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A Resenha: Viver

A Resenha: Viver

No ano de 1952 um dos cineastas mais importantes da história do cinema, Akira Kurosawa (1910-1998), dirigiu e escreveu um dos seus filmes mais bonitos: Ikiru. Viver (Living) é uma refilmagem dessa obra clássica do mestre do cinema, adaptada e com o roteiro escrito por nada mais, nada menos do que Kazuo Ishiguro, vencedor do prêmio Nobel de Literatura em 2017. Esses elementos já seriam suficientes para dar um toque de qualidade para o filme dirigido pelo sul-africano Oliver Hermanus, mas a atuação de um dos atores mais queridos do cinema, que pouca gente conhece pelo nome, Bill Nighy, é primorosa, realmente esplêndida, digna de fazer Viver uma experiência inesquecível. Bill foi indicado ao Oscar de melhor ator por sua magistral interpretação.

Bill Nighy vive o Senhor Williams, um homem comum, que trabalha numa repartição pública da prefeitura de Londres. Williams é o que podemos chamar de burocrata padrão. Isto é, um senhor respeitável, pai de família, que tem uma vida pouco agitada, porém regrada e “correta”. Aliás, curiosamente Oliver Hermanus escolheu refilmar Ikiru na Londres de 1953, um ano após a data de lançamento do filme de Kurosawa. Assim, Williams é esse homem ordinário da Londres do início dos anos 1950, bastante conservadora e muito longe de qualquer transgressão digna de uma contracultura ou de, simplesmente, aceitar diversões à luz do dia.

Williams comanda o Departamento de Planejamento da Prefeitura de Londres de maneira metódica, entediante e quase como qualquer burocracia espalhada pelos países do mundo: cheias de processos, trâmites, fases e muito desconectadas das pessoas a quem, ao menos na teoria, servem. As pilhas de papéis, petições e processos se amontoam nas mesas de Williams e de seus funcionários, que trabalham em silêncio e sem parecer resolver realmente alguma coisa. Dentre os funcionários de Williams dois chamam a atenção, o novato Peter Wakeling, interpretado pelo expressivo e promissor Alex Sharp, entusiasmado pelo seu novo emprego e ainda imune aos vícios da burocracia, e pela jovem senhorita Harris, vivida pela atriz Aimee Lou Wood, alegre e sonhadora, que busca ser feliz em outro emprego.

A vida de Williams vai seguindo seu rumo monótono, completamente engolido pela rotina, até que numa consulta médica recebe a terrível notícia de que não tem mais muito tempo por conta de um câncer de estômago. Esse é o momento de inflexão da história, pois é nele que Williams começa a ver sua vida como um filme em sua mente e começa a refletir sobre o que fazer no pouco tempo que lhe resta.

Williams sente a dor que todos nós sentimos quando temos qualquer contato com a condição da mortalidade humana. Mas, ele sente isso diante da própria morte que, para ele, se vislumbra próxima e certa. Esse já é um dos momentos de profunda reflexão que Viver nos convida a ter: como seríamos se soubéssemos a data, mesmo que presumida, de nossa morte? O que faríamos? Todos nós sabemos que vamos morrer um dia, mas a total falta de ciência de quando isso acontecerá nos traz um falso conforto, mas ainda sim um conforto, de que temos supostamente muito tempo pela frente. Williams não tem mais esse conforto para enganá-lo. A curtíssima vida que ainda tem pela frente urge.

Diante disso, deixa de ir à repartição e simplesmente passa a pensar no que fazer com aquilo que lhe resta. Em um primeiro momento, num café, escuta uma conversa de um homem, Senhor Sutherland, com uma mulher sobre a dificuldade que tem em dormir. Williams, que está próximo do sono eterno, resolve conversar com Sutherland e oferecer seus medicamentos para que ele consiga descansar e finalmente dormir. Williams conta a ele que tem uma doença terminal e que simplesmente não sabe o que fazer com o tempo que lhe resta. Essa é uma ironia do filme e uma provocação a nós mesmos. Antes da ciência da morte, Williams parecia saber muito bem o que tinha que fazer com seu tempo e com sua vida.

Assim, Willians sai com esse homem para desbravar a noite com bebedeira e música. Já cansado e com sono, pede para cantar uma bela música do folclore escocês sobre uma árvore, as pessoas e suas memórias ao redor dela. Ele lembra de sua falecida esposa e acaba sentindo uma enorme tristeza. Nos dias que seguem, continua a não ir ao trabalho e, coincidentemente, encontra a senhorita Harris na rua, com quem acaba passando a tarde conversando. Sua jovem colega de trabalho confessa a ele que havia lhe dado um apelido curioso no trabalho; chamava seu chefe de Senhor Zumbi. Williams reflete sobre o apropriado apelido, uma vez que na verdade a vida tinha mesmo feito dele um morto vivo. Assim, por meio dos sonhos, desejos e da vontade de viver da senhorita Harris, simplesmente percebeu que diante do pouco tempo que tinha, havia perdido muito, mas muito tempo vivendo uma vida quase que morta. A morte, ironicamente, o tinha dado a chance de viver.

Diante disso, Williams volta determinado ao trabalho para fazer com que realmente seja útil. Havia um grupo de mulheres que há tempos cobrava da prefeitura de Londres a construção de um parquinho para crianças numa pequena localidade da cidade. Ninguém dava atenção para a demanda delas e todos na prefeitura ficavam empurrando de um setor para outro, sem na verdade querer realmente ajudar. Finalmente Williams percebeu o absurdo que isso era e o quanto desconectado do mundo estava. Como legado de vida, faz de tudo para que o parquinho seja construído. A cena final dessa trajetória é um dos momentos mais belos do filme.

Viver é, assim, uma tocante história sobre um homem cuja vida ganhou sentido por conta da morte. É uma poesia sobre o que somos, nossa condição e toda a nossa fragilidade. Aliás, quantos de nós deixamos, como Williams, nos sugarmos durante nosso tempo pela rotina do dia a dia, pela monotonia do trabalho e dos círculos nos quais estamos inseridos, nos esquecendo de simplesmente olhar ao nosso redor e nos conectar com o mundo e com as pessoas? Quantos de nós esquecemos que nosso trabalho e nossa vida não têm o menor sentido se não estiverem ligadas às demais pessoas e que tudo um dia ficará no passado e desaparecerá? Viver nos ensina que a única diferença entre nós, entre mim e você é o tempo que temos. Ou melhor, o pouco tempo que temos, pois em relação ao resto, sonhamos e sofremos igualmente.

 

 

 

Observação: Esse conteúdo não representa, necessariamente, a opinião da Fundação Podemos.

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