No ano passado, a Lei Federal de Cotas (Lei 12.711/2012) completou 10 anos. Discutimos, em um Acervo Temático anterior, a importância de leis afirmativas, fundamentadas na concepção que abrange a necessária reparação história, social e cultural. Além disso, apontamos que, de acordo com o Art. 7º da Lei, era prevista uma revisão temporal posterior do aparato legal implementado, com o objetivo de avaliar o que foi alcançado e o que pode ser aprimorado.
Pois bem, essa revisão começou a ser feita. Mas o que será mudado? Quais as perspectivas e o que precisa ser feito para aprimorar esta lei tão importante?
“As políticas afirmativas têm como objetivo combater as desigualdades horizontais, isto é, aquelas baseadas em aspectos identitários, como raça, religião, gênero, etnia, orientação sexual, entre outros. O objetivo primordial dessas políticas é a inclusão socioeconômica da população historicamente marginalizada. Com isso, as políticas afirmativas promovem igualdade de acesso a oportunidades.
Trata-se, portanto, de um método de desigualdade positiva, em que se toma o desigual de forma desigual para promover a sua inclusão. Ou seja, adotando-se o conceito mais amplo e complexo de Norberto Bobbio sobre igualdade: tratar os iguais, igualmente e os desiguais, desigualmente, na medida das suas desigualdades.” (Acervo Temático: Lei Federal de Cotas, 2022).
Atualizações da Lei de Cotas: debate em aberto
No dia 09 de agosto de 2023, a Câmara dos Deputados aprovou em votação simbólica o projeto que atualiza a Lei Federal de Cotas. A votação simbólica, amplamente utilizada pela Casa, não possibilita que os votos sejam computados individualmente. Ou seja, é impossível saber quem exatamente votou a favor e quem contra.
A Lei, sem revisão, prevê cotas para ingresso em universidades e institutos federais, em 50%, para alunos de escolas públicas — que tenham cursado o Ensino Médio integralmente nesta modalidade —, com subcotas para estudantes de baixa renda, estudantes pretos, pardos, indígenas e pessoas com deficiências.
A iniciativa governamental na década passada foi muito importante para a disseminação de políticas afirmativas, tanto na esfera pública, quanto na privada. Empresas, por exemplo, passaram a aplicar este tipo de política na seleção de candidatos a vagas de emprego, sempre sob a percepção de competir para promover uma sociedade mais justa e menos desigual.
A atualização começou a ser pensada com um ano de atraso, sobretudo pelo fato de que 2022 foi um ano eleitoral. A Câmara entendeu que era delicado discutir uma das políticas mais importantes do país em um ano muito suscetível a interferências políticas. O texto aprovado foi um esforço amplo dos Deputados e Deputadas, visto que a relatora, Dandara (PT-MG), teve que fazer concessões, sobretudo no que tange às bancadas de heteroidentificação.
As subcotas são definidas da seguinte maneira: 50% das vagas de cotas são dedicadas para estudantes de famílias com renda per capita inferior a 1,5 salário-mínimo. Já para pretos, pardos, indígenas e PCD, deve-se reservar a quantidade de vagas relativa à expressividade desta população no estado, segundo o Censo mais recente realizado pelo Instituto Brasileiro de Estatística e Geografia (IBGE). Com as alterações foram incluídos Quilombolas, também sob o critério de representação populacional de acordo com o Censo.
É importante fazer algumas considerações sobre atrelar a representação ao Censo. Primeiramente, ele é realizado a cada 10 anos, o que impossibilita uma análise fiel da composição populacional a cada ano, havendo uma margem de erro. Nesse sentido, a alteração da Lei que prevê que o Poder Executivo, após três anos realizado o Censo, deve fazer uma atualização metodológica para o cálculo de proporção das vagas é altamente positiva.
Além disso, o último Censo realizado, em 2022, pode causar um impacto interessante no futuro da Lei de Cotas no país. A prévia do Censo já aponta para duas questões: o crescimento da população indígena, devido a mudanças metodológicas e uma autoidentificação maior desta população, e o inédito Censo dos Quilombolas.
Ampla concorrência e cotistas
Inicialmente, o candidato deveria escolher se concorreria por ampla concorrência ou pelas vagas reservadas. Essa escolha, com o texto atualizado, para de ser feita pelo candidato. Isso porque todos os candidatos concorrerão à ampla concorrência. Caso não alcancem as notas nesta modalidade, passarão a ser considerados para as vagas reservadas.
Critério socioeconômico
Antes, 1,5 salários-mínimos. Agora, apenas 1. É isto que define a atualização. Ou seja, a Lei passa a definir que os beneficiários de cota devem ter renda per capita familiar inferior a 1 salário-mínimo. A atualização, de acordo com especialistas, visa compreender mudanças socioeconômicas que o país sofreu nesses últimos 11 anos.
Atualização das vagas remanescentes
Entre as vagas disponibilizadas para cotas, há uma ordem de destinação das vagas remanescentes. Por exemplo, se a subcota de negros, pardos, indígenas, PCDs e quilombolas não for preenchida, essas vagas serão destinadas para alunos que se encaixam no critério socioeconômico e apenas depois para candidatos de escolas públicas. Trata-se de uma aprimoração interessante, garantindo uma padronização do processo.
Auxílio estudantil e alunos de pós-graduação
Os alunos cotistas, uma vez ingressos na universidade ou instituto federal, terão prioridade para o recebimento de auxílios estudantis oferecidos pelas universidades. Outra atualização é que a Lei de Cotas passará a prever que instituições de ensino superior nos programas de pós-graduação deverão promover políticas de inclusão para pretos, pardos, indígenas, quilombolas e PCDs.
Avaliação e monitoramento
Nesta área, criticamos anteriormente, no Acervo Temático do ano passado, a falta de acompanhamento e o esvaziamento das instâncias de avaliação anual. A atualização da Lei prevê que o Ministério da Educação divulgue os dados com informações sobre a política, incluindo a permanência nos cursos e a conclusão deles pelos alunos.
Esses dados são importantes para municiar as universidades de políticas para a permanência desses estudantes, bem como entender a diferença de desempenho entre os alunos cotistas e os não cotistas, se é que há. Outra questão é que a Lei não precisará mais ser revista no prazo de 10 anos e, sim, avaliada.
Considerações finais
O atraso na revisão da Lei foi visto como estratégico por parte dos especialistas, embora alguns receassem o fim da política pública numa política de revisão. O avanço da matéria comprova que este receio pode ser deixado de lado. Além disso, a alteração da avaliação de cotas, sobretudo com a possibilidade de os alunos concorrerem primeiro e automaticamente por ampla concorrência faz com que as cotas deixem de ser o teto e passem a ser o piso.
O texto segue para o Senado e, se lá aprovado, para a sanção Presidencial.