Imagine um mundo onde tudo é transformado em produto, tudo é objeto de consumo rápido, estereotipado, viralizado, numa linguagem simplista, caricata, pobre, rasa, rápida, mas ainda sim considerada por grande maioria algo genial. Esse parece ser o mundo da comunicação atual, onde a arte, a crítica e a reflexão se tornaram objetos sob demanda. Ou seja, ao invés de pensarmos a partir da complexidade das coisas, o mundo da tecnologia e da comunicação rápida exige que tudo seja feito com foco naquilo que viraliza nas redes, naquilo que dá engajamento, naquilo que simplesmente vende, transformando o complexo em simples, o profundo em raso e produzindo lixo cultural travestido de informação e falsa qualidade. Esse é um dos temas centrais do longa Ficção Americana, que discute a banalização cultural num mundo que parece se tornar cada vez mais raso.
Indicado a quatro Oscars, dentre eles melhor filme, melhor ator e melhor ator coadjuvante, Ficção Americana ironiza a cultura woke e o que chamamos de lacração em relação ao que é ser negro nos Estados Unidos. Thelonious Elisson, conhecido por Monk, interpretado pelo ótimo Jeffrey Wright (Westworld), é um escritor e professor brilhante, inteligente e profundamente culto. Seus romances são ficcionais e nada falam sob a perspectiva do negro na sociedade americana. Ou seja, são obras de ficção que não se focam na questão política. Todavia, ele é classificado como um escritor afro-americano. Logo no início do filme, ao iniciar uma aula sobre a literatura no sul dos Estados Unidos, que, como todos deveriam saber, foi o lado escravagista durante a guerra de Secessão americana e local de profundo racismo, é questionado por uma aluna, que não leu o texto por ele indicado, porque estava usando na lousa uma palavra considerada ofensiva: nigger. Monk explica que aquela palavra deveria ser vista no seu contexto, que todos ali estavam numa aula e que tinham que ter a maturidade para entendê-la. Ao contrapor-se à aluna, Monk é advertido pela direção da escola com uma espécie de suspensão.
Suspenso e fora da sala de aula, Monk participa de um festival literário em Boston. A mesa em que aparece como autor é um fracasso em audiência, principalmente porque foi realizada paralelamente a uma outra, em que figurava a autora do momento, Sintara Golden (Issa Rae), que havia escrito um bestseller. Monk nunca havia ouvido falar de Sintara e, por conta disso, resolve tentar entender por qual motivo o livro dela se tornou uma febre. Ao se deparar com a história, choca-se por perceber que nada mais é do que uma avalanche de caricaturas da vida de um negro nos Estados Unidos. Personagens estereotipados, que servem principalmente para alimentar o sentimento dos brancos americanos na sua crise de consciência em relação ao racismo que os negros sofrem no país. Isto é, ótimo para leitores brancos sentirem-se menos culpados ao estarem lendo e “denunciando”, como arautos, o sofrimento dos afro-americanos. Monk se incomoda demais porque, para ele, Sintara descreve todo negro como alguém marginalizado no gueto, que só sabe falar a linguagem “das ruas”, como se todos fossem gangsters, ex-presidiários, cantores de rap, hip hop, e tudo que se pode imaginar numa caricatura enlatada. Diante disso, Monk resolve escrever, usando de um pseudônimo, um livro justamente assim: totalmente caricato e estereotipado, que ele mesmo considera um completo lixo. O que ele não esperava era o sucesso que seu livro-piada faria.
É muito interessante notar que além da própria crítica pessoal de Monk, o longa aborda as suas complexas relações familiares. Oriundo de uma família de classe média alta, Monk tem claras dificuldades de relacionamento com seus irmãos, a médica Lisa Ellison (Tracee Ellis Ross) e o cirurgião plástico Clifford Ellison (Sterling K. Brown). Diferentemente dos estereótipos, a família de Monk vive os dramas que qualquer família branca nos Estados Unidos poderia viver. Ou melhor, que qualquer família no mundo poderia viver. O pai de Monk cometeu suicídio e deixou os filhos sozinhos com a mãe, que acaba de descobrir que está gravemente doente. O irmão, apesar de ser um homem de sucesso profissional, vive o drama de ter escondido da família a sua orientação sexual. Nesse sentido, a jornada de Monk é também uma história de reconciliação e ressignificação de sua própria vida. Tudo isso indo muito, mas muito além do estereótipo.
Entre o drama e a comédia, Ficção Americana é um ótimo convite para pensarmos o que estamos fazendo num mundo imerso em redes sociais, informações fáceis e simplificações. Aliás, Arthur (John Ortiz), o agente de Monk, nos faz uma peculiar provocação. Ao Monk questionar a proposta milionária que seu livro-piada recebe por um possível editor, Arthur mostra para ele três garrafas de whisky Johny Walker, uma red label, outra black label e outra blue label. De acordo com Arthur, a primeira é muito ruim, mas vende bem, porque é barata; a segunda é melhor e vende menos, a terceira é muito melhor e vende bem menos. Apesar disso, as três são Johny Walker. Assim, o que estamos consumindo hoje em termos de cultura e informação? Aquilo que é realmente bom ou aquilo que mais vende/viraliza?
Ficção americana é, além de um ótimo filme, uma inteligente provocação aos nossos cânones modernos. Quando tudo não passa de um mero produto criado para nos ser enfiados goela abaixo, seria toda essa discussão sobre representatividade e temas sociais mera ficção?