Uma das tarefas mais importantes do desenvolvimento intelectual de um ser humano é conseguir exercer o seu juízo crítico. Isto é, parar para pensar diante do que se vê, daquilo que se escuta, daquilo que se sente ou simplesmente do que se observa. O parar para pensar não é uma tarefa fácil, é um exercício contínuo de aperfeiçoamento que exige de cada ser humano reflexões, experiências sobre o mundo, sobre os outros e sobre si mesmo inserido nesse mesmo mundo, vivendo sozinho e entre outros. Ou seja, é um exercício de mão dupla, pois exige não somente o juízo singular e solitário do eu comigo mesmo, mas também o do eu com o outro, numa experiência de ressonância, alternância e muitas vezes conflitiva. Parar para pensar é aquilo que, numa linguagem próxima à alegoria de Platão, nos permite ir além de nossos meros instintos. Algo que nos torna capaz de superar nossas necessidades mais intuitivas e nossos processos meramente metabólicos. Em termos mais sofisticados, é aquilo que nos proporciona experienciar a plenitude de uma condição de não cativo de si mesmo e tampouco da sociedade, pois permite dar a ela a crítica e, a partir daí, a possibilidade de avanço em relação àquilo que já não se pode mais aceitar ou pactuar.
Como uma vez disse José Saramago na epígrafe do seu monumental Ensaio sobre a Cegueira: se podes olhar, vê; se podes ver, repara. Reparar é pensar, é exercer o juízo sem o qual nos tornaríamos aqueles cegos violentos que não podiam ver absolutamente nada e perdiam aos poucos sua humanidade a cada passo de isolamento de si mesmo, destruindo rapidamente qualquer tipo de ligação do tecido social.
Assim, uma pessoa que é incapaz de exercer o juízo crítico, torna-se escrava de seus instintos ou do domínio de outros. Ela é uma presa fácil para manipulações ou reproduções acríticas de atos violentos contra si ou contra outrem. Alguém que não consegue criticar o que vê, sente, ouve ou observa tende a se tornar um mero espelho de reações não elaboradas. Numa escala social, uma sociedade composta por pessoas incapazes de exercer o juízo crítico torna-se nada mais do que um composto de pessoas que funcionam como mero feixe de recíproca reação daquilo que outro ou um grupo impôs. É a partir disso que a história presenciou fenômenos de massa assustadores como o nazifascismo e os totalitarismo stalinista.
Pessoas que não conseguem exercer o juízo crítico podem ser reduzidas aos cães de Pavlov, condicionados repetidamente para salivar ao som de uma sineta sem que o alimento realmente fosse dado. Pavlov, fisiologista russo do fim do século XIX e início do XX, descobriu que condicionamentos repetitivos podem apresentar repostas automáticas sem qualquer necessidade crítica.
Mas, enfim, por qual motivo estamos refletindo sobre o juízo? Recentemente tivemos uma péssima e alarmante notícia em relação à criatividade dos jovens brasileiros. O PISA (sigla em inglês, tal como é mais conhecido o Programa Internacional de Avaliação de Estudantes) colocou o Brasil numa das piores posições acerca da capacidade criativa. Ou seja, a criatividade de alunos brasileiros de 15 anos é uma das piores do mundo[1].
Para dimensionar a capacidade criativa, o Pisa, que é uma prova complexa preparada em série pela OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), busca submeter os alunos a problemas e situações que os provocam a buscar soluções em contextos diversos e multiculturais. Desta maneira, os alunos são estimulados a exercer sua capacidade criativa elaborando hipóteses, desenvolvendo experimentos ou criando projetos para problemas complexos.
No Brasil 54,3% dos estudantes avaliados apresentaram baixo nível de criatividade. Ou seja, não conseguiram resolver problemas sociais e científicos com alguma originalidade ou versatilidade. No geral, o Brasil ficou na 44ª posição entre 57 países membros e parceiros da OCDE, que foram avaliados. Nesse sentido, a nota média dos brasileiros foi 23, enquanto a dos países da organização foi 33. A escala varia de 0 a 60 pontos.
Dentro de um padrão comparativo, o Brasil ficou atrás de países que apresentam sérias dificuldades e precariedades nos seus sistemas educacionais, como por exemplo, Mongólia, Cazaquistão e Jamaica. Se ficou atrás desses, teve a mesma nota média que Panamá, El Salvador, Arábia Saudita e Peru, que não são conhecidos como modelos de desenvolvimento educacional.
É curioso notar que globalmente a média geral foi baixa, o que por si só já acende um alerta para o mundo em relação à educação e seus desafios contemporâneos, principalmente no que toca ao avanço da inteligência artificial, o uso de smartphones e o vício em redes sociais. Há clara percepção da queda no nível de leitura entre os estudantes, o que reflete diretamente na própria questão da capacidade criativa.
Os países com melhor desempenho foram Singapura, Coréia do Sul, Canadá e Austrália, apresentando 41, 38, 38 e 37 pontos respectivamente. Dentre os dez primeiros no resultado do Pisa, cinco são países do continente europeu, dois da Oceania, dois da Ásia e um da América do Norte. Assim, nenhum país da América do Sul, África ou Caribe apareceram na primeira fila.
Nesse diapasão, o exame escancarou uma diferença muito considerável entre países mais ricos e os mais pobres. De acordo com seus resultados, os alunos mais ricos foram melhores no mundo todo, sendo que a diferença em relação aos mais pobres deu-se em torno de 9,5 pontos. Os estudantes mais pobres brasileiros obtiveram uma média de 19 pontos, enquanto os mais ricos de 30 pontos.
É interessante notar que alunas obtiveram melhores resultados do que os alunos. Ou seja, há uma percepção quanto ao gênero no recorte em relação à capacidade criativa. Aponta o exame que 31% das meninas atingiram nível 5 de proficiência, enquanto apenas 23% dos alunos conseguiram o mesmo resultado.
Diante disso tudo, o que se tem é um quadro muito preocupante da educação brasileira. Os estudantes brasileiros são pouco criativos e apenas oferecem respostas óbvias e desenhos simples para problemas propostos que exigem soluções mais diversas ou não tão simplórias. Aliás, os resultados do exame são realmente avassaladores para a educação brasileira quando as percepções quanto ao resultado são colocadas em debate. O exame apontou, por exemplo, que alunos que participam de atividades de artes, teatro, escrita criativa e programação ao menos uma vez por semana, costumam ter desempenho melhor do que os que não frequentam. Além disso, o incentivo dos professores aparece como um dos fatores primordiais para a valorização da criatividade e desenvolvimento dos alunos nas escolas. Ou seja, no Brasil não temos na maior parte das escolas nenhuma coisa, nem outra. É muito raro encontrar escolas que ofereçam projetos multidisciplinares, multifocais e governos que realmente invistam em seus professores, preparando-os melhor e pagando-os bem. O mais comum é vivermos com a realidade da carência, sempre agravada pela violência em diversas regiões do país.
Em um mundo que vive transformações velozes por conta da tecnologia da informação e da comunicação, a percepção que temos é a de que o Brasil não está somente ficando para trás em comparação aos demais países do mundo rico, pois isso já era uma realidade, mas está criando um abismo gigantesco entre eles e a si mesmo. Na corrida pelo futuro, já estamos perdendo há muito tempo.
Todavia, o mais preocupante é que dentro de nossa sociedade é difícil pensar num futuro animador quando nossos jovens são incapazes de pensar criticamente. Pensar criticamente envolve e necessita da criatividade. Crítica e criatividade derivam do mesmo radical e isso não é à toa. Ou seja, se já vivemos numa sociedade violenta, polarizada e cada vez mais pautada pelos discursos de ódio e avalanche de fake news nas redes sociais, como lidar com isso diante de uma sociedade que cada vez mais se torna limitada, acrítica e presa fácil para manipulações? O futuro do país parece sombrio nesse aspecto. Aliás, vale lembrar, como um país pode se desenvolver economicamente sem que seus alunos e professores sejam criativos? Como criaremos soluções inovadoras para problemas que nos assombram como os desastres climáticos, a poluição, a mobilidade urbana, o uso sustentável de recursos, a preservação do meio ambiente e da própria democracia? Talvez estejamos no caminho da sociedade que José Saramago imaginou alegoricamente no seu Ensaio sobre a Cegueira. Precisamos reparar, mas antes é preciso ver o explícito que está diante de nós. Não queremos ser meros cães de Pavlov e nem vivermos vidas tão limitadas, tão restritas, tão pobres, cativas das nossas necessidades e misérias. É preciso agir.
[1] Sobre os resultados do PISA em relação ao Brasil, consultar também https://fundacaopodemos.org.br/blog/a-educacao-e-a-leitura-em-tempos-de-redes-sociais/, último acesso em 18 de junho de 2024.