Recentemente o Brasil teve uma boa notícia em relação ao número de crianças e adolescentes que vivem na pobreza em suas múltiplas dimensões. Um estudo feito pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), que cobriu os anos de 2017 a 2023 e foi divulgado no início de 2025, demonstrou que houve uma considerável queda dessa população, mais precisamente de 62,5% para 55,9%. Ou seja, em 2017 eram 34,3 milhões de crianças e adolescentes em situação de pobreza; em 2023 o número caiu para 28,8 milhões.
Embora esse dado seja muito importante, é extremamente preocupante o ainda altíssimo número de crianças e adolescentes que vivem múltiplas privações. Como afirma Amartya Sen, é impossível pensar em um futuro justo para essas crianças e adolescentes, que seja realmente fruto de suas livres escolhas, se estão atreladas a precariedades básicas e graves desde o início de suas vidas. Não há como pensar em liberdade e garantia de direitos com uma situação de pobreza tão profunda. Nesse sentido, não é qualquer exagero afirmar que contra essas crianças há uma violência estrutural desde o princípio.
O estudo do UNICEF tomou o conceito de pobreza multidimensional, que abarca o acesso à educação, informação, trabalho, habitação, água e saneamento e renda. Ele tem como base os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PnadC), sendo que a dimensão da alimentação também é tomada com fundamento na Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF).
Houve sensível melhoria nos aspectos de renda e acesso à informação, tomados como os principais responsáveis pela melhora total. De acordo com o estudo, no ano de 2017, 42,3% de crianças entre 0 e 17 anos sofriam privações em relação a saneamento básico. Já em 2023 esse número caiu para 38%. Em relação às privações de renda a queda foi de 25,4% para 19,1%; quanto ao acesso à informação foi de 17,5% para 3,5%. Ou seja, uma considerável melhoria.
Entretanto, no que toca a educação, um dos mais fundamentais condicionantes para o desenvolvimento e futuro das crianças e adolescentes, os dados mostraram uma oscilação ao longo dos anos com avanços e retrocessos. No ano de 2017, 8,5% das crianças e adolescentes sofriam privações em relação à educação. Já no ano de 2019 houve uma queda para 7,1%. Contudo, no ano de 2021 tivemos um retrocesso, tendo o número de crianças e adolescentes privados totalizando 8,8%. Todavia, já em 2023 esse número voltou a cair, ficando em torno de 7,7%
Em relação à segurança alimentar foi obtida uma importante melhora, pois no ano de 2018 o total de crianças e adolescentes em situação de insegurança resultava em 50,5%, tendo caído para 36,9% em 2023. As políticas sociais de renda mínima foram essenciais para essa melhora.
Todavia, ao se comparar crianças e adolescentes brancas com as negras, a pobreza é maior para o segundo grupo. Isto é, enquanto a pobreza para crianças e adolescentes brancas resultou em 45,2%, entre as crianças e adolescentes negras ela supera os 63%.
Esses dados do UNICEF mostram que apesar das melhorias há um enorme caminho ainda a ser traçado. A pobreza multidimensional deve ser um foco primário na abordagem da proteção das crianças e dos adolescentes no Brasil, uma vez que nossas disparidades e desigualdades ainda são muito profundas. Não há como combater a violência contra as crianças se isso não for tratado de uma maneira intersetorial. É necessário não somente proteger, mas fomentar, estimular e desenvolver políticas públicas voltadas para cada um dos objetos que compõe o conceito de pobreza multidimensional. Vale ressaltar que o acesso a um meio ambiente saudável deve ser incluso no conceito, uma vez que as alterações climáticas e o aquecimento global têm agravado situações de pobreza, como também provocado inúmeras tragédias que afetam principalmente as populações mais carentes e desprovidas de proteção.
Além disso, é preciso pontuar que o período da pandemia foi extremamente complexo e seus efeitos ainda estão sendo digeridos, sentidos e compreendidos pelas sociedades e seus pesquisadores. Não há quaisquer dúvidas de que países como o Brasil tiveram retrocessos na educação, por conta da desigualdade de acesso e das diferenças regionais. Aliás, em relação às desigualdades regionais, muito embora Norte e Nordeste sejam as regiões mais carentes e que possuem maiores desafios pela frente, as reduções alcançaram até 10 pontos percentuais em relação à pobreza multidimensional entre 2017 e 2023.
É importante também lembrar que a violência direta e em um sentido estrito agravou-se por conta do Covid-19. Nesse sentido, o Relatório Luz da Sociedade Civil sobre a Implementação da Agenda 2023 no Brasil apontou que a meta 16.2 foi registrada em seu quinto ano consecutivo em estado de retrocesso. Essa meta dispõe sobre o objetivo de acabar com abuso, exploração, tráfico e todas as formas de violência e tortura contra crianças. Esse relatório, cujo início se deu em 2017, traduz uma série de levantamentos e estudos para a compreensão de um panorama geral sobre as políticas sociais, ambientais e econômicas do Brasil. É um importante documento que acompanha o status de execução e cumprimento dos ODS (Objetivos do Desenvolvimento Sustentável). Desta maneira, uma meta é considerada em estado de retrocesso quando as políticas ou ações voltadas a ela são interrompidas, alteradas de maneira negativa ou sofrem escassez orçamentária.
No ano de 2023 foram registradas 228.075 denúncias de violências contra crianças e adolescentes, totalizando 1.313.407 violações. Isto é, violências físicas, sexuais, psicológicas, educacionais etc. De acordo com o relatório, entre 2015 e 2021 foram notificados 83.571 casos de violência sexual conta crianças de zero a nove anos de idade. Em 3.386 desses casos a violência foi cometida contra crianças de até um ano de idade, enquanto 119.355 contra adolescentes e jovens entre 10 e 19 anos.
Esses números são estarrecedores, pois há uma plausível hipótese de que existe uma grande subnotificação de casos, principalmente por conta de violências contra crianças, que na maior parte das vezes ocorrem no silêncio das casas onde moram, envolvendo parentes próximos, principalmente pais, tios ou primos. Além disso, a nova realidade das redes sociais e do uso da internet precisa ser trabalhada em relação ao aspecto protetivo da criança e do adolescente. Há a falsa impressão de que as redes sociais são ambientes seguros pelo fato de que as crianças permanecem em casa utilizando o aparelho de celular. Contudo, há um aumento sensível de casos de pedofilia, abuso, cyberbullying favorecidos pelo descontrole legal e por falta de orientação daqueles que deveriam proteger suas crianças e adolescentes.
Em muitos casos as crianças são utilizadas como produtos a serem vendidos na sua intimidade sob o disfarce simpático de “conteúdo” em perfis que as exploram. Crianças são expostas em sua rotina, o que inclusive aumenta a possibilidade de violadores terem a ciência de seus costumes, do que gostam e sobre os lugares que frequentam. Nos chats silenciosos dos celulares, adultos predadores conversam com crianças, que não possuem a menor dimensão do risco que correm. É preciso avançar nessas pautas para que as políticas de proteção sejam condizentes com a realidade tecnológica em que hoje vivemos. Em 2023 foram registrados 71.867 casos de exploração sexual e abuso infantil na internet.
Além desses desafios, de acordo ainda com o relatório, a última década foi marcada pela redução orçamentária em relação às políticas de proteção, mesmo com um acréscimo entre o ano de 2023 e 2024. Ou seja, embora o orçamento de 2024 tenha sido de R$ 76 milhões, enquanto o de 2023 apenas R$ 15 milhões, o valor continua sendo tomado como insuficiente. A falta de destinação de recursos evidencia não somente o desinteresse público, mas também o despreparo para combater as violências contra as crianças e adolescentes.
É importante lembrar que nesse quadro todo algumas medidas foram tomadas positivamente com o escopo de proteger as crianças e adolescentes e devem ser mencionadas. A lei 14.811/2024 instituiu medidas de proteção à criança e ao adolescente contra a violência nos estabelecimentos educacionais ou similares, avançando no debate sobre bullying e cyberbullying. Além dela, o Plano Plurianual (PPA) 2024/2027 prevê programas de inclusão, fundamentais para o avanço e melhoria na proteção.
Entretanto, diante de dados tão preocupantes, é preciso não somente repensar o que estamos fazendo no âmbito da proteção da criança e do adolescente, como também compreender que em muitos setores estamos ainda muito atrasados. Políticas voltadas para primeira infância são urgentes, assim como a compreensão de que medidas pontuais podem até trazer um ou outro resultado, mas sem as medidas estruturais, de caráter intersetorial, pouco conseguiremos avançar realmente. Se não compreendermos que assim como a violência é multidimensional, as políticas públicas precisam também ser. Ou seja, elas devem ser forjadas no âmbito da intersetorialidade, envolvendo saúde, educação, segurança e principalmente redução das desigualdades e disparidades.
Além disso, é fundamental entender que a intersetorialidade efetiva deve também envolver a junção de esforços entre os entes federativos do país. É necessário que municípios, estados e a união estejam em sintonia, desenvolvam programas em conjunto e destinem recursos para que as crianças e adolescentes possam realmente ter um futuro saudável no Brasil. Nesse sentido, é fundamental que os mais de cinco mil municípios do país façam o seu trabalho de diagnóstico, pois são aqueles que mais perto estão dos pequenos brasileiros em desenvolvimento e de suas necessidades. O executivo e o legislativo municipais são importantíssimos para que as políticas públicas sejam moldadas de maneira adequada. Sem isso, tanto estado, quanto a União, destinarão recursos que no longo prazo não serão suficientes para proteger e auxiliar esses brasileiros em formação[1].
Além disso, a compreensão da necessidade multissetorial não exclui a sociedade civil e as famílias propriamente. É necessário trabalhar em conjuntos com as organizações não governamentais voltadas para a proteção da infância e da juventude, que produzem inúmeros estudos, relatórios e iniciativas importantes para não somente servir de material para o poder público, como também para conscientizar e desenvolver estratégias eficazes junto às comunidades.
Às organizações não governamentais somam-se institutos e organizações internacionais que não só podem ser bons destinadores de recursos em parcerias realizadas em conjunto, como também um fundamental locus de aprendizado sobre políticas e programas adotados em outros países, que foram eficazes e trouxeram bons resultados naquilo que toca a proteção e desenvolvimento das crianças e adolescentes.
Desta maneira, é necessário partir do mais local para o mais geral, daquilo que imediatamente se relaciona aos problemas e angústias das crianças e adolescentes de uma localidade, para aquilo que pode auxiliar mesmo estando geograficamente distante. Enquanto esses esforços não forem adotados, as medidas que serão tomadas no Brasil sempre serão insuficientes para proteger nossas crianças e nossos adolescentes, principalmente diante dos novos desafios que se desenham numa sociedade complexa, conectada e cada vez mais violenta.
[1] O município tem um papel fundamental em todo o desenvolvimento das políticas públicas voltadas para a proteção da infância e da juventude. É de fundamental importância fortalecer a atuação dos Conselhos Tutelares, que são responsáveis por zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente que estão expostos a situações de vulnerabilidade e violação de direitos. Na cidade de São Paulo, por exemplo, existe o Fundo Municipal de Direitos Humanos e Cidadania, que coordena e articula políticas voltadas para a promoção dos direitos humanos em geral, mas também aqueles que tocam as crianças e adolescentes. Além disso, vale lembrar a existência dos Centros de Referência Especializados de Assistência Social, que são fundamentais na atuação direta junto às famílias e indivíduos que vivem em situação de risco ou violação de direitos. No âmbito municipal paulistano ainda se encontram os Serviços de Acolhimento, que oferecem abrigo temporário para crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade, assim como Programas de Atendimento, que visam a promover iniciativas para o desenvolvimento saudável e a inclusão social de crianças e adolescentes. Essas estruturas, aqui mais detalhadas a título exemplificativo, são fundamentais no âmbito de qualquer município, pois não somente são aquelas capazes de atender diretamente e com mais velocidade, como também são as que mais podem compreender as necessidades e vulnerabilidades locais de cada comunidade. Fortalecer seus funcionários e capacitar seu quadro humano é sempre algo urgente.