O Conselho de Segurança da ONU aprovou recentemente uma resolução com 14 votos a favor e a abstenção dos EUA demandando o cessar-fogo no conflito que envolve Israel e o Hamas. Essa resolução, de difícil e complexa negociação, tem caráter obrigatório para todos os Estados do mundo; isto é, ela tem uma natureza denominada erga omnes.
Diante disso, é importante buscar entender o que isso significa e qual a sua importância no cenário atual do conflito que vitimiza e destrói a vida de milhares de pessoas, principalmente palestinos em Gaza.
Apesar das inúmeras confusões e equívocos cometidos na imprensa em geral, o Conselho de Segurança não é a ONU e tampouco é sinônimo dela. Ele é um órgão da ONU dentre tantos outros. Aliás, vale ressaltar, a ONU é de uma dimensão gigantesca e possui uma atuação complexa, que vai muito além do tema da segurança internacional. Seus objetivos estão descritos logo no início de sua Carta, dada em 1945 na reconstrução do mundo após os horrores provocados pela catástrofe da Segunda Grande Guerra[1].
A ONU é composta principalmente pela Assembleia Geral, pelo Secretariado, pelo Conselho Econômico e Social (ECOSOC) e pela Corte Internacional de Justiça de Haia (CIJ). Além desses órgãos principais, ela tem uma vasta série de agências, comissariados e fundos ligados a eles que buscam atender aos objetivos descritos em sua carta. Dentre eles, podemos citar a UNICEF, o ACNUR, o Alto Comissariado das Nações Unidas para Direitos Humanos, a Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina no Próximo Oriente (UNRWA), a UNESCO etc. Todavia, é o Conselho de Segurança o local e o órgão responsável por discutir a segurança internacional no mundo, tema que é disposto no capítulo VII da própria Carta da ONU[2].
Originariamente, o Conselho de Segurança foi composto por onze membros: seis não permanentes e com mandato de dois anos, eleitos pela Assembleia Geral, e cinco permanentes com poder de veto: EUA, URSS, China, França e Inglaterra. No ano de 1963 sua composição foi alterada para dar maior representatividade ao Conselho, ampliando-se, então, o número de onze para quinze membros. Cada membro tem um representante e apenas um voto, mas os cinco permanente possuem uma situação preferencial. Ou seja, quando as discussões envolvem matéria de segurança internacional, chamadas de substanciais, os cinco membros permanentes podem impedir a aprovação de uma resolução por meio do seu único veto, demonstrando contrariedade. O quórum de aprovação, na realidade, é de nove votos favoráveis dos membros. Desta maneira, para que uma resolução que trata de segurança internacional seja aprovada, não basta o número de nove votos dentre os quinze ser atingido, é preciso que dentre esses nove votos não haja um contrário de um dos membros permanentes. Em matérias que não envolvem a temática da segurança internacional, o quórum de nove votos a favor possui outra dimensão. Isto é, em temas administrativos ou procedimentais quaisquer, bastam nove votos a favor, independentemente da contrariedade de um dos membros permanentes.
Diante dessa dinâmica, é evidente que o peso nas relações internacionais dos membros permanentes com poder de veto é enorme. Em conflitos que possam envolver os interesses contrapostos desses membros, uma paralisia do Conselho de Segurança pode acabar acontecendo, isto porque um começa a vetar a proposta do outro, até para efeitos de desmoralização mútua. Aliás, nesse sentido, historicamente, o uso abusivo do poder de veto acabou fortalecendo a Assembleia Geral, que passou a opinar sobre assuntos nos quais o Conselho de Segurança não conseguia dar uma resposta.
O que o mundo viu no caso do grave conflito entre Israel e Hamas foi uma contraposição quase que permanente entre EUA, Rússia e China. Os EUA tentando barrar qualquer medida que não fosse do agrado de Israel e a Rússia bloqueando, juntamente com a China, as propostas construídas pela diplomacia norte americana. Todavia, diversos fatores levaram à aprovação da até então improvável resolução demandando o cessar-fogo imediato no conflito.
Não podemos ignorar o peso que a opinião pública internacional teve para que essa resolução no Conselho de Segurança da ONU fosse aprovada. A denominada globalização da vergonha teve seu papel fundamental em pressionar os membros permanentes para a aprovação de uma resolução. As cenas de crianças morrendo em Gaza, de mulheres e homens desesperados por ajuda humanitária, de corpos destroçados pelos bombardeios israelenses correram o mundo, que hoje se comunica numa velocidade brutal por meio do Instagram, Tik Tok, Whatsapp e demais mídias digitais. Diversos perfis nas chamadas redes sociais divulgaram fotos, vídeos e cenas em geral da tragédia que domina Gaza. Grupos de jornalistas independentes e ativistas de direitos humanos impulsionaram essas divulgações para jogar mais e mais pressão das pessoas nos seus dirigentes políticos. Nos EUA tivemos um resultado sintomático. Despertou entre os eleitores de Joe Biden, que logo concorrerá à reeleição frente ao seu principal adversário político, Donald Trump, um movimento de voto contrário caso o presidente dos EUA continuasse seu apoio incondicional a Israel. Isso parece ter feito Joe Biden colocar os pés no freio e retirar o apoio que outrora concedia ao premiê Benjamin Netanyahu, o que provocou, inclusive, manifestações expressas de desaprovação e perplexidade do governo de extrema-direita israelense.
Recente pesquisa Gallup, divulgada no dia 26 de março de 2024, apontou que a maioria dos americanos desaprova as ações de Israel em Gaza, em torno de 55%. Uma pesquisa Gallup feita em novembro de 2023 apontava que 50% dos americanos aprovavam as ações de Israel em Gaza, enquanto 45% reprovavam. Ou seja, o descontentamento da opinião pública norte americana cresceu consideravelmente num curto período.
Além desses dois fatores, as eleições na Rússia, de caráter manifestadamente duvidoso, por serem meramente aparentes e falsas, concederam uma espécie de renovação do poder total para Putin incrementar suas ações na Ucrânia, demonstrando ao Ocidente que toda a Rússia está com ele. Diante disso, o conflito em Gaza ganhou uma secundariedade para o Kremlin, mas ainda importante para demonstrar para o Ocidente a “culpa” dos EUA em patrocinar a continuidade e o horror do conflito. Ou seja, é uma oportunidade para a Rússia afirmar que ela repudia as atrocidades cometidas em Gaza, mesmo quando faz coisas semelhantes na Ucrânia. Contudo, é algo que faz parte de sua atual narrativa política em buscar enfraquecer e se contrapor ao que considera o Ocidente: EUA e Europa Ocidental.
A China, por sua vez, tem a sua estratégia em se posicionar no mundo como potência dominante, que compartilha um mundo não mais hegemônico por parte dos EUA. A pax americana da década de 1990 já não mais existe e a China faz questão de demonstrar a sua força e poder quando, com autoridade própria, se contrapõe aos interesses norte-americanos.
De qualquer maneira, com toda essa somatória de fatores, que, inclusive, não se esgotam, pois podemos pensar em outros mais, a resolução foi aprovada. Isso garante que, se o cessar-fogo não for observado por parte de Israel e do Hamas, sanções internacionais para ambos estarão legitimadas. Afinal, ataques feitos durante a vigência do cessar-fogo determinado pelo Conselho de Segurança serão, por definição, ilícitos.
A guerra entre Israel e o Hamas está longe de acabar. Todavia, não há como negar que essa resolução significa um passo importante e uma reafirmação do sistema onusiano funcionando no mundo. Não há dúvidas de que com a sua aprovação, as pressões aumentarão e a chamada globalização da vergonha continuará a produzir efeitos, assim como a ONU poderá cobrar, por meio de toda a sua estrutura, que ações efetivas sejam também tomadas. A resolução com toda a sua complexidade tem muito a nos dizer para tentar entender o que virá no cenário internacional. É, assim, um bom caminho para, quem sabe, os horrores dessa guerra chegarem a um fim.
[1] O art. 1 da Carta da ONU dispõe que: os propósitos das Nações unidas são: 1. Manter a paz e a segurança internacionais e, para esse fim: tomar, coletivamente, medidas efetivas para evitar ameaças à paz e reprimir os atos de agressão ou outra qualquer ruptura da paz e chegar, por meios pacíficos e de conformidade com os princípios da justiça e do direito internacional, a um ajuste ou solução das controvérsias ou situações que possam levar a uma perturbação da paz; 2. Desenvolver relações amistosas entre as nações, baseadas no respeito ao princípio de igualdade de direitos e de autodeterminação dos povos, e tomar outras medidas apropriadas ao fortalecimento da paz universal; 3. Conseguir uma cooperação internacional para resolver os problemas internacionais de caráter econômico, social, cultural ou humanitário, e para promover e estimular o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião; e 4. Ser um centro destinado a harmonizar a ação das nações para a consecução desses objetivos comuns.
[2] A ONU conta com diversas missões de paz e mais de 37 mil funcionários trabalhando diariamente. Ela é muito mais que o Conselho de Segurança. Este é apenas uma parte dela. Para maiores informações, consultar: https://www.un.org/en/our-work.