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Acervo Temático: As redes sociais, a violência e a tragédia no Rio Grande do Sul

Acervo Temático: As redes sociais, a violência e a tragédia no Rio Grande do Sul

Não há dúvidas de que a tecnologia aplicada ao mundo da internet mudou a nossa forma de se comunicar e a nossa própria forma de se relacionar. As redes sociais impactaram brutalmente em nossas vidas, tanto positivamente, quanto negativamente. Contudo, parece que os aspectos negativos têm sido mais profundos.

O Brasil vive a catástrofe das enchentes causadas pela chuva no Rio Grande do Sul. As cenas são dignas de um cenário destroçado por uma guerra. Não sabemos ainda o tamanho da tragédia, uma vez que isso só será possível quando as águas baixarem de nível e a destruição se tornar visível para todos. As histórias são tristes, as perdas são inestimáveis. Nunca na história do Brasil vivemos algo parecido. Mesmo que ainda muitos não tenham conseguido perceber a dimensão do que está em curso, basta dizer que uma cidade do porte de Porto Alegre terá que ser reconstruída. Talvez a palavra aqui não consiga transmitir o tamanho do que realmente estamos vivendo. Todavia, o tempo será melhor mensageiro.

Diante desse quadro, redes de solidariedade foram sendo criadas entre as pessoas por todo país. Não somente, ajuda internacional também tem sido vista. Isso é alentador. Contudo, todos aqueles que trabalham incansavelmente in loco, que vivem o dia a dia da tragédia, principalmente as autoridades institucionais têm afirmado que, além da própria chuva e da água do Guaíba, um dos maiores inimigos do Rio Grande do Sul tem sido a avalanche de fake news disparadas nas redes sociais. Especialistas afirmam que isso reduz a possibilidade de mais doações chegarem e confunde, principalmente, aqueles que podem ajudar, atrapalhando aqueles que já ajudam.

Por qual motivo pessoas ou grupos espalham fake news no contexto de uma tragédia humana desse porte? Evidentemente por interesses pessoais políticos mesquinhos, egoísticos, mas principalmente por uma assombrosa falta de empatia e incapacidade de pensar criticamente além de si mesmo.

Pensando nisso, é necessário pararmos para refletir sobre o quanto as redes sociais têm sido utilizadas de maneira nociva e o quanto elas têm produzido efeitos desagregadores no tecido social.

Hannah Arendt, em seu ensaio Sobre a Violência, refletiu sobre o que seria propriamente o poder, a violência e o vigor. Fruto de reflexões já feitas anteriormente em A Condição Humana e em Origens do Totalitarismo, seu juízo nesse ensaio mais tardio apontou que o poder seria algo gerado no âmbito público por meio da ação em conjunto. Nesse sentido, ele seria um agir em concerto, que não pode ser prioridade do indivíduo, pois pertence a um grupo e permanece existindo apenas na medida em que o grupo se conserva unido. A violência é, por outro lado, instrumental. Ela se aproxima da ideia do vigor, que é característica do indivíduo ou do objeto, é físico, mas é muito maior a ele, porque pode multiplicá-lo, justamente por ser instrumental. Nesse diapasão, para Arendt o poder total seria aquele exercido por todos contra um, enquanto a violência extrema seria a de um contra todos.

É preciso apontar que Arendt não quis dizer em seu ensaio que o poder seria, então, algo sempre positivo quando gerado por meio de um encontro de ações. Tampouco quis ela dizer que a violência seria sempre negativa. Em suas reflexões, a pensadora que melhor teorizou sobre o totalitarismo e construiu o conceito de banalidade do mal afirma que a violência pode ser útil para aqueles grupos que não são ouvidos não sociedade ou sofrem injustiças e são oprimidos. Isto é, manifestações violentas podem chamar atenção para algo. Todavia, o problema está quando esta violência perdura e acaba tomando o próprio lugar daquilo que na verdade queria transmitir. Deste modo, a violência tende a gerar uma condição mais violenta. Daí ela ser perigosa.

De qualquer maneira, a violência é a antítese do poder para Arendt. Afinal, ela necessita sempre da instrumentalização contínua para que se mantenha. O poder não. Este por ser um concerto, perdura, porque nasce da convergência. Aliás, vale dizer que tanto a violência como o poder podem modificar o mundo, mas a tendência é que a violência quando atue, torne o mundo mais violento, ao passo que a ação pode ser muito mais positiva.

Mas, por qual motivo pedimos emprestados os conceitos de Arendt? Num exercício de reflexão, ela nos ajuda a perceber que a dinâmica que tem dominado a lógica das redes sociais é muito mais tendente ao que ela pensa sobre violência. Numa reflexão rápida e desatenta, logo de primeira diríamos que as redes sociais permitiram ao homem em sociedade potencializar a formação de poder por conta da aceleração das conexões, que transformaram brutalmente as concepções normais de espaço e tempo. Com as redes sociais podemos estar conectados o tempo todo com pessoas que estão distantes de nós, a qualquer tempo, sempre que quisermos. Assim, as condições para a formação de um concerto em relação a algo estariam muito mais propícias do que nunca. Seria isso verdadeiro?

Para respondermos a essa questão seria necessário desde já avisar que as redes sociais não são um espaço público. Ou seja, a premissa básica de Arendt já restaria prejudicada ao compreendermos que as redes sociais pertencem a empresas privadas, que visam ao lucro. Ou seja, elas não são um espaço público onde as trocas de experiências podem ser feitas sem qualquer estímulo artificial exterior a quem nele aparece. As redes sociais têm objetivos, precisam atender metas e atrair patrocínios. Elas não são em hipótese alguma espaços neutros.

As redes sociais atendem à lógica dos algoritmos que, por sua vez, atendem a lógica estratégica dos administradores das chamadas Big Techs. Eles visam a impulsionar condutas e estimular novas condutas que serão impulsionadas para que novos estímulos surjam. Quando participamos das redes sociais somos produtos e produtores, consumidores e objeto consumido. Deste modo, não importa o que escrevemos ou o que postamos, para as empresas importa que haja engajamento. Ou seja, o conteúdo em si é oco.

Em razão disso tudo muito tem se discutido acerca da necessidade de regulamentação das redes sociais, tanto em relação ao conteúdo postado, quanto ao que devem informar as empresas sobre o funcionamento dos algoritmos que constroem. É sabido que muitos dos estímulos foram construídos para viciar usuários, fazer mineração de dados e destinar informações sem critérios seguros tanto éticos, quanto jurídicos. Sabemos também que redes como Facebook, Instagram, Tik Tok¸dentre outras, opõem-se às ações regulatórias dos Estados para que continuem permitindo que notícias fraudulentas permaneçam impulsionado engajamentos e criando trending topics. No mundo das redes sociais, fraudes em relação à realidade valem ouro.

Somando-se tudo isso, aquela primeira impressão de que as redes sociais seriam um espaço facilitador para a geração de poder no sentido arendtiano cai por terra. Muito pelo contrário, as redes sociais parecem ser mais uma ferramenta de instrumentalização da violência do que espaço para um concerto de ações. Discursos de ódio, fake news, ciberbullying ditam a tônica das interações entre os perfis, que nem sempre são verdadeiros. Afinal, robôs são criados para impulsionar e estimular determinadas interações, tal como descobrimos recentemente nas eleições brasileiras.

Aparentemente as pessoas pensam estar conversando quando interagem nas redes sociais. Entretanto, são interações não necessariamente sincrônicas e que escapam à naturalidade das ações e reações humanas, marcadas em qualquer encontro presencial. A agressão se torna mais fácil, muito menos consequencial, pois quem agride simplesmente fecha o aplicativo e sente-se seguro no espaço do seu entorno. No mundo real, qualquer ação gera a expectativa de uma reação, seja ela verbal ou até mesmo física. A presença do outro nos contém e estabelece limites para nossas próprias ações. Esses limites não existem nas redes sociais.

Além disso, as redes sociais possibilitaram a formação do que tem ficado conhecido como tribunal das redes sociais, que é o julgamento sumário, sem defesa ou qualquer tipo de oportunidade de prova ao contrário feito contra qualquer pessoa que cometa algum deslize ou faça algo considerado polêmico ou mesmo indesejado pela expectativa do conjunto social. É uma espécie de concerto instrumental da violência. Ou seja, não é o concerto de ações que gera poder, mas sim ações violentas instrumentalizadas pelas ferramentas oferecidas pelas redes sociais.

Assim, quando pensamos novamente na tragédia que o Rio Grande do Sul vive e nas fake news que são disparadas em relação às atuações institucionais e privadas de solidariedade, podemos pensar que não é somente a falta de empatia e os interesses individuais egoísticos dessa classe ou daquela de políticos que estimulam atos como esses, mas também o assustador fato de que cada tragédia, quando perpetuada e problematizada dessa forma, aumenta o engajamento, amplia as interações e gera lucro para essas empresas. Ou seja, apesar de atrapalharem a ajuda na tragédia humanitária que ceifa a vida e os sonhos de centenas de pessoas, as fake news geram lucro para as empresas donas das redes sociais. Isso significa dizer: quanto mais mentiras, melhor; quanto mais agressividade e disputas, melhor. Quanto mais tragédia, melhor. No jogo de ganha-ganha das Big Techs, não há interesse algum que o espaço virtual tenha qualquer limite ético ou possa vir a ser, tal como Arendt refletiu, um espaço de geração de poder.

É preciso regulamentar as redes sociais, estabelecer limites jurídicos, exigir transparência das Big Techs sobre quais dados pessoais são utilizados, coletados e abrir os algoritmos. Esse debate precisa ser levado a sério na nossa sociedade. Além disso, precisamos construir estratégias nas escolas para que as pessoas aprendam a identificar notícias fraudulentas, evitem interações violentas e aprendam a usar a tecnologia sem que isso lhes traga impactos negativos comportamentais e psicológicos. Não podemos permitir que as redes sociais continuem a ser instrumentalizadas para tornar nossa vida mais impregnada ainda de violência.

O Rio Grande do Sul tem nos ensinado que as redes sociais completamente descontroladas, reguladas unicamente pelo crivo das empresas que as controlam não colocam só em risco a democracia em períodos eleitorais, fomentando polarizações e destruindo reputações, mas também tornam nossas relações mais violentas, custando vidas preciosas.

 

 

Observação: Esse conteúdo não representa, necessariamente, a opinião da Fundação Podemos.

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