Um caleidoscópio humano, uma profusão de imagens e de sons que levam o telespectador a viver uma experiência fantástica no mundo de uma das maiores figuras da história cultural da humanidade. Moonage Daydream (2022) é um filme sobre David Bowie, criado à maneira mais próxima do que a sua complexidade artística representou e ainda representa no mundo da cultura popular. Brett Morgen, diretor e produtor documental norte-americano, venceu o Grammy em 2024 de Melhor Filme Musical Longo com sua imersão profunda na obra de David Bowie, que não poderia ter recebido melhor título, afinal trata-se mesmo de um sonho distante num curto espaço de tempo.
Morgen construiu seu filme sobre Bowie em parceria com o espólio do artista. Aliás, foi o primeiro filme sobre ele que contou com a contribuição dos herdeiros, que detém os direitos em relação à sua imagem e obra. Retratar Bowie seria uma tarefa difícil por definição, diante da complexidade de sua figura. Aliás, nesse sentido se deu o malfadado filme Stardust (2020), que retratou a ascensão de Bowie do anonimato ao início do estrelato. Embora esse filme não seja de todo ruim, por não ter tido a aprovação do espólio do autor, não pôde contar com as músicas do artista, o que empobreceu demais a narrativa e toda a criação. Em relação a isso Brett Morgen teve melhor sorte e pôde utilizar todo o arsenal espetacular de imagens e sons de Bowie. Contudo, seria mesmo injusto justificar o feliz resultado de Moonage Daydream apenas por esse fato. Afinal, Morgen soube como ninguém entender que sobre Bowie nada poderia ser convencional ou usual, ele teria que ousar, ser criativo, confundir, explicar, contradizer para conquistar o telespectador. Nada sobre Bowie pode ser muito simples, porque ele sempre foi um paradoxo em si, popular e complexo ao mesmo tempo.
Assim, Moonage Daydream parece uma coleção de recortes audiovisuais que vão se encaixando aos poucos e vão ganhando um sentido linear, enquanto o próprio Bowie, por meio de trechos de suas entrevistas, vai nos conduzindo em seu universo de criatividade. O mais impressionante é que em nenhum momento Brett Morgen teve que apelar para o óbvio, como, por exemplo, dar informações técnicas sobre álbuns do cantor ou faixas de extremo sucesso. Aliás, em alguns momentos ele cruelmente interrompeu canções que o telespectador queria ter escutado até o final, mas logo começa com outra que já prende novamente e volta a fascinar quem está ali preso, hipnotizado, assistindo.
Bowie, que infelizmente nos deixou precocemente em 2016, vítima de câncer aos 69 anos, foi um dos artistas mais complexos e completos que já existiu. Sua carreira envolveu não só a música em si, mas também a sua atuação no cinema, numa variedade de filmes em que encarnou desde Jareth, o rei dos duendes, numa produção infantil musical junto ao criador dos Muppet Babies, Jim Henson, a Pôncio Pilatos, no polêmico e magistral A última tentação de Cristo, de Martin Scorsese. Além disso, foi importante e muito prolífico nas artes plásticas, no teatro, na mímica e na moda. Aliás, seu impacto cultural na moda e nos costumes foi particularmente interessante e grandioso. Bowie chocou e inovou, brincou com o gênero, fez piada dos tradicionalismos conservadores, causando aversão e interesse ao mesmo tempo. Bowie, como costumavam dizer, era um camaleão, nunca igual, nunca idêntico, dificilmente reconhecível entre um álbum e outro. Talvez sua marca mais concreta seria mesmo a sua capacidade de experimentar, ousar e abordar temáticas e influências que em hipótese alguma representavam o mainstream do momento. Entre Londres, Los Angeles, Berlim e Nova York, Ziggy Stardust, Alladin Sane, The Thin White Duke, colecionou influências e recortes que ditaram seu leque multidimensional de manifestações artísticas. Bowie gostava de brincar dizendo que ele não havia criado nada, que ele apenas copiava, mas pegava tudo que ouvia e observava e transformava em algo melhor.
De qualquer maneira, Bowie era intenso. Sua intensidade parecia mesmo estar ligada à sensação que ele mesmo sempre abordou em relação à finitude da vida. Em suas próprias palavras afirmava que não sabia se isso seria algo bom ou ruim para ele, mas que sempre havia sentido uma terrível percepção sobre a nossa mortalidade e por isso, se a vida fosse mesmo apenas uma, que ela fosse ao máximo experimentada. Não há dúvidas de que isso foi marcante em sua trajetória, paralelamente ao medo que sempre teve de enlouquecer e perder completamente o discernimento, principalmente por ter vivido isso em sua família. Essa intensidade e essa atmosfera de finitude foram bem captadas por Brett Morgen, que em alguns momentos nos faz refletir justamente sobre a nossa condição de passageiro diante da imensidão da vida, com cenas que misturam a infinita dimensão do cosmos à nossa pequenina passagem pela Terra.
Assim, Moonage Daydream não é somente uma imersão na obra de David Bowie, mas também uma experiência reflexiva que vale muito a pena para quem quer conhecer um pouco sobre o tamanho desse homem que, mesmo tendo passado tão rapidamente pelo planeta, deixou tanto com sua obra e amou mais do que nunca o fato de ter vivido: “Todas as pessoas, não importa quem sejam, gostariam de ter apreciado mais a vida. O importante é o que você faz na vida. Não é quanto tempo que você tem, ou o que desejaria ter feito. A vida é fantástica”.