fbpx
Fundação Podemos
/
/
Acervo Temático: A não-violência como projeto

Acervo Temático: A não-violência como projeto

O dia 13 de julho de 2024 entrou para a história da política norte-americana. O atentado contra a vida do ex-presidente Donald Trump repercutiu no mundo e provavelmente terá desdobramentos importantes ao longo da disputa que trava contra o atual presidente Joe Biden para voltar à Casa Branca. Ainda não se sabe ao certo as motivações que levaram o infeliz jovem atirador a cometer o insano ato, mas, é um fato praticamente incontestável de que a violência política nos EUA tem aumentado.

Todavia, após o momento da incredulidade diante dos fatos, é preciso fazer um exercício reflexivo para nos situarmos e tentarmos entender, avaliando de uma maneira mais sóbria, se a política tem se tornado mais violenta ou se ela sempre foi. Diante disso, buscar procurar alguma saída, alguma via não bloqueada para evitar que os termômetros voltem a aumentar de maneira incontrolável e que o tecido social de uma nação se rompa.

Para fazermos esse percurso basta nos apoiarmos um pouco sobre a própria história dos EUA. Aliás, seria desnecessário recorrer à história da América do Sul para tentar avaliar a violência na política, uma vez que a nossa trajetória e de nossos vizinhos é marcada por golpes e ditaduras truculentas. Se pensarmos que aqui já vivemos uma ditatura que durou 21 anos, a conclusão será a de que nossa história política é muito violenta. Não é apenas quando se atenta contra a vida de um presidente que a violência pode ser medida. Para a Argentina vale o mesmo raciocínio e para a Colômbia também. Enfim, os exemplos são inúmeros. Mas, voltemos, então, para os EUA.

A história ensina que quatro dos quarenta e cinco presidentes dos EUA em exercício foram assassinados. No ano de 1865, Abraham Lincoln, o 16° presidente dos EUA, teve sua vida abreviada principalmente por causa da divisão que levou à guerra da secessão americana. Apesar do seu destino trágico, sua célebre frase ficou: uma casa dividida, não pode resistir. Máxima que ecoa até hoje em tempos de ódio e divisão, principalmente instrumentalizados nas redes sociais. James A. Garfield, 20° presidente dos EUA, foi assassinado em 1881 por não ter nomeado uma pessoa ao cargo que esta queria na diplomacia americana. William McKinley, 25° presidente dos EUA, foi assassinado por um opositor no ano de 1901. John Fitzgerald Kennedy, talvez o mais célebre dos presidentes norte-americanos, teve seu fatídico dia em Dallas, no ano de 1963, em um até hoje mal explicado e obscuro atentado.

Além dos quatro presidentes que perderam a vida, outros sofreram atentados, mas tiveram mais sorte. Ronald Reagan, o 40° presidente dos EUA, foi alvejado no ano de 1981 por um indivíduo obcecado pela atriz Jodie Foster. Ele pensou que se assassinasse o presidente norte-americano, chamaria a atenção da atriz. Em 1912 Theodore Roosevelt, 25° presidente dos EUA, foi alvejado na iminência de um discurso. O tiro que recebeu no peito não chegou a perfurar seu pulmão. Em célebre passagem que ficou marcada na história dos EUA, Theodore Roosevelt preferiu, ao perceber que não havia sido gravemente ferido, ainda sim discursar com a bala alojada em seu peito, que só posteriormente seria retirada.

Além desses casos, outros presidentes dos EUA chegaram a sofrer atentados sem terem sido diretamente atingidos, como Gerald Ford, 38° presidente dos EUA, no ano de 1975. Não somente presidentes foram alvo da violência na política nos EUA. Outras figuras importantes também perderam suas vidas como o senador Robert Kennedy Jr., assassinado em 1968, e o líder político e defensor dos direitos civis Martin Luther King Jr., morto no mesmo ano. No ano de 1972, o ex-governador do Alabama, George Wallace sofreu uma tentativa de assassinato durante a sua candidatura para a presidência dos EUA.

Desta maneira, a violência na política norte-americana não é nenhuma novidade. A truculência e os atentados sempre estiveram presentes nas democracias ocidentais. Contudo, é preciso alertar que essa não é uma afirmação que busca normalizar a violência como algo natural das democracias, como se delas um elemento constituinte fosse, pois, na realidade, ela não é. Ela, a violência, é algo que floresce nas democracias quando os ânimos entre os grupos políticos se acirram e os controles emocionais institucionalizados na sociedade falham. Vale dizer, a democracia em si é conflitiva, mas o conflito não precisa e nem deve ser violento. Ele deve ser resolvido, quando acontece, de maneira institucionalizada e processual. Ou seja, por meio dos mecanismos processuais de solução de controvérsias que a sociedade internaliza, desenvolve e oferece para seus cidadãos para resolverem todos os tipos de conflitos que possam vir a surgir. O problema, nesse sentido, está quando os conflitos se tornam violentos, pois a violência ignora e desacredita os mecanismos institucionalizados de solução de controvérsias.

Em períodos de polarização, os conflitos tendem a ser mais agudos, tendentes à violência. Nesse diapasão, se pensarmos que a sociedade norte-americana escolhe seu presidente praticamente num sistema bipartidário, toda eleição será, por definição, polarizada. O problema está quando essa polarização extravasa a capacidade dos meios estabilizadores de controle e se torna incontrolável. Diante disso, as redes sociais têm exercido um papel muito ruim, pois têm sido utilizadas como instrumentos desregulamentados de propagação de discursos segregadores, polarizadores, que estimulam o embate e a própria violência, distribuindo, inclusive, notícias fraudulentas com o escopo de simplesmente justificar ou legitimar os objetivos espúrios de cada grupo envolvido.

Imaginar a democracia sem o conflito seria reduzir a sociedade humana à uniformização das condutas e dos anseios. Isto é, algo que só seria possível por meio de uma padronização da complexidade que nos envolve e da homogeneização da nossa diversidade. Assim, não é difícil imaginar que isso só seria possível por meio das ditaduras, tiranias ou dos totalitarismos, que não passam de fenômenos artificiais de redução da diversidade adaptada ao que um grupo determina ou a uma ideologia predominante e excludente.

Nesse sentido, se a democracia é (e deve ser) conflitiva, como buscar reduzir a possibilidade da eclosão da violência? Ou seja, como fazer com que os conflitos que tornam inclusive a democracia saudável e dialética não a tornem violenta? Dieter Senghaas construiu uma espécie de hexágono civilizatório para tentar pensar a possibilidade de um projeto de não-violência. Para ele, o tratamento civilizado, duradouro e não violento de conflitos requer seis condições que se entrelaçam.

A primeira condição é que haja na sociedade o monopólio legítimo da violência, num sentido próprio de “desprivatização”. Ou seja, o monopólio seja estatal, exercido por órgãos estatais competentes e de maneira legítima, havendo apenas as exceções da legítima defesa e do estado de necessidade. Nesse sentido, para Senghaas os cidadãos devem ser legalmente desarmados, pois em nenhuma instância armas podem ser usadas como solucionadoras de conflitos.

A segunda condição é a própria integridade do Estado de Direito. Nesse diapasão, Senghaas defende que para que haja esse processo de não-violência, cada cidadão tem o direito de legitimar seus próprios interesses e buscar resolver seus conflitos por meio de instituições previstas pelo direito. Trata-se, assim, de uma institucionalização da gestão dos conflitos.

Uma terceira condição para a construção sólida do hexágono seria a da interdependência e controle das emoções. Isto é, todos os membros de uma sociedade encontram-se em relação de interdependência, pois todos são igualmente importantes, diferentes e dignos. Não é possível pensar num controle das emoções numa sociedade armada e estimulada por discursos de ódio. Desta maneira, a ideia de unidade de uma sociedade teria que ser fomentada por meio da concepção da interdependência e não da homogeneidade, assim como também pela intolerância ao intolerante.

Desta forma, a terceira condição é completamente interligada à quarta, que é voltada para a justiça social. Nenhuma sociedade terá qualquer projeto de não-violência efetivamente possível se não houver combate à pobreza e à discriminação. A distribuição equânime entre os membros da sociedade deve se dar não somente em relação ao que é material, mas também naquilo que é justo. Uma sociedade mais igual e justa permite para todos os membros dela mais chances de desenvolvimento pessoal e atendimento das necessidades básicas do ser humano.

A justiça social não pode ser alcançada numa sociedade democrática se não houver uma cultura de conflito. Ou seja, os membros de uma sociedade devem ser capazes de resolver seus conflitos de maneira produtiva e construtiva, criando futuros compromissos críveis, que consigam articular interesses fundamentados na tolerância. A cultura de conflito seria a quinta condição do hexágono de Senghaas.

Todas as condições teriam que ser instrumentalizadas num ambiente que ofereça uma participação democrática, pois ela daria margem para a própria inclusão nos processos decisórios de todos os possíveis interessados, conferindo legitimidade, previsibilidade e crença no estado democrático de direito e suas instituições. Qualquer discurso que tivesse como foco abalar essa estrutura de normalização de conflitos deveria ser neutralizado e desacreditado.

O hexágono civilizatório de Senghaas, muito embora possa parecer utópico, é a essência básica para um projeto de não-violência, que possa fazer possível o aperfeiçoamento e manutenção da democracia no mundo. Ou seja, ele não é utópico; ele é necessário e urgente. A democracia sem tal cultura institucional dos conflitos, tenderá a sucumbir diante da violência.

Assim, em hipótese alguma isso deve ser encarado como utópico ou ingênuo, pois, na realidade, a ideia de democracia constituída como algo pronto e acabado é por si só falsa. A democracia é um processo contínuo de implementação e aperfeiçoamento do convívio humano não violento. Se ela não possuir esse caráter, em nenhum momento ela se apresentará como uma proposta civilizatória melhor do que qualquer ditadura comandada por um déspota esclarecido, na melhor das hipóteses. A democracia é, desta maneira, por definição um projeto inacabado e que não tem fim. Nesse sentido, integrar a ela a concepção de que a não-violência e a cultura de conflito é um dos seus pilares é fundamental para que possamos pensar em não mais ver cenas de atentados contra presidentes, invasões de prédios-símbolos como o Capitólio nos EUA e o Planalto em Brasília, tiroteios em escolas, agressões por brigas de trânsito, violência dentro do seio dos lares, dentre outras manifestações. A violência, seja no sentido mais amplo ou no mais íntimo e doméstico possível é e sempre será uma antítese em relação ao que a democracia deve e precisa se tornar.

 

Bibliografia

SENGHAAS, Dieter. The Clash Within Civilizations: Coming to Terms with Cultural Conflicts. London/New York: Routledge, 2001.

 

 

Observação: Esse conteúdo não representa, necessariamente, a opinião da Fundação Podemos.

Compartilhe:
como citar
Últimas publicações
Acompanhe nosso conteúdo
plugins premium WordPress