Senna nasceu no dia 21 de março de 1960, no Hospital Pro Matre, na cidade de São Paulo. Filho de Milton e Neyde Senna da Silva, foi batizado Ayrton Senna da Silva. Era o filho do meio, irmão de Viviane Senna e de Leonardo Senna. Morador de Santana, na Zona Norte de São Paulo, ganhou seu primeiro Kart aos quatro anos de idade, construído por seu pai a partir de um velho cortador de grama.
Sua família conta que a paixão pela velocidade começou desde logo cedo. Ainda pequenino, Ayrton adorava um jipezinho de brinquedo, que foi, na realidade, um dos primeiros veículos que pilotou. “Quando ia comprar sapatos, ele só comprava de um tipo: ´botinas´. E, para escolher o modelo certo, ele vestia o par, corria pela loja e, de repente, parava de forma abrupta, como se estivesse querendo testar os freios. Se escorregasse, as botinas não eram boas, e ele experimentava outro par”[1]. Parece que Ayrton sabia desde logo qual seria a sua paixão. Ele mesmo recordava que “eu fazia aquilo para mim mesmo, pelas minhas próprias emoções. Não sabia nada sobre carros de corrida ou campeonatos – mal sabia quem eu era. Era minha diversão pisar no acelerador, no freio, pilotar e sentir emoções”[2].
Esse foi o menino que amava carrinhos, gostava de entender as máquinas (tanto que desmontou seu Kart aos doze anos para saber como funcionava e o remontou sozinho, inteiramente) e com elas tinha uma relação de profunda compreensão mútua. Senna parecia mesmo alguém que nasceu para a velocidade. Não é à toa que se tornou multicampeão e até hoje deixou marcas que não foram alcançadas. Assim, falar do tricampeão de Fórmula 1 é tarefa difícil, afinal, tanto já se falou e ainda se fala sobre ele. Mas, o que na verdade faz com que tanto se fale dele, talvez seja a sua permanência, mesmo depois de 30 anos; permanência que é fruto do seu impacto em cada um de nós, e é sobre isso que eu vou aqui falar: o impacto de Senna na minha vida e a razão dele ser o que é para cada brasileiro que o viu ao vivo ou que simplesmente ouviu dele falar por meio de seus pais.
Senna teve uma carreira tão veloz quanto ele. Foi curta, assim como curta foi sua vida. Foram praticamente dez anos de muito sucesso nos trinta e quatro que viveu, quando entrou, no ano de 1984 para valer na principal categoria do automobilismo. Muito embora tenha também se destacado em outros campeonatos e vencido competições, foi na Fórmula 1 que alcançou todo o estrelato.
Eu nasci na década de 1980, justamente quando Senna começava a se tornar o Ayrton Senna do Brasil. Praticamente acompanhei toda a sua vitoriosa carreira na Fórmula 1, podendo ter visto e lembrado bem dos dois últimos títulos mundiais que venceu, principalmente da célebre corrida de Interlagos no ano de 1993, quando a torcida invadiu a pista e literalmente o abraçou. Senna era realmente tudo aquilo que queríamos ser. Não havia uma criança de minha geração que não gritasse, ao pilotar uma bicicleta ou uma motoca qualquer, ao ultrapassar outra criança, o nome de Ayrton, imitando, aos berros, Galvão Bueno. Acordar cedo aos domingos era obrigatório, principalmente para poder ter a chance de ouvir o tema da vitória, caso Ayrton vencesse a corrida, o que era mais comum do que incomum. Quando ele tocava, o domingo prometia ser mais alegre ainda nas tardes de futebol.
Não é difícil de imaginar que aquelas manhãs de domingo reuniam pais e filhos, irmãos e amigos para ver Senna correr. Mas, por qual motivo de repente o país do futebol havia se tornado o país do automobilismo? Não. Não era isso. O país do futebol continuava sendo o país do futebol. O que havíamos realmente nos tornados era o país de Ayrton Senna. Não era o automobilismo que nos fazia acordar cedo, era ele.
Senna era realmente tudo aquilo que queríamos ser como nação. A década de 1980 foi muito difícil para os brasileiros, assim como a primeira metade dos anos 1990. Eram tempos de inflação, uma longa transição da ditadura para a democracia, muita desigualdade, miséria e nada que fizesse cada brasileiro se orgulhar do país que tinha. Éramos conhecidos como o país dos meninos de rua, que maltratava demais suas crianças, da pobreza e da violência. Lutávamos para combater a miséria, diminuir a mortalidade infantil e alfabetizar os pequenos brasileiros. Não era um país do qual estivéssemos muito contentes. Além disso, não vencíamos uma Copa do Mundo desde 1970. Pelé era nosso último herói. Havíamos sofrido demais com a derrota em 1982 da seleção de Telê Santana, que havia encantado o mundo. 1986 e 1990 não foram nada animadores, afinal, não só assistimos o gênio argentino levar a sua seleção para a glória, como duramente fomos eliminados por ele e Caniggia em 1990. Ou seja, estávamos tristes. As vitórias coletivas no vôlei e no basquete nos deixaram felizes, mas pareciam não ser suficientes, porque precisávamos de um herói, alguém em quem se inspirar. Foi nesse contexto todo que apareceu aquele rapaz da zona norte de São Paulo, com sua obstinação, sua perícia, sua coragem, seu carisma sereno e principalmente a sua humanidade. Senna era por definição empático. Ele tinha uma sincera preocupação em dar às crianças brasileiras as mesmas oportunidades que tivera na vida.
Individualmente, Senna foi uma esperança para nós, porque ele nos dizia que se lutássemos como ele lutava, se batalhássemos como ele incansavelmente batalhava, poderíamos vencer e sermos os melhores. Ele era isso, era aquilo que podíamos e queríamos ser. Senna foi o resgate da autoestima de uma nação. Talvez, arrisco a dizer, nem o resgate em si, mas a construção da autoestima de um país que sonhava em ser melhor do que era.
Para as crianças daquela época, era o herói da velocidade e a certeza de que, mesmo diante de ingleses, franceses, alemães ou norte-americanos, seríamos melhores e venceríamos, porque apesar de toda superioridade financeira e desenvolvimento, Senna era capaz de derrotá-los.
Mas, tudo isso foi interrompido naquela manhã de domingo do dia 01 de maio de 1994. Tenho muita dúvida se qualquer pessoa da minha geração, que tinha entre os dez e poucos anos naquela época, não se lembre perfeitamente de como foi aquele dia. Poucos são os dias na nossa jornada que podemos lembrar com precisão. O que fizemos pela manhã, o que almoçamos naquele dia, quem encontramos, para onde fomos, dentre tantas coisas que podem ser feitas em vinte e quatro horas, poucos são os dias em que conseguimos realmente lembrar com cenas claras em nossa memória. O dia da morte de Senna foi um desses para essa geração. Eu me lembro perfeitamente desse dia doloroso.
O ano de 1994 foi um ano em si muito marcante. Além de perder Senna, perderia meu querido avô poucos meses depois. Era muito para uma criança. Afinal, em poucos meses eu tinha perdido dois dos meus heróis. Curiosamente, porque a vida tem dessas coisas, meu avô foi sepultado no mesmo cemitério que Ayrton havia sido enterrado. Me lembro com tristeza, até hoje, da imensidão de flores que circundava o túmulo de Senna. Toda vez que ia visitar meu avô, aproveitava e dava um pequeno “oi” para o meu herói das pistas. Não era incomum ver turistas das mais diversas origens indo visitar o cemitério apenas para prestar uma homenagem a Ayrton. Isso sempre me impressionou. Como um homem era capaz de mover desconhecidos de lugares distantes para depositar uma flor em seu túmulo?
Aliás, desde que existo nessa jornada, nunca vi tamanha comoção pela morte de uma pessoa como vi quando Senna não conseguiu completar a maldita curva Tamburello, em Ímola. O país chorou junto, literalmente. Desde a espera angustiante pela notícia que ninguém queria ouvir até o seu triste cortejo em São Paulo. O noticiário inteiro só falava de Senna. Nem os jornalistas e cronistas da época conseguiam esconder a emoção de cada um ao dar uma notícia sobre o adeus. Choramos juntos, realmente todos juntos, e até nesse momento Senna nos uniu como nação. Todo brasileiro lamentou profundamente a perda do ídolo. Não acredito que exista alguém que tenha visto, após o acidente, a cena de Ayrton mexendo a cabeça ainda dentro do carro da Willians e não tenha torcido para que ele se levantasse e saísse daquele monte de ferro destruído. Até hoje ecoa na minha memória a voz de Galvão Bueno dizendo: “Senna mexeu a cabeça!”. Lembro-me de ter ligado para meu avô, naquele telefone fixo com discador, cuja ligação demorava para ser completada, e ele ter me dito que o Senna havia se machucado “feio”, mas tínhamos que esperar. O neto aflito mal sabia que essa seria também uma das últimas memórias afetivas íntimas entre ele e seu avô.
Poucas vezes vi meu pai chorar na vida. Sempre tive a impressão de que era uma forma dele mostrar para nós a força que ele sempre realmente teve e o controle de segurar suas emoções. Mas, Senna também o deixou muito triste. E aí veio o velório. A cena do caixão com o capacete amarelo em cima da bandeira do Brasil; aquela mesma bandeira que ele empunhava com orgulho a cada vitória, a mesma que ele mal conseguiu segurar quando venceu o grande prêmio de Interlagos com uma marcha só. Aquela bandeira parecia, naquele momento, mais pesada do que nunca: cobrindo o caixão, fechado e sem que pudéssemos ver seu rosto.
O ano de 1994 ainda seria marcado pela vitória da seleção brasileira nos Estados Unidos. Depois de tanto tempo o desejado tetracampeonato veio. Mas, por mais que tenhamos ficado felizes demais, ele veio com um pouco de tristeza. Logo após Roberto Baggio ter mandado a bola para os confins da Via Láctea e Galvão Bueno ter começado a gritar o famoso e eterno “é tetra! é tetra!” aos abraços com Pelé, enlouquecidos, o tema da vitória de Ayrton começou a tocar. Lembro-me perfeitamente de novamente chorar naquele ano. Feliz por estar vendo a minha seleção ganhar uma Copa do Mundo pela primeira vez, mas triste porque a saudade dele já começava a bater e a se apresentar como alguém que tinha chegado para ficar de vez. Quem viu, por acaso, consegue se esquecer dos jogadores da seleção, com o semblante emocionado, carregando a faixa “Senna aceleramos juntos… o tetra é nosso”? E aquele tema da vitória tocando enquanto Galvão, emocionado, falava…
Aquele ano de 1994 para mim foi como o ano de 1968 para Zuenir Ventura, ele nunca terminou. Senna ficou e ficará para sempre marcado fortemente naqueles que o viram e continuará a inspirar e encantar aqueles que apenas dele ouviram falar, mas que, pelo menos, podem nos filmes e arquivos experimentar um pouco da emoção do que ele foi e do que ele é. O homem Ayrton Senna se foi há trinta anos, mas sua figura parece continuar a crescer entre os brasileiros. Ele continuará a ser o símbolo de coragem, bravura, persistência, disciplina e empatia. Seu legado é gigante, assim como a saudade dele.
[1] In Hilton, Christopher. Ayrton Senna. Uma lenda a toda velocidade. Uma jornada interativa. Global Editora, 2009. p. 18.
[2] Idem.