Fome de Viver (1983) foi o primeiro e mais importante filme dirigido por Tony Scott, irmão do consagrado diretor Ridley Scott (Gladiador, Blade Runner, Alien), que tragicamente nos deixou no ano de 2012, ao se jogar de uma ponte em Los Angeles. Embora Tony Scott tenha dirigido também o famoso Top Gun – Ases Indomáveis, que sedimentou a fama de Tom Cruise, Fome de viver se tornou seu filme mais influente. Quando foi lançado, recebeu muitas críticas e não foi um real sucesso de bilheteria, mas, com o tempo, o filme foi se solidificando no imaginário da cultura pop, principalmente por conta da sua riqueza de elementos e, principalmente, pelo peso de seu elenco, tornando-se cult.
O longa de Scott conta com nada mais, nada menos do que Catherine Deneuve, a musa histórica do cinema francês, multipremiada, verdadeira lenda viva do cinema, Susan Sarandon, que dispensa qualquer comentário e o mítico David Bowie. Baseado no romance The Hunger do escritor norte americano Whitley Strieber, publicado no ano de 1981, Fome de Viver é uma história de horror que recorre à clássica temática vampiresca para abordar temas sensíveis sobre a nossa existência.
Catherine Deneuve vive Miriam Blaylock, uma vampira que tem origens no Egito Antigo, ou melhor, vive desde a Antiguidade. Sua existência é solitária e para aplacar a contradição de viver para sempre, mas eternamente a procura de algo, ela vai escolhendo parceiros amorosos, para os quais promete a vida eterna, transformando-os em vampiros, mas que após alguns séculos de vida definham rapidamente e se tornam idosos sem que possam realmente morrer. Ou seja, por alguma razão começam a perder a beleza e a juventude, tornando-se velozmente decrépitos, mas sem conseguirem morrer.
David Bowie vive John Blaylock, um violoncelista que tem aproximadamente 200 anos e que foi transformado por Miriam para ser seu amante. Contudo, numa certa manhã, John fica chocado ao se olhar no espelho e perceber sinais evidentes de envelhecimento. Com medo e preocupado, ele pergunta a Miriam o que está acontecendo. Ela simplesmente diz que já passou por isso inúmeras vezes e tristemente lamenta o que está por vir. John, que era perdidamente apaixonado por Miriam e sente-se aterrorizado com a possibilidade de perdê-la, fica sabendo de uma médica cientista que está estudando os efeitos do sono no envelhecimento. Trata-se de Sarah, interpretada por Susan Sarandon, que entende ser o envelhecimento uma espécie de doença do corpo, que pode, em tese ser curada.
John procura Sarah e mostra para ela que está se tornando a cada minuto mais velho. Ou seja, que seu processo de envelhecimento é diferente das pessoas comuns, pois em questão de horas está envelhecendo o que levaria anos para uma pessoa qualquer. Sarah não acredita muito no que vê e deixa John simplesmente esperando, enquanto se retira para uma reunião. John vai embora revoltado por ter sido tratado como um louco e exige que Miriam lhe explique por qual motivo mentiu, dizendo que ficariam juntos por toda eternidade. O desespero de John e a forma com que envelhece podem ser considerados brilhantes na interpretação de Bowie.
Miriam, de uma maneira fria, até certo ponto cruel e egoísta, mas também triste e poética, vai se despedindo de John, que definha. Vale aqui notar a excelente maquiagem utilizada no envelhecimento de Bowie, que se torna um velho feio, incapaz de se movimentar e cada vez mais desesperado por sangue. Aliás, é digno de elogio o processo de seu envelhecimento, pois logo no início do filme, Tony Scott nos apresenta Miriam e Jonh de maneira sedutora, numa cena neogótica, com elementos da cultura que se apresentava no início da década de 1980, ao som da banda britânica Bauhaus. Bowie e Catherine Deneuve, aliás, protagonizam uma cena tórrida ao tomarem banho juntos enquanto se beijam. Daí em diante a trajetória de John é de agonia e desespero ao tocar com algo que nunca imaginou ser possível: a sua morte e a separação de seu amor.
Todavia, diferentemente dos humanos, os vampiros amantes que Miriam escolhe ao longo de sua existência, apesar de envelhecerem ferozmente, não morrem. Ela os coloca em caixões para que possam ficar parados por toda a eternidade, ainda conscientes e vivos, porém com corpos imprestáveis. Assim, John, ao perder a beleza e perceber que Miriam já prepara Sarah, seduzindo-a, para que seja sua nova amante por séculos, pede desesperadamente para que ela o mate, o que simplesmente ela não faz. John é colocado, então, ao lado dos amantes anteriores de Miriam para que possa passar a eternidade numa claustrofóbica caixa, consciente e jamais em paz.
Ao condenar John para uma espera eterna de algo que nunca virá, Miriam descumpre sua promessa de eternidade. Enquanto isso acontece, vai seduzindo Sarah, que logo se entrega a ela, carregando o filme de erotismo e lirismo. Sarah, contudo, não parece amar Miriam tal como John.
O tom sombrio, pouco colorido e as cenas que se passam na luxuosa casa de Miriam e John evocam uma enorme sensação de solidão e vazio. Apesar da sofisticação e da beleza fria, as imagens são como uma tarde triste, silenciosa e morta. Aliás, as peças de arte que habitam a casa de Miriam demonstram que ela é, acima de tudo, uma colecionadora, que além dos objetos, coleciona amores que se desfazem. Vale lembrar que além da fria paleta de cores, em nenhum momento Tony Scott apelou para o uso de dentes afiados e olhos vermelhos, típicos de filmes que envolvem a temática dos vampiros. Muito pelo contrário, optou por uma ambiguidade elegante entre o ser demoníaco e ao mesmo tempo extremamente humano em relação aos seus desejos, vontades e sofrimentos.
Fome de viver nos convida a pensar sobre a mortalidade, a beleza da juventude, o medo do envelhecimento e o fim do amor. Quem gostaria de viver eternamente se para isso tivesse que estar para sempre aprisionado num corpo velho, feio e incapaz de fazer tudo que se tem vontade? A humanidade sempre sonhou com a vida eterna por um lado, mas por outro nunca a imaginou na figura de alguém velho ou feio, mas sempre numa figura jovem, bela e potente. Será que se fôssemos condenados a viver eternamente como John gostaríamos mesmo de ser imortais? Talvez a tragédia humana e de seus desejos não se resuma a saber que se morre, que somos mortais, mas que a juventude e a beleza duram apenas algumas poucas décadas. Por mais que hoje falemos sobre a beleza da velhice, estaríamos sendo sinceros conosco? O medo da morte e do fim dos amores ainda nos aterroriza.
Por fim, é curioso e um pouco perturbador pensar que Tony Scott tenha abordado um filme sobre a morte dessa forma, tendo infelizmente perdido a fome de viver num dia sombrio de sua trajetória. Além dele, também Bowie, que de repente envelheceu bruscamente como John e saiu de cena de maneira abrupta, deixando para nós a eternidade de sua juventude e beleza. Dessa forma, não somente pelos elementos que traz, pelo enredo e pela estética, mas também por todo simbolismo que carrega, Fome de viver se tornou um filme imortal.