Breves considerações sobre os povos originários no Brasil
A historiografia tradicional, principalmente a ensinada nas escolas brasileiras, sempre tratou o período do descobrimento como um marco originário de formação do Brasil. Os povos que aqui já estavam foram, dessa forma, tratados de maneira homogênea, como se fossem apenas uma coisa só. Ou seja, as tribos, que na longa extensão do território em formação estavam, tiveram seu idioma, sua cultura, seus costumes como um todo absorvidos e ignorados ao longo do processo de colonização e, posteriormente, independência. Não se faz aqui um juízo de valor sobre isso, mas sim algo que é fático.
Desta maneira, a relação entre os povos indígenas e a população europeia colonizadora teve uma natureza muito mais de conflito, dominação e opressão do que convivência pacífica. Desde o encontro desses povos, a lógica da convivência praticamente se deu entre a concepção da escravização e do extermínio, envolvendo a destruição paulatina da cultura indígena, de suas tradições e dos seus idiomas.
O processo de colonização e formação da autonomia nacional também envolveu a ideia corrente à época, principalmente em razão do que se discutia na Europa, de que a miscigenação das populações no Brasil era uma doença, algo a ser evitado. Destarte, o embranquecimento da população era a solução para a indesejável chaga da miscigenação. O índio, nesse contexto, já homogeneizado como uma população só, independentemente da tribo a qual pertencia, era visto como um ser indolente, preguiçoso e inferior.
Portanto, o processo de formação do Brasil como nação se deu com a centralidade da concepção de que processo civilizatório era um amplo conceito fundamentado na base do necessário processo de embranquecimento. Aliás, vale dizer, que no processo de formação do Brasil império a influência dos movimentos nacionalistas europeus se deu em certa medida com a tendência de romantização de um passado idílico que nunca existiu, mas que colocou a figura do índio como um ser dócil, recebido pelo europeu que aqui chegou para cristianizá-lo e ensiná-lo a ser civilizado, mas também para dele se diferenciar, sem se divorciar totalmente. Um exemplo desse romantismo de formação se dá na literatura brasileira do século XIX, por exemplo, com a obra de José de Alencar, “O Guarani”, de 1857, e “Iracema” de 1865. Guarani que romantiza a figura do índio e a heroiciza nos padrões dos cavaleiros europeus e Iracema, um anagrama de América, que é a índia que receberá o europeu, por quem se apaixonará.
Sob a perspectiva jurídica, a Constituição do Brasil Império de 1824, outorgada por Dom Pedro I, não trouxe qualquer dispositivo em relação aos povos indígenas. Da mesma forma seguiu a Constituição de 1891 do Brasil República; isto é, nenhum dispositivo sobre os índios. A primeira constituição a dispor sobre os povos originários foi a de 1934. A partir dela todas as que se seguiram tiveram algum dispositivo, mas todas sob a égide do conceito de “comunhão nacional”; isto é, tratando-os sob uma perspectiva cujo objetivo oficial e declarado era a sua incorporação à comunhão, não mais numa lógica de extermínio. Todavia, persistia a ideia de extermínio de culturas, tradições, idiomas e costumes.
Essa concepção só foi alterada com o advento da nova República, nascida em 1988 e com a Constituição Federal de 1988, que deixou o conceito de comunhão nacional de lado e adotou outra postura. Os arts. 231 e 232 da Constituição de 1988 inovaram ao dispor que os índios devem ser reconhecidos por sua organização social, seus costumes, línguas, crenças e tradições, além dos direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam.
Em relação à legislação infraconstitucional, é interessante anotar que o Código Civil de 1916, que substituiu a legislação esparsa existente a as ordenações filipinas ainda aplicáveis até então, considerava a população indígena parcialmente incapaz. Desta forma, os índios eram sujeitos ao regime tutelar que cessaria à medida que se adaptassem à sociedade. Essa era a previsão que não foi mantida no Código Civil de 2002, que substituiu o de 1916. Ou seja, em 2022 os índios não foram inclusos dentre os parcialmente incapazes, tendo, enfim, a capacidade jurídica idêntica à destinada a todos os brasileiros.
Assim, a partir de uma breve reflexão acerca da legislação e da formação do Brasil em relação aos povos originários, não é difícil compreender o quanto esta população foi vítima de dominação, extermínio e marginalização na sociedade brasileira.
Situação demográfica dos povos originários – censo de 2010
De acordo com o censo de 2010, eram faladas em torno de 274 línguas indígenas no Brasil. Vale lembrar que no Brasil há apenas um idioma oficial reconhecido constitucionalmente e o ensino fundamental regular é normalmente ministrado em português, mesmo com a possibilidade da utilização das línguas indígenas e seus próprios processos de aprendizado. Afinal, é sempre bom esclarecer que todo idioma tem um processo próprio de ensino, que segue seu desenvolvimento cultural. Além disso, a grande e vasta maioria dos serviços públicos básicos são prestados em português, tanto oralmente, quanto por escrito.
Em 2010 o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), responsável pelo censo, apontou que havia 896.917 mil indígenas no Brasil, ou 0,47% do total de residentes no território nacional. Um número muito alarmante em relação à população indígena.
Situação demográfica dos povos originários – censo de 2022
Em 2022 o IBGE apontou que o número de indígenas residentes no Brasil é, na realidade, de 1.693.535 pessoas, o que representa em torno de 0,83% da população do país. Nesse sentido, em relação ao censo anterior houve um aumento de 88,82% desse contingente populacional.
De acordo com o próprio Instituto, esse aumento pode ter se dado principalmente em razão das mudanças metodológicas aplicadas na pesquisa recentemente realizada. Neste censo foram feitas perguntas acerca de sexo, idade, etnia, tendo sido abordados também quesitos de mortalidade, fecundidade e migração. Além disso, a pergunta sobre a autodenominação como indígena foi realizada, desta vez, também fora das terras indígenas, o que pode ter ajudado a ampliar o número desse contingente populacional. Assim, no censo de 2022 a pergunta sobre a autoconsideração de ser indígena ou não foi estendida além dos territórios oficialmente delimitados pela Funai para também os agrupamentos indígenas identificados pelo IBGE e ocupações domiciliares dispersas em áreas urbanas ou rurais com presença comprovada ou potencial de pessoas indígenas.
Outro ponto importante que pode ter influenciado no resultado do censo de 2022 foi a chamada “cartografia participativa”. Trata-se de uma colaboração dos povos indígenas com o IBGE, que se movimentaram para ampliar o engajamento entre os indígenas em relação à importância do censo. No estado do Amazonas, por exemplo, houve uma grande mobilização na área urbana para que pessoas respondessem a essas perguntas.
Além desses fatores, pesquisadores do Instituto apontam que houve um esforço coletivo entre eles e os povos indígenas desde o início da operação censitária até o monitoramento da coleta; esta que passou, inclusive, a ser compartilhada com a Funai. Isso pode ter contribuído também para a contagem, que resultou no incremento numérico dessa população.
Por fim, é importante também apontar que do censo de 2010 para o de 2022 houve um aumento no número de Terras indígenas no montante de 505 para 573. Aliás, nesse sentido, a maior parte dos indígenas do país, 51,25% ou 867,9 mil, vivem na Amazônia Legal; isto é, a região formada pelos estados do Norte, Mato Grosso e parte do Maranhão. A região Norte do Brasil concentra, ao todo, 44,48% da população indígena do país, o que significa um montante de 753.357 pessoas. A região Nordeste, por sua vez, tem o equivalente a 31,22%, ou melhor 528.800 pessoas.
A maior concentração da população indígena se dá, como é possível notar, nas regiões Norte e Nordeste do país. Amazonas e Bahia, nesse sentido, são os dois estados da federação com maior número de indígenas, 490,9 mil e 229,1 mil respectivamente. Dentre os municípios, Manaus é o que possui maior número de indígenas, somando um total de 71,7 mil. Os outros dois maiores munícipios em termos de população indígena também pertencem ao estado do Amazonas; são eles: São Gabriel da Cachoeira, com 48,3 mil indígenas e Tabatinga, com 34,5 mil.
As demais regiões do Brasil apresentam a seguinte distribuição da população indígena: o Centro-Oeste com 199.912 pessoas, o que corresponde a 11,80%; o Sudeste com 123.369 pessoas, o que implica em 7,28%; e, por fim, o Sul, com 88.097 pessoas, importando em 5,20%.
Entre as Terras indígenas, a com maior número populacional é a Terra Yanomami, que se situa nos estados do Amazonas e Roraima, com 27.152 indígenas. A segunda maior é a Terra Raposa Serra do Sol, que se encontra no estado de Roraima e possui 26.176 habitantes. Já a terceira, com uma população de 20.177 indígenas é a Terra Évare, que fica no estado do Amazonas.
Muito interessante notar que dentre os 72,4 milhões de domicílios particulares permanentes ocupados no Brasil, 630.041 possuem pelo menos um morador indígena, o que corresponde a 0,87% do total. Trata-se, portanto, de um número muito pequeno. Além disso, para se dimensionar mais ainda o tamanho dessa população diante do total no Brasil, do total de 630.041 domicílios com pelo menos um morador indígena, 137.256 localizam-se dentro de Terras indígenas; isto é, 21,79%. Destarte, a grande maioria encontra-se fora das Terras indígenas. Ou seja, em torno de 492.785, o que corresponde a 78,21%.
Na dimensão municipal, dos 5.568 munícipios brasileiros, incluindo o Distrito Federal e Fernando de Noronha, 4.832 apresentam pelo menos um habitante residente indígena, o que corresponde a 86,7% do total. Apenas 79 municípios possuem mais de cinco mil habitantes declarados indígenas.
Considerações Finais
Os resultados do censo de 2022 foram positivos, pois indicaram uma maior presença da população indígena brasileira em relação ao censo anterior. Isso é extremamente importante, pois, ao dimensionar onde essa população está e como ela se distribui, permite ao poder público desenvolver políticas públicas mais bem direcionadas, de maior qualidade, voltadas para o desenvolvimento e proteção dessa população.
Além disso, identificar que a grande maior parte dessa população se encontra na região da Amazônia Legal é fundamental para a própria proteção da Floresta e todo seu ecossistema. Essas populações são as que mais em contato vivem com essa biodiversidade; seu conhecimento e sua experiência são importantes aliados para que políticas protetivas possam ser bem desenhadas.
Por fim, é de fundamental importância entender o mapa dessa população no Brasil para que possamos nos livrar de mitos equivocados, que buscam afirmar que as populações indígenas ocupam extensas áreas de interesse produtivo e atrapalham o desenvolvimento do país. Muito pelo contrário, além da maior parte viver fora das terras demarcadas, eles se encontram na região da Amazônia Legal, que deve e precisa ser protegida para que o Brasil encontre o caminho inafastável de um futuro econômico que necessita ser aliado da biodiversidade.
Não é mais cabível no mundo contemporâneo que pensemos qualquer caminho divorciado do desenvolvimento sustentável. Nesse sentido, a população indígena brasileira é uma parceira preciosa para a construção de um futuro de preservação e desenvolvimento do mundo. Outro caminho não é mais possível.