciando o debate. Ou seja, é o oposto do que prega o método socrático. Quanto mais confusão, menos atenção para o argumento em si, mais atenção para a pessoa que fala. Se ela for bem apessoada ou carismática, melhor ainda.
Uma outra estratégia muito eficaz é provocar a raiva no adversário, para que, uma vez nervoso, não consiga mais raciocinar corretamente e perceber a sua própria vantagem. Quanto mais nervoso o adversário estiver por conta de algo que lhe foi injustamente provocado, mais perdido ele ficará. Se responder com violência, melhor ainda. Para Schopenhauer, vale ainda apontar, que quanto mais insolente for o debatedor, mais arrogante e prepotente ao provocar injustamente seu adversário, melhor resultado ele terá. O tratamento injusto somado à insolência de quem o pratica, normalmente é uma receita infalível para tirar a serenidade de qualquer adversário. O público não prestará mais atenção em qualquer argumento, pois ficará embevecido com o teatro que assistirá.
Para vencer um debate é preciso também construir manipulações semânticas. Ou seja, é necessário que se dê nomes que não tenham nenhum rigor formal, mas que provoquem indignação no adversário ou simplesmente o faça perder tempo em se justificar. Por exemplo, chamar de fascista todo e qualquer adversário ou de comunista. Não importa qual o tema que esteja em debate, mas sim que seja incluso dentro de um receituário adjetivado de fascista ou comunista. Afinal, quem precisa se explicar já perdeu a vantagem em qualquer debate.
Provocar uma alternativa forçada para o adversário também é uma estratégia muito eficaz para vencer desonestamente um debate. Ao invés de discutir o tema do aborto profundamente, perguntar ao adversário se ele é temente a Deus ou não e depois perguntar sobre em que casos ele é a favor do aborto. É uma boa estratégia que levará o adversário a praticar alguma contradição. Trata-se de uma armadilha eficiente, pois força o adversário a nela se enrolar, como numa teia de aranha.
Além dessas, outra estratégia muito importante para se vencer o debate, ou pelo menos passar essa impressão para o público é proclamar sempre ao final a própria vitória. Para isso é importante afirmarmos que tudo que queríamos foi demonstrado pelo nosso adversário. Por exemplo, basta que diga “como eu provei durante todo o debate, meu adversário é isto e aquilo e foi por mim desmascarado”. Trata-se de um golpe de retórica importante. Aliás, se o adversário for tímido ou muito educado e conseguirmos impor nossa voz, além de sermos seguros no nosso descaramento, a tendência a funcionar é altíssima.
Não é preciso muito explicar para se compreender que toda argumentação ad hominem é eficaz num debate desonesto e baixo. Atacar a pessoa com afirmações, ou melhor, acusações que podem colar à sua imagem é muito eficaz, pois não somente pode desestabilizar o adversário, como facilmente convencer o público, bastando que se diga que tem provas e que futuramente irá mostrá-las. Por exemplo, é possível simplesmente dizer “você defende direitos humanos para criminosos? Então leve um para sua casa!”; “você defende o aborto porque não tem respeito por Deus”; “você é racista”; “você é machista”, “você diz que defende o meio ambiente, mas o que você quer é impedir o desenvolvimento”, dentre tantas outras possibilidades. Afinal, ofender é muito mais eficaz do que argumentar. Explicar leva tempo, ofender é muito mais rápido.
Outra estratégia fundamental para qualquer debatedor desonesto é desviar o debate ou interrompê-lo quando perceber que o adversário argumenta de maneira robusta algo que pode levá-lo às cordas. Mudar o foco, jogar outra questão ou simplesmente encerrar o debate vale como uma tática de salvação. Obviamente o mais adequado é encerrar o debate afirmando que com aquele debatedor é impossível de se dialogar. Ou seja, nenhum dos estratagemas são excludentes entre si, mas complementares.
Uma técnica interessante reside na arte de criar uma falsa consequência a partir de uma proposição do adversário. Por exemplo, podemos perguntar para o adversário se ele acha que tortura é algo errado. Caso ele diga que sim, podemos então concluir para o público que ele defende criminosos, principalmente estupradores e homicidas, pois acha que eles devem ser bem tratados. É uma técnica eficaz, porque toma uma proposição verdadeira do adversário e dela cria uma consequência absurda.
Para Schopenhauer uma técnica que praticamente sempre funciona é o uso de uma argumentação falsa voltada para o público. Ou seja, não se trata de um argumento propriamente voltado para o adversário, mas sim para a plateia que sabidamente não tem qualquer conhecimento profundo sobre o assunto. Esse argumento é útil nos casos em que um dos debatedores é muito culto, conhecedor do assunto, enquanto os ouvintes não são. Por exemplo, num debate que envolva inflação, crescimento econômico, ou qualquer assunto estatístico, basta dizer qualquer absurdo que faça o debatedor culto parecer estar errado, que a plateia assim vai também entender. Quanto mais simplista, melhor. Aliás, se além de simplista for possível com isso ridicularizar o adversário, melhor ainda. Qualquer plateia que dê risada tende a ser favorável. O humor cativa.
Uma estratégia que abarca várias possibilidades é o desvio. Já notamos que o debatedor desonesto, ao ver que será derrotado, pode simplesmente tentar desviar o foco provocando outro tema ou simplesmente encerrando o debate. Contudo, o desvio também engloba formas de tirar a atenção do público. Por exemplo, podemos falar com a voz mais alta que pudermos, sem que cheguemos a gritar, mas que seja suficiente para chamar a atenção do público. Quanto mais gesticularmos, mais desviaremos o foco de quem estiver nos ouvindo. Ao falar muito alto, quase gritando e gesticulando bastante, o debatedor ou orador consegue chamar a atenção para esses elementos, fazendo com que quem esteja assistindo sequer preste atenção no conteúdo em si. Será que conseguimos lembrar de alguém na história que gritava a cada discurso que dava e gesticulava sem parar? Para quem não lembra, uma pista: não nasceu no mesmo país de Schopenhauer, mas dele quis fazer um império que durasse mil anos.
Um outro estratagema que funciona bem num debate desonesto é o uso da incompetência irônica. Isto é, debochar do adversário quando ele estiver argumentando algo sério, apontando que ele fala tanto e expõe o que pensa de maneira tão confusa, que se torna incompreensível para qualquer pessoa. O deboche pode ainda culminar na irritação do adversário, que sempre ajuda.
Caso o adversário apresente um argumento forte, robusto, que seja muito difícil de desconstruir, uma tática eficiente é lhe dar um rótulo odioso. Isto é, falar que o que foi ali exposto não passa de sofismo, maniqueísmo, naturalismo, irracionalismo, ou qualquer conceito que não faça o menor sentido, mas seja de difícil compreensão pelo público. Caso o debatedor desonesto consiga rotular desta forma, poderá angariar simpatizantes que o acharão inteligente por dizer algo que não compreenderam, mas que pareceu muito pertinente.
Um estratagema que, de acordo com Schopenhauer, tem bons resultados é o da negação da teoria na prática. Ele é valioso pois não nega o argumento que o adversário apresenta, mas o invalida por considerá-lo irreal e impraticável. Ou seja, é o clássico apontamento de desdém “isso pode ser verdade em teoria, mas na prática é falso”. Normalmente o público gosta desse tipo de argumento, pois é fácil de replicar sem que seja preciso pensar ou pesquisar.
Por fim, todo debatedor desonesto pode se utilizar da técnica do argumento ad personam. Diferentemente do argumento ad hominem, mas muito semelhante, ele seria aquele destinado diretamente para o ataque pessoal. O debatedor ataca características pessoais do adversário ou até de seu círculo íntimo, não tendo qualquer relação com o tema que estava sendo debatido. Ou seja, enquanto o argumento ad hominem ainda carrega consigo alguma relação com o tema debatido, o ad personam é muito mais rasteiro, muito mais vil. Qualquer um tem a capacidade de usá-lo, mesmo porque ele não requer inteligência alguma, apenas brutalidade. Todavia, quando usado com alguma esperteza, pode render frutos. Por exemplo, o debatedor pode acusar o adversário de ter uma amante ou um amante, de ser corrupto, de usar entorpecentes ou de simplesmente andar com criminosos.
Imaginem todos esses estratagemas, que foram apenas exemplificativos, pois existem muitos outros mais, inclusive elencados por Schopenhauer, no mundo que se comunica pelas redes sociais. Pensem em como tudo isso pode ser utilizado com eficiência e rapidez quando o debate é mutilado em reels de instagram, cortes no Tik Tok ou em mensagens direcionadas no whatsapp, telegram, Facebook¸ dentre outros. A potencialidade de todas essas estratégias foi elevada a valores inestimáveis, pois praticamente não há debate quando podemos fazer recortes e manipulações que serão inseridas de maneira violenta nos feeds das pessoas. O que temos diante de nós é, possivelmente, o fim de qualquer debate público, pois graças às redes sociais e a ausência de regulamentação efetiva, ou por dificuldade de pensar como isso pode ser bem-feito, ou por desinteresse e pressão das Big Techs, a vantagem será sempre do debatedor desonesto, encantador de multidões.
Nesse debate silencioso que se faz entre o autor de um texto e seu leitor, no qual o autor fica em desvantagem, pois não tem direito à tréplica e tampouco a alguma defesa, deixo o questionamento: você, leitor, conseguiu imaginar algum candidato nessas eleições espalhadas pelo mundo durante a leitura desse singelo texto, que esteja por aí usando o livro que Schopenhauer escreveu pensando em nos proteger, mesmo por intuição, sem realmente ter lido, ou até por aconselhamentos de equipes de marketing? Será que a imagem de algum rosto lhe veio à mente? Caso a reposta seja negativa, cuidado, você pode estar sendo enganado por um debatedor bem desonesto.