Uma genealogia da “população em situação de rua”: A Terceira Margem das Instituições” é um convite para aqueles que querem ver outro lado das pessoas que fazem das ruas a sua morada.
Focando na população de rua, Giovanna Olinda dos Santos Bernardino reconstrói a história dos desviantes, passando, no capítulo 1 pela mendicância, no capítulo 2, pelo vadio, e, por fim, no capítulo 3, pela população de rua.
Fruto de uma dissertação de mestrado, o livro mescla princípios metodológicos de Michel Foucault e Walter Benjamin. Analisando criticamente as relações de poder que se colocam nas vidas daqueles que habitam as ruas, Bernardino traz dados que nos comprovam que essa população sempre esteve presente na história moderna e, mais que isso, sempre houve uma tentativa institucional de “domar” o “problema”.
Bernardino nos oferece um olhar sensível e aguçado para uma questão que permeia a vida daqueles que vivem nas grandes cidades: a população que habita a rua. Em seu primeiro capítulo, a autora se debruça sobre a mendicância e a moral, apontando que o caminho Ocidental para lidar com essa questão foram as instituições, por meio de internamentos e prisões.
Já no segundo capítulo, o tema é o do vadio que, como constrói a autora, desafia as bases de uma sociedade que buscava ser moderna, como o Brasil. Nesse percurso, Bernardino nos aponta que o vadio nasce quando o trabalho toma centralidade na vida das pessoas. Isto é, a moral e o trabalhador são as bases da criminalização do vadio.
O termo criminalização aqui não é uma hipérbole. Até os dias atuais, como mostra a autora em seu terceiro capítulo, o Decreto-Lei 3.688/41 ainda pune a “vadiagem”, isto é, aqueles que se entregam “habitualmente à ociosidade, sendo válido para o trabalho, sem ter renda que lhe assegure meios bastantes de subsistência, ou prover à própria subsistência mediante ocupação ilícita” (Lei de Contravenções Penais, art. 59). Por outro lado, na primeira década do século XXI ficou revogado o artigo consecutivo, que criminalizava também a mendicância.
Mas quais as mudanças que ocorreram desde a Constituição Federal de 1988? A universalização dos direitos. Se até esta data os direitos eram condicionados à posição de trabalho, depois, busca-se a universalização dos direitos do art. 5º da CF. Isso não quer dizer que deixou de haver uma institucionalidade perante essas pessoas, mas que o ponto de vista passou a ser diferente. Visa-se, por meio da moradia, sobretudo, combater este “problema”.
Mas o que a etnografia de Bernardino nos mostra é que há aqueles que desafiam a todo momento a ordem vigente por fazer das ruas a sua morada. São pessoas que desenvolvem seus próprios hábitos, constroem e até mesmo se mudam. A sensibilidade da autora é latente no seu percurso etnográfico. A capacidade de se aproximar e se perder e, diferentemente do esperado, de não se distanciar da sua pesquisa é exatamente o ponto inovador de sua metodologia.
Utilizando-se de Foucault, o tão consagrado autor francês, Bernardino nos dá indícios – que são costurados na última parte do livro – de como o poder age nessas dinâmicas sociais. Como o “desviante” desafia a ordem a todo momento. Como este pertence à Terceira Margem, fazendo uma referência ao conto do brasileiro Guimarães Rosa.
O livro é fácil de ler, apesar de utilizar conceitos foucaultianos e benjaminianos, que são de difícil compreensão. A didática de Bernardino também nos chama a atenção ao se embrenhar por caminhos tão tortuosos e difíceis com a devida leveza que, julgo dizer, apenas ela conseguiria fazer.
O livro – que teve tiragem controlada – é, além de tudo, um monumento artístico, que conta com os retratos e registros fotográficos feitos pela autora. A belíssima obra de Bernardino nos mostra que os pesquisadores brasileiros estão sempre ávidos para desenvolver as mais belas produções de nosso país.