Uma sensação da direita na América Latina, o presidente linha-dura de El Salvador, Nayib Bukele, foi eleito em 2019 com 53,10% dos votos. Sua principal atitude, até o momento, que o tornou reconhecido na América Latina e no mundo, foi a política para desmantelamento dos cartéis e do crime organizado.
A segurança pública na América Latina, considerada uma das regiões mais perigosas e violentas no mundo, é um tema recorrente nas eleições dos países dessa região. Mas, qual o saldo da política do governo Bukele? É esta a discussão deste Acervo Temático.
Eleição e estado de exceção
De acordo com a Global Organized Crime Index, um indexador que acompanha a criminalidade e o crime organizado em todo o mundo, a região de maior criminalidade é a América Central. Dentro da região, El Salvador configura, hoje, a 5ª posição (de 8, no total) em criminalidade.
O grande problema de El Salvador nos parece ser um crime recorrente na América Central: o tráfico humano. De acordo com a Global Organized Crime Index, as pessoas mais vulneráveis são aquelas que buscam imigrar para o México ou para os Estados Unidos. Lembramos que este tipo de organização criminosa também se associa a cartéis internacionais de tráfico humano, ou seja, normalmente os sequestros acontecem em território nacional, mas essas pessoas são contrabandeadas.
Todavia, não é apenas isso que aflige o pequeno país da América Central: tráfico de drogas, homicídios, lavagem de dinheiro… Tudo isso contribuiu para um cenário de insegurança muito grande. E, como sempre discutimos por aqui, essas situações abrem terreno fértil para discursos extremos.
À data de eleição de Bukele, 2019, El Salvador sofria com uma das taxas mais altas de homicídios, de acordo com a Human Rights Watch, organização de direitos humanos não-governamental, cuja reputação é internacionalmente conhecida e respeitada:
“As gangues continuaram em 2018 a exercer controle de território e extorsão de residentes em municípios do país. Eles recrutam forçosamente crianças e submetem mulheres, meninas, e pessoas LGBTQIA+ à escravidão sexual. Gangues matam, desaparecem, estupram ou expulsam aqueles que resistem a eles, inclusive oficiais de governo, forças de segurança e jornalistas. (”
Esse cenário fazia com que El Salvador tivesse uma das mais delicadas situações de alta criminalidade no mundo. A origem da violência de gangues se relaciona à Guerra Civil que ocorreu no país entre 1979 e 1992. Nela, se enfrentaram o governo ditatorial de direita de El Salvador, que possuía anuência dos Estados Unidos, e a guerrilha socialista Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional (FMLN). O conflito, finalizado na década de 1990 por meio do Acordo de Paz de Chapultepec, possibilitou a entrada da FMLN no cenário político-eleitoral de El Salvador.
As duas principais gangues que atuam no país foram fundadas por salvadorenhos nos Estados Unidos, emigrantes da Guerra Civil do país, em 1980: MS-13 e sua principal rival Barrio 18. Com a decisão de Bill Clinton, ex-presidente dos Estados Unidos, de ampliar os casos de extradição dos acusados de crimes, diversos salvadorenhos foram extraditados para seu país de origem, o que resultou, também, na ida dessas gangues para território salvadorenho.
Durante os anos 2000, o governo de El Salvador manteve uma abordagem de “mão dura”, com encarceramento em massa e sentenças mais gravosas para gangues. Entretanto, as prisões se tornaram fonte de recrutamento e treinamento de criminosos. O resultado foi aquém do esperado, visto que os homicídios mais que dobraram entre 1999 e 2009.
A partir da década de 2010, o então presidente Mauricio Funes ofereceu uma trégua – bastante controversa – às gangues, o que resultou na queda de violência. Entretanto, em 2015, três anos após a mudança de política, as guerras territoriais entre gangues aumentaram, o que fez, novamente, o número de homicídios disparar. Na época em que Bukele assumiu a presidência, El Salvador apresentava as menores taxas de homicídios em 20 anos.
Em 2009, de acordo com dados do Banco Mundial, a taxa de homicídio a cada 100 mil habitantes em El Salvador era de 71,9, quase 12 vezes a taxa mundial (6,1). Em 2020, último ano de dado disponível da organização, a taxa de El Salvador era de 21,3 a cada 100 mil habitantes e do mundo era de 5,6, ou seja, 3,8 vezes menor que a do país da América Central.
Uma das principais estratégias de Bukele para combater o crime organizado, principal pauta da sua campanha, foi o de controle territorial. Ou seja, o governo buscava retomar controle de áreas dominadas pelo crime organizado, utilizando-se inclusive do apoio das Forças Armadas. Em março de 2022, entretanto, Bukele tomou uma medida extrema: declarou estado de exceção, privando a população de direitos, para combater o número de homicídios (em apenas um final de semana foram registrados 87 mortos). Essa violência foi atribuída, justamente, às duas principais gangues que atuam no país: MS-13 e Barrio 18. Desta maneira, iniciou-se novamente um período de “mão dura”. O presidente, neste ínterim, se aproveitou da alta popularidade (85% dos salvadorenhos o aprovavam), para então lançar mão de medidas autoritárias.
No tempo da declaração do estado de exceção, organizações e agências internacionais manifestaram a sua preocupação em relação aos direitos fundamentais dos salvadorenhos. A Organização das Nações Unidas e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos foram duas das que se manifestaram. Bukele foi sarcástico na resposta e escreveu na rede social Twitter, atual X:
“Temos 70.000 criminosos ainda nas ruas. Venham buscá-los, levem eles para os seus países, tirem eles desta ‘perseguição ditatorial e autoritária’. Vocês podem ajudar esses anjinhos, não permitam que continuemos violando os seus direitos”
A comunidade internacional atenta: direitos humanos em foco
Alguns dias após o início do estado de exceção, o Congresso salvadorenho aprovou uma medida demandada por Bukele: punição de até 15 anos de prisão para quem compartilhasse mensagens de gangues nos meios de comunicação. Isso se deu logo no início da estratégia de mão dura do presidente, mas que já possuía um balanço de 6.000 prisões em 10 dias.
Em dezembro de 2022, no relatório anual da Human Rights Watch, a cifra era assustadora: 58.000 pessoas presas desde abril, com atuação indiscriminada de forças de segurança em bairros pobres. A organização, que visitou o país em outubro daquele ano, criticou o alto escalão por determinar uma “meta” de prisões, incentivando as violações aos direitos humanos e efetuando prisões sem o devido processo legal. Essa foi a tempestade ideal criada, inclusive, para a prisão de pessoas não conectadas ao crime organizado.
Uma das medidas judiciais mais questionadas durante este período foi a das audiências coletivas; isto é, pessoas poderiam ser julgadas ao mesmo tempo, resultando em cerca de 500 encarceramentos. Em março, a população carcerária era de 39.000, já em novembro do mesmo ano, 2022, eram 95.000 pessoas presas, duas vezes a capacidade máxima ofertada pelo país.
No início de 2023, o governo afirmou que o homicídio havia caído 51%, como resultado do estado de exceção. Já em fevereiro, o governo dobrou a capacidade de detidos com a inauguração de uma megaprisão, com capacidade para 40.000 pessoas. Este ano, entretanto, foi marcado por uma guinada ainda mais autoritária por conta dos seguintes fatos: a perseguição do ex-presidente por um suposto acordo ilícito com gangues, fuga da imprensa no país devido à censura, manobras judiciais para concorrer à reeleição, possibilidade de prisão utilizando apenas uma denúncia telefônica anônima, entre outros.
No mês de setembro de 2023, um dado chamou a atenção do mundo: uma pessoa morreu a cada quatro dias aguardando julgamento nas prisões salvadorenhas, ou seja, 188 detidos morreram a espera de uma audiência, de acordo com a Assistência Jurídica Humanitária. Esse modelo vem sendo criticado por especialistas, inclusive, por não ser economicamente sustentável. O país tenderá a gastar mais para manter as prisões do que com programas sociais caros à população.
As acusações de violações de direitos humanos não se dão apenas pela suspensão do devido processo legal. Até o momento, o governo liberou 7 mil das mais de 72 mil pessoas presas desde março de 2022. A grande maioria dos libertos acusam o governo de espancamento e humilhações. A megaprisão também é tida como, em si, uma violação de direitos humanos. Isso porque ela não respeita os parâmetros básicos estipulados em 2005 através das “Regras Mínimas para o Tratamento de Detentos” definidas pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU). Ou seja, não existem pátios, áreas externas, espaços conjugais e familiares, sendo as celas escuras e sem janelas. A Anistia Internacional, em abril de 2023, sistematizou as acusações de violações de direitos humanos praticadas pelo Estado de El Salvador: tratamento humilhante e tortura, desaparições forçadas, e a morte de pessoas não-julgadas sob custódia do Estado.
Em setembro de 2023, a Insight Crime teve acesso a documentos da polícia salvadorenha que colocam em xeque o suposto triunfo de Bukele. Os documentos da polícia apontam que, apesar de enfraquecidas, as gangues de El Salvador continuam a operar e se colocam como uma ameaça à segurança do país, sobretudo pelo fato de que há cerca de 30% de membros de gangues livres, conforme tabela abaixo.
A política de Bukele é criticada por especialistas por se assemelhar fortemente à política de mão dura da década de 2000. A crítica a este momento da política de mão dura é que o encarceramento em massa não consegue minar a capacidade de organização das gangues. Ainda, vira um hub de articulação, cooptação e treinamento para essas gangues.
A Human Rights Watch apontou uma série de medidas que podem ser implementadas como alternativa à política de mão dura de Bukele.
Alternativas no campo de segurança pública
O primeiro apontamento da Human Rights Watch aponta que, apesar da queda de homicídios, esta política não se apresenta como sustentável a longo prazo, não apenas pelo alto custo de manutenção. A visão da organização é de que, sem políticas de prevenção e reintegração, a tendência é da volta do aumento da violência de facções.
Políticas em outras áreas, por exemplo, podem se apresentar mais sustentáveis, respeitando também os direitos humanos. Políticas que ataquem a pobreza e a exclusão social, seguindo a análise da Human Rights Watch, podem auxiliar na redução da violência. Além disso, a organização cita “processos criminais estratégicos focados em responsabilizar líderes desses grupos e investigar crimes violentos” como formas de combater o crime organizado.
No campo internacional, a organização pede apoio multilateral entre o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, e a União Europeia, para que haja uma reação no Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas. Pede, também, que instituições financeiras, especialmente o Banco Centro-Americano de Integración Económica (BCIE), suspendam empréstimos que beneficiam entidades governamentais envolvidas em abusos de direitos humanos. Por fim, demanda apoio a jornalistas independentes e organizações da sociedade civil.